Organizações da sociedade civil assinam nota contra PL que regulariza grilagem de terras

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Na próxima segunda feira, 25/05, às 10h, entidades e personalidades vão fazer o lançamento virtual de uma nota pública se posicionando contrários ao Projeto de Lei Complementar (PLC) n.º 2.633/2020 (ex-MP 910), que flexibiliza ainda mais a possibilidade de grilagem de terras invadidas e desmatadas, inclusive terras indígenas e quilombolas em processo de demarcação, mas ainda não homologadas no Brasil.  O PL repete o conteúdo da medida provisória (MP) 910, a “MP da Grilagem”, que perdeu efeitos por não ter sido votada pelo Congresso Nacional até 19 de maio.

Patrocinada pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), um dos braços políticos e econômicos do governo federal, a medida promove a regularização de terras públicas ilegalmente ocupadas.  O projeto de lei é alvo de uma intensa campanha popular que rejeita o conteúdo da matéria e pede também o adiamento da pauta. A mobilização envolve movimentos populares, organizações não governamentais (ONGs), especialistas, artistas, igrejas que produziram uma nota pública, assinada também pela Fisenge (Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros) e Senge-PR (Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná). 

Leia a íntegra da nota abaixo: 

NOTA: flexibilização legal aprofundará caos agrário no país

Nas últimas semanas, o debate em torno da Medida Provisória n° 910/2019 e sua mutação em Projeto de Lei n° 2.633/2020, que agora tramita em regime de urgência no Congresso Nacional, demonstrou a ênfase dada pelo governo Jair Bolsonaro na chamada “regularização fundiária”, que consiste na titulação (principalmente por meio de alienação) de terras públicas federais, dessa vez, ampliando a política para todo o país, em terras da União e do INCRA, e estendendo a regularização por meio de autodeclaração do suposto ocupante em até 15 módulos fiscais, pelo texto da MP, ou até 6 módulos, pelo texto original do atual PL.

Inicialmente, vale destacar que tais mudanças ocorrem de forma açodada e completamente dissociada da prioridade a ser dada ao combate a pandemia de coronavírus, que se acentua em todo o Brasil. De maneira coordenada, tão logo houve a edição da MP, o INCRA editou duas Instruções Normativas (n° 99 e nº 100, de 2019), para operacionalizar os novos marcos de regularização, inclusive com a dispensa de vistoria para área de até 15 módulos fiscais e consultas a sistemas autodeclaratórios, como o SICAR, para a comprovação da regularidade ambiental, bem como editou a Portaria n° 608, de 31 de março de 2020, aprovando uma nova planilha de preços para titulação de terras, com valores bem abaixo aos valores de mercado. Por outro lado, o conceito amplo de regularização fundiária engloba uma série de situações que envolvem as terras públicas e que demandam ações do Estado brasileiro, inclusive por determinação constitucional: os assentamentos de reforma agrária, as unidades de conservação, os territórios quilombolas e as terras indígenas, entre outras. Tais situações demandam, em maior ou menor grau, ações de regularização fundiária, cada uma delas com as suas especificidades procedimentais e responsabilidades de diversos órgãos da Administração Pública.

A regularização fundiária de ocupações por meio de autodeclaração ignora que todos os sistemas que assim funcionam e que possuem ligação com meio agrário apresentam no momento alta fragilidade pelo elevado número de fraudes praticadas por parte dos declarantes e pela ausência de estrutura fiscalizatória, como é o caso do Cadastro de Imóveis Rurais gerenciado pelo INCRA; do Imposto Territorial Rural, gerenciado pela Receita Federal; e do Cadastro Ambiental Rural, gerenciado pelo Serviço Florestal Brasileiro. Nesse sentido, qualquer política séria de regularização fundiária que não vier aliada às demais obrigações fundiárias do Estado brasileiro e ao fortalecimento da estrutura fiscalizatória acarretará mais caos no meio agrário brasileiro em vez de segurança jurídica. Curiosamente, o setor mais beneficiado por tais medidas é o mesmo que questiona os critérios étnicos de auto-atribuição de povos indígenas e quilombolas, buscando impor o marco temporal de ocupação de 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da atual Constituição) para a regularização fundiária de terras pertencentes a esses grupos.

Da mesma forma, ainda que a Lei 11.952/2009 e suas alterações tenham abstratamente afastado a possibilidade da “regularização fundiária” em terras tradicionalmente ocupadas por indígenas (art. 4°, II) e em áreas de interesse social (art. 4°, I); tenham estipulado que “as terras ocupadas por comunidades quilombolas ou tradicionais que façam uso coletivo da área serão regularizadas de acordo com normas específicas” (art. 4, parágrafo 2°) e estabelecido a prioridade das “comunidades locais” em caso de conflito (art. 8°, I), tem-se verificado na prática, uma verdadeira corrida pela destinação das terras públicas em condições muito vantajosas para aqueles que ocuparam-nas à revelia da lei, colocando em segundo plano as diversas formas de campesinato, inclusive os assentados.

Frisa-se que o público que se busca regularizar está muito longe de ser os simples posseiros, pois esses já possuem amparo e vantagens legais, sem que isso resulte de fato na regularização de suas terras ocupadas, conforme consta no recente Acórdão n° 727/2020 do Tribunal de Contas da União, que apontou a baixa execução do agora extinto programa Terra Legal. Por isso, o aumento de área passível de regularização sem vistoria mostra-se completamente sem sentido, visto que atende a um público diferente dos ocupantes de pequenos imóveis rurais, que já possuem amparo legal.

O que se evidencia desde a adoção da Lei n° 11.952/2009 (conversão da MP 458/2009) é que não tem predominado o conceito de função social e de interesse público e social nas ações de governança agrária, o que fica demonstrado pela paralisia nas políticas fundiárias de reforma agrária, de criação de unidades de conservação e de reconhecimento de terras indígenas e territórios quilombolas, de titulação dos posseiros propriamente ditos, bem como a ausência de reversão de áreas públicas ilegalmente ocupadas e que não são destinadas para o programa de “regularização fundiária” nem para qualquer outro programa, ficando essas terras à mercê de novas invasões, da grilagem e de novas pressões para adoção de leis que as amparem, problemas que se arrastam há décadas.

Essa paralisia encontra-se refletida no sucateamento de todos os órgãos que tratam dessas políticas, especialmente no INCRA, que se encontra no momento em situação bastante defasada em relação à sua missão institucional, estrutura operacional, número de servidores e orçamento. O corpo de servidores do Incra defende o máximo uso de informações técnicas, inclusive de sensoriamento remoto e cruzamento de dados entre os diversos sistemas de informações dos órgãos públicos como ferramentas de análise dos pedidos de regularização fundiária, mas isso não substitui a necessidade de vistorias prévias, que se mostram legalmente necessárias também para verificação do cumprimento de cláusulas que constam nos próprios instrumentos de titulação.

Por esses motivos, entre outros, os servidores do Incra que subscrevem o presente documento defendem a rejeição do Projeto de Lei nº 2.633/2020 (Regularização fundiária de ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e uma nova institucionalidade para a política agrária no Brasil; e a reestruturação do Incra, para cuidar da governança agrária do país, para regular, fiscalizar e controlar o uso e a ocupação das terras brasileiras, de modo a promover a segurança jurídica, o direito de propriedade e o cumprimento da função social, concentrando as informações estratégicas para a execução de políticas públicas de desenvolvimento pelos diversos órgãos e esferas da Administração Pública e mais especificamente:

1- Revogação da IN 99 e 100/2019;

2- Adoção da planilha referencial de preços, elaborada pelo INCRA, com descontos inversamente proporcionais a área a ser regularizada, no intuito de minimizar a perda de Receita ao erário;

3- Que fique a cargo do INCRA e não do Ministério da Economia possíveis alienações advindas do processo de Regularização;

4- Fortalecimento imediato do Incra, para possibilitar a gestão fundiária do país;

5- Obrigatoriedade de vistoria nos imóveis acima de 4 módulos fiscais com pedidos de regularização, bem como em todos aqueles abaixo desta faixa que possuam indícios de descumprimento da função social da propriedade.

Foto: Agência Brasil