O transporte, o orçamento público e o direito social: pequenos comentários

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A inclusão do transporte como direito social na Constituição Federal, por meio da EC n.º 90/2015, acalentou a esperança nos militantes da mobilidade urbana de que as coisas poderiam começar a mudar a partir dessa conquista histórica como, por exemplo, de que começaria a ter a garantia de fontes de recursos para o seu financiamento através da criação de um fundo específico, onde ficaria concentrado o dinheiro destinado ao setor. Entretanto, avaliando as outras áreas que já estavam asseguradas como direitos sociais no Artigo 6º da nossa Carta Magna, podemos reunir alguns elementos para desmistificar as teorias que apontavam cenários mais otimistas para o transporte público.
Saúde e educação já são direitos sociais assegurados na Constituição desde a sua promulgação, em 1988, e são áreas que contam com a garantia mínima de recursos orçamentários que devem ser aplicados por União, Estados, o Distrito Federal e os municípios, conforme expresso nos Artigos 198 e 212, respectivamente, que estão inseridos no titulo que trata sobre a Ordem Social e onde aparecem detalhadas as fontes para os seus financiamentos.
No § 1.º do Artigo 198 da Constituição está disciplinado que “O Sistema Único de Saúde será financiado, nos termos do Artigo 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. O parágrafo seguinte complementa com a indicação de que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I – No caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15 %”.
Para a educação ocorre tratamento similar no texto constitucional, conforme pode se verificar no Artigo 212, onde se estabelece que “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Ocorre, então, que saúde e educação conseguiram uma posição diferenciada entre os direitos sociais, uma vez que contam com diretrizes constitucionais que estabelecem a aplicação mínima de recursos por parte dos entes públicos e, mais importante, se apoiam na existência de um significativo controle social a partir de instâncias de representação popular, como os conselhos locais e municipais, que atuam na fiscalização das ações públicas dos executivos e na formulação de propostas.

Dentro da sociedade, mais visível principalmente entre os usuários diretos da saúde e da educação públicas, há uma compreensão muito clara de que esses direitos sociais são conquistas da população e que, por isso, devem ser assegurados mais recursos financeiros e melhores condições de acesso para que a sua fruição ocorra em sua plenitude. Isso fica perceptível quando se vê as pessoas protestando contra a falta de atendimento médico e de medicamentos nas unidades de saúde ou contra a falta de professores, de merenda e de ensino de qualidade nas escolas públicas do país.
Nesse sentido, percebe-se que saúde e educação alcançaram um status diferenciado quando se comparado com os outros direitos sociais. A sociedade exige o compromisso do estado para com essas áreas, o que não ocorre na mesma proporção quando se fala dos outros direitos sociais. Em relação ao transporte público, por exemplo, não há indignação de usuários mesmo quando são informados de que um dos problemas dos atuais valores das tarifas decorre do fato de que as gratuidades são financiadas por eles mesmos, em vez de o estado assumir o compromisso de pagamento desse ônus ou, pelo menos, de apontar alternativas para o seu financiamento.
Entretanto, mesmo se considerarmos que saúde e educação estejam em melhores condições entre os direitos sociais, pelo fato de contarem com recursos financeiros mínimos assegurados na própria constituição, a desaprovação histórica da sociedade pelos serviços ofertados pelo estado nas duas áreas é um elemento importante para nos sugerir que essa mesma obrigatoriedade também produz um lado perverso, pois acaba definindo o mínimo constitucional como o teto máximo dos orçamentos dos governos, sem o compromisso e o estímulo para o aporte de mais recursos públicos, apesar do aumento crescente da demanda pelos serviços públicos, não entrando ainda nem na abordagem do desvio de dinheiro por intermédio da corrupção.
Se analisarmos o orçamento do governo federal nos últimos quatro anos, veremos que saúde e educação tiveram variações entre os valores nominais aportados em cada exercício, mas o percentual sobre o valor global decresce a cada ano. Em 2014, foram assegurados R$ 106 bilhões para a saúde, correspondendo a 4,45 % do orçamento global naquele ano, e R$ 94 bilhões para a educação, que representou 3,96 % do total.
No ano seguinte, o valor destinado à saúde saltou para R$ 121 bilhões (= 4,21 %), enquanto a educação contou com R$ 103 bilhões (= 3,59 %). Apesar do aumento do valor nominal, houve redução percentual nos valores destinados às áreas comparativamente aos do período anterior.
Em 2016 acontece um quadro diferente: reduzem-se os valores nominais e percentuais direcionados para saúde e educação, que passaram, respectivamente, para R$ 118 bilhões (4,01 %) e R$ 99 bilhões (3,38 %). Neste ano de 2017 estão previstos R$ 115 bilhões para a área da saúde, valor nominal e percentual menor no comparativo com o ano anterior, correspondendo a 3,40 % do orçamento global. Por outro lado, para a educação estão alocados mais recursos do que em 2016, no montante total de R$ 105 bilhões, mas que percentualmente representam menos do que no exercício anterior = 3,11 %.
Se áreas tradicionais e com maior peso sofrem com a variação de recursos do orçamento público destinado para o seu financiamento, o que podemos dizer de um direito social que foi assegurado somente recentemente na carta magna, como o transporte?
Avaliando- se o orçamento do governo federal, no mesmo período, para o Ministério das Cidades, onde está previsto o Programa Mobilidade Urbana e Trânsito, que contempla desde ações de apoio a sistemas de transporte de passageiros de coletivo urbano e de transporte não motorizado, até aquelas de fortalecimento do Sistema Nacional de Trânsito, tem-se um quadro não muito animador.
Em 2014, o Ministério das Cidades contava com R$ 26 bilhões para a execução dos seus programas, o que equivalia a somente 1,12 % do orçamento global de todo o governo. No ano seguinte, coincidindo com o período da promulgação da Emenda Constitucional que elevou o transporte à condição de direito social, o orçamento do MCidades saltou para R$ 33 bilhões, representando 1,16 % do total.
Entretanto, com o fortalecimento do discurso da necessidade de um forte contingenciamento dos recursos, em 2016 o orçamento do Ministério das Cidades sofre um corte vertiginoso e a sua dotação é estabelecida em apenas R$ 12 bilhões, significando somente 0,43 % do orçamento global da União fixado em R$ 2,9 trilhões.
E o reconhecimento do transporte como direito social acaba também não se traduzindo em ação efetiva quando se analisa os dados do orçamento para 2017, uma vez que os recursos para o MCidades foram mantidos em patamar próximo ao do ano anterior, agora alcançando o valor de R$ 13 bilhões, que representa apenas 0,39 % do total.
Então, infere-se que estar incluso no Artigo 6.º como direito social não seja, por si só, a garantia da alocação de recursos financeiros por parte do estado para o financiamento da área, como pode ser verificado através de uma simples análise das peças orçamentárias do mais importante ente público durante o período de 2014 a 2017. Mais do que estar presente no Artigo 6.º, é a capacidade de articulação e de mobilização da sociedade, através de um grande pacto envolvendo os diversos segmentos, que será determinante para que o transporte possa ser incorporado à agenda nacional, a partir do entendimento de que a mobilidade interage transversalmente com todos os outros direitos sociais, seja saúde, educação, assistência social, trabalho, moradia, segurança ou lazer.
Nesse sentido, acredito que é preciso resgatar algumas bandeiras que foram abandonadas pelos movimentos sociais. Uma delas era a que se opunha ao pagamento de juros a especuladores financeiros, mas que perdeu força a partir do momento em que ficou associada exclusivamente à defesa de um projeto de ruptura radical do modelo econômico, político e ideológico vigente, rotulada sempre como agenda de uma esquerda irresponsável e descomprometida com o país.
Na atual conjuntura, e após um doloroso processo de impeachment em que o país se encontra literalmente dividido em dois blocos antagônicos, não se propõe o aprofundamento dessas diferenças, mas sugere-se a utilização de informações que estão disponibilizadas até mesmo para clarear o debate e fortalecer a defesa de que o transporte e os outros direitos sociais precisam de mais atenção do estado e do apoio da sociedade.
Enquanto a área de saúde conta com uma dotação de R$ 115 bilhões no orçamento de 2017 do governo federal, a educação tem a previsão de R$ 105 bilhões e o MCidades, que responde por mobilidade urbana, onde se insere o transporte público, vai ter a sua disposição apenas R$ 13 bilhões. Por outro lado, o governo federal reservou R$ 925 bilhões, ou 27 % do seu orçamento global, para o refinanciamento da dívida pública mobiliária federal, que consiste na emissão de títulos públicos para a captação de recursos visando financiar o seu déficit orçamentário.
Os credores dos títulos públicos emitidos pelo tesouro federal estão divididos entre investidores estrangeiros, instituições de previdência, instituições financeiras, fundos de investimento e outros que detém quantitativos menores. Como se vê pelo perfil dos credores, o refinanciamento da dívida pública mobiliária federal concentra quase 30 % do orçamento global do governo federal para o ano de 2017 para beneficiar quase que exclusivamente o capital especulativo, representado por aqueles setores que não estão diretamente vinculados às atividades produtivas, que geram empregos e que são indutoras do desenvolvimento, como o transporte público de passageiros, por exemplo.
Essa distorção precisa ser reavaliada. Reservar R$ 13 bilhões para mobilidade urbana, R$ 115 bilhões para a saúde e R$ 105 bilhões para a educação, visando ao atendimento do conjunto da sociedade, enquanto se destina R$ 925 bilhões para o benefício de alguns poucos credores de títulos públicos que compõem um seleto grupo de detentores de capitais voláteis é um grande equívoco.
Com o reconhecimento do transporte como direito social criou-se a expectativa de que haveria condições, a partir de agora, para a definição de fontes de financiamento para a área, com a criação de um fundo específico onde estaria concentrado os recursos do setor. Se a avaliação parte do pressuposto de que a alocação de recursos nos orçamentos públicos seria uma das opções para assegurar parte do financiamento, obviamente teria que se considerar que em períodos de contingenciamento e de pouca margem para negociação, o remanejamento de recursos para uma área passa necessariamente pela redução de dotações em outras, o que inevitavelmente acabará produzindo um quadro marcado pelo atendimento de um direito social em detrimento de outros.
Há a tendência para um consenso entre os defensores da mobilidade urbana de que a adoção de um pequeno acréscimo no preço dos combustíveis poderia ser uma importante fonte de financiamento para o setor, à medida que compartilharia com os proprietários e usuários de automóveis a responsabilidade pelo custeio do transporte, cumprindo o que está estabelecido como um dos princípios da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que trata da “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços”.
A defesa dessa proposta vai em contraposição aos interesses dos usuários de automóveis, que historicamente acumulam uma série de vantagens e benefícios concedidos pelos entes públicos, sejam através de isenções tributárias ou da construção de vias e viadutos. Essa dualidade vai provocar um grande debate na sociedade, onde o lado de lá vai contar com o apoio ostensivo da própria mídia e nós devemos estar preparados para esse confronto.
Nota-se que há uma disposição dos que defendem a mobilidade urbana para esse enfrentamento junto aos proprietários/usuários de automóveis, em nome da sustentabilidade do transporte público. Será que essa mesma disposição haveria para a defesa mais veemente dos direitos sociais, incluso o transporte, a partir da proposição do remanejamento de recursos que seriam destinados ao refinanciamento da dívida pública mobiliária federal para o custeio e o investimento em mobilidade urbana? Será que a luta contra defensores do transporte individualizado é menos tensa e mais promissora do que aquela contra os beneficiários diretos e investidores em títulos públicos do tesouro federal? Aqueles até poderão vir a serem usuários do transporte público e/ou da mobilidade ativa, e estes últimos será que algum dia poderão vir a ser aliados?
Nesse momento, deve haver um esforço coletivo para repensar estratégias que possam viabilizar fontes de recursos para o financiamento da mobilidade urbana de forma a garantir que o sistema de transporte público consiga alcançar um nível de sustentabilidade e que esse direito social possa vir a ser usufruído pela sociedade. O remanejamento de recurso destinado ao refinanciamento da dívida pública mobiliária federal para o atendimento dos direitos sociais é apenas uma das proposições, no âmbito orçamentário público, até mesmo em função do grande volume de recursos envolvidos, mas existem muitas outras e que serão objeto de análise em outros artigos, podendo destacar, entre outros, a destinação de recursos gerados com a valorização imobiliária a partir de obras de infraestrutura em sistemas de transporte; o combate duro à corrupção envolvendo recursos públicos, com a criação de instrumentos legais que possam estabelecer ritos sumaríssimos para a retomada dos valores desviados e a punição dos culpados e a própria transferência de outros ônus para os proprietários/usuários de automóveis, como o pedágio urbano e a cobrança por estacionamento em área pública.
Entretanto, acima de tudo e como pressuposto básico, recurso financeiro para o transporte tem que estar assegurado em orçamento público e, se possível, com previsão no texto constitucional para não haver descompromisso dos entes. Esse é o começo de tudo para que o transporte possa ser de fato um direito social. Fica para reflexão.

* Wesley Ferro Nogueira é Economista, com Pós-Graduação em Gerenciamento de Micros e Pequenas Empresas, em Marketing e em Gestão Pública. Atualmente é Secretário-Executivo do Instituto MDT.