Um dos maiores especialistas brasileiros em saneamento básico, o engenheiro Leo Heller, pesquisador da Fiocruz Minas, espera que o Senado reverta a decisão da Câmara que suspendeu trechos importantes dos dois decretos do governo Lula que atenuavam dispositivos da atual lei do setor, editada na gestão passada. O modelo de saneamento posto em vigor é excludente e precisa ser revisto, avaliou o pesquisador, em em entrevista ao programa Soberania em Debate, uma iniciativa do movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).
Os senadores devem apreciar a matéria nas próximas semanas. Para contornar as dificuldades no Congresso, o atual governo já cogita até editar um novo decreto a respeito, contemplando as sugestões de todos os partidos, incluindo os da oposição.
O atual Marco do Saneamento Básico (lei 14.026, editada por Bolsonaro em 2020) alterou a lei anterior do setor, a 1.445, promulgada por Lula em 2007 e que criava regras claras para o setor de saneamento – definindo, por exemplo, critérios para os municípios delegarem o serviço para os Estados. Como explicou Heller, a lei estabelecia, entre outras coisas, a necessidade de haver planos estaduais de saneamento e processos adequados de tarifação.
“A lei atual tem uma ótica muito clara de privatização dos serviços de saneamento”, afirma Heller. “Ela retira das companhias estaduais a prerrogativa de estabelecer, sem licitação, convênios ou contratos com municípios. Antes, a relação entre companhias estaduais e municípios era considerada um instrumento de cooperação entre dois entes federados. O que a lei fez foi impedir essa delegação de serviços sem licitação. Se um município decide delegar o serviço, ele tem que abrir uma licitação para as empresas privadas participarem.”
Segundo o especialista, que também integra o Observatório Nacional para o Direitos da Água e Saneamento (Ondas), trata-se de uma experiência de privatização que se tem mostrado “muito equivocada” em várias partes do mundo. “É um modelo de gestão de saneamento que desorganiza muito o setor e que, muito preocupantemente, retira o setor público da prestação do serviço”, diz. “Os decretos do governo Lula são muito razoáveis. O que eles fazem é estabelecer uma transição mais suave de modelo.”
Entre outras medidas, os dois decretos dispõem que alguns contratos das companhias estaduais com municípios, embora provisórios e não formalizados, continuam válidos. Também regulamentam a forma como a Agência Nacional de Águas (ANA) deve regular o setor de saneamento, atrelando a regulação às políticas públicas, para que o regulador não tenha autonomia total. “O próximo round será no Senado, que pode confirmar ou não a suspensão dos trechos dos decretos. Espero que os senadores tenham mais bom senso, porque foi descabida essa alteração”, diz Heller.
Segundo o pesquisador, o que está em jogo é uma disputa entre modelos de gestão. “De um lado, há os que se opõem aos decretos do Lula, aqueles neoliberais, privatistas, que não acreditam na gestão pública; de outro, os que apoiam e foram contrários à lei 14.026, porque acham que aquele não foi o melhor caminho. Eu sou um destes: penso que a privatização, ao contrário de assegurar a universalização dos serviços, promoverá mais exclusão, mais ônus para a renda das populações mais vulneráveis, não estenderá serviços para as áreas rurais… Essa é a experiência, e é um modelo absolutamente equivocado”, afirma Heller.
Reestatização em mais de 300 cidades
De acordo com ele, nos últimos 20 anos diversos países têm revertido a privatização do setor, em razão dos efeitos adversos desse modelo. Cerca de 90% da população mundial é atendida por serviços públicos de água e esgoto. Mas há países em que 100% dos serviços estão privatizados, como o Reino Unido (com exceção da Escócia) e o Chile.
No Reino Unido foi feita uma privatização maciça e muito radical, porque a empresa privada é dona dos ativos (redes, estações de tratamento, reservatórios). Em alguns países europeus, como a França, existe algum nível de privatização, mas não tão inetgral, e em alguns asiáticos também. “Agora, várias cidades nesses países têm tornado os serviços novamente públicos”, conta Heller. “Paris fez isso. É um caso muito emblemático, porque as duas grandes multinacionais do saneamento no mundo são francesas. Budapeste e Jacarta (Indonésia) também reestatizaram. Na América do Sul, Buenos Aires, La Paz, Cochabamba (Bolívia). Os números falam em 300 e poucos municípios ao redor do mundo, de 2000 a 2019. É uma tendência para a qual não podemos fechar os olhos. Em alguns casos os contratos expiraram e não foram renovados; em outros, foram cancelados, mas em todos eles há um traço comum, que é uma insatisfação em relação a esse processo.”
Segundo Heller, o modelo de privatização implantado em 2020 no Brasil “é único no mundo contemporâneo”, pela escala pretendida. “O que a lei aponta é uma privatização em quase todos os municípios do país, organizados em lotes ou regiões. Ainda é um pouco cedo para avaliar. O que temos ouvido é que há muitos problemas, muita insatisfação com as tarifas, com a postura das companhias na sua relação com o Estado. Existem casos muito agudos de insatisfação, como em Ouro Preto (MG), onde está havendo uma mobilização popular sem precedentes na história do saneamento no Brasil, contra uma privatização muito polêmica, com as tarifas subindo enormemente, a qualidade da água se deteriorando.”
Outra questão que o preocupa é a definição das licitações pelo critério do maior valor de oferta, modelo que um dos decretos recentes de Lula favorecendo a escolha pela melhor tarifa para o consumidor. “Quem oferece mais pela outorga, a partir de um preço base, é o vencedor. Ocorre que têm sido valores elevadíssimos, superiores ao que se esperava. Essa outorga vai para os cofres dos governos estaduais e municipais, e muito provavelmente os valores não irão para o saneamento. Serão usados para outros fins. Mas as empresas, ao pagarem a outorga, terão que recuperar esse valor, então as tarifas serão majoradas. Um dos decretos do Lula procura minimizar isso. Ele não tem como impedir que o critério da licitação seja o de maior valor, mas fala que, quando o critério for esse, o serviço não poderá ter acesso a recursos federais.”
Para Heller, a questão precisaria ser discutida. “Outros critérios seriam interessantes, como o de menor tarifa, que vai mostrar maior eficiência. Ou quem prometer mais investimentos num prazo mais curto. Existem maneiras criativas que podem ser aplicadas aos editais.”
Direito humano e tarifa social
No caso das tarifas, tramita desde 2021 na Câmara um projeto de lei prevendo tarifas sociais, mas que não avançou. Ao mesmo tempo, uma ação civil pública proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio busca assegurar que as pessoas vulneráveis não paguem pela água. “Água e esgoto são dois dos elementos mais importantes dos direitos humanos. Nenhuma família deve pagar por eles uma quantia que comprometa sua renda. Como operacionalizar isso? Pode haver gratuidade, mas não deve ser uma regra geral. É importante que os prestadores de serviço tenham arrecadação, porque ela auxilia na sustentabilidade do serviço e nos investimentos. Mas em casos muito extremos, água e esgoto precisam ser gratuitos”, analisa. “A ação civil pública fala em gratuidade até certo consumo. A partir daí, a família pagaria. Existe uma experiência semelhante em vários países. Na África do Sul, isso é universal: mesmo famílias muito ricas têm gratuidade até determinado consumo, o que me parece problemático. Um modelo interessante é o usado em Bogotá e Medellín. A Colômbia tem uma classificação socioeconômica das famílias por estratos e aplica nessas cidades, nos dois estratos inferiores, o volume mínimo gratuito.”
No Brasil, diz Heller, o critério da tarifa social deveria ser mais explorado, beneficiando as famílias mais pobres. “Alguns Estados têm implementado isso. Em Minas, o modelo foi definido pela agência reguladora estadual e ao longo do tempo foi sendo aperfeiçoado.” Outra discussão é qual desconto dar. “É importante que ele seja significativo. Um desconto muito baixo, de 20 ou 30%, não se justifica. Com a tarifa social, o que se faz é aprofundar o subsídio cruzado que existe no modelo tarifário: quem tem mais renda subsidia quem tem menos renda. O fato de haver tarifa não significa diminuir a arrecadação do prestador. A perda de receita pode ser suprida pela receita um pouco majorada dos que podem pagar.”
Para ele, é fundamental investir em modelos de acessibilidade econômica. “Um percentual muito alto da população brasileira vive em situação de pobreza ou miséria. Não é justo sobrecarregar essas famílias pagando tarifa de água e esgoto, que é um direito humano. Ninguém deve ter o acesso a esses serviços negado por qualquer fator. Ou pelo fator econômico, ou porque vive na área rural, ou porque vive em vila ou favela e não tem regularização da posse da terra, ou porque mora numa cidade remota ou na Amazônia.”
O estudioso acredita que seria muito importante a aprovação do projeto sobre a tarifa social. “Embora existam serviços que praticam essa tarifa, os modelos não são uniformizados, há modelos mais justos e menos justos. Ter isso numa definição nacional seria importante. Uma alternativa, se a ANA realmente vier a estabelecer diretrizes regulatórias, é que ela faça essa diretriz estabelecendo claramente que deve haver tarifa social e que desconto aplicar. Isso pode ser tão eficiente quanto uma lei, mas a ANA precisa se convencer disso. A agência tem tradição em gestão de recursos hídricos, não em saneamento. É preciso incutir nela uma visão de direitos humanos, ou será uma regulação puramente econômica ou técnica.”
Controle social
Heller acredita que deveria haver mais transparência tanto nas licitações quanto na aplicação dos recursos, com a criação de um portal para permitir mais controle social. ‘É preciso muita transparência com esses recursos, que são públicos. Infelizmente, a outorga não entraria nesse portal, porque não é considerada recurso para o saneamento, é um recurso que vem do saneamento e vai para outras áreas. O setor tem muita baixa tradição de participação e de controle social. Existem poucas experiências de conselhos de saneamento, em alguns municípios. Em alguns casos não é um conselho de saneamento, mas de saúde, onde a questão do saneamento é tratada de forma muito secundária, de baixa prioridade.”
Ele lembra que Bolsonaro suspendeu o Conselho das Cidades, retomado agora por Lula. “Nos governos do PT, o conselho teve um papel muito importante de definir diretrizes e de controlar como os recursos eram aplicados, e as prioridades, estabelecidas. A área de saneamento tem um corte muito tecnocrático, as decisões não têm muita transparência.”
Para o pesquisador da Fiocruz Minas, as emendas parlamentares cumprem um papel “desastroso” na área do saneamento. “Essas emendas jogam por terra qualquer planejamento. Um deputado acha que é preciso fazer uma rede de esgoto num bairro da cidade onde tem votos. Como isso se insere numa perspectiva de priorização?”, questiona. “As outras fontes são recursos onerosos, via Caixa Econômica Federal e BNDES, que também precisariam de mais controle social, critérios mais explícitos e uma visão menos bancária nos empréstimos e financiamentos. O recurso é escasso e tem que ser muito bem aplicado, para que o governo cumpra suas obrigações de direitos humanos. E para cumprir, onde precisamos investir? É onde a carência é maior: zona rural, vilas e favelas, cidades pequenas. Pobres e habitantes das zonas rurais são os que menos recebem. Há um traço de racismo ambiental aí.”
O especialista destaca ainda os efeitos sanitários e econômicos que a universalização dos serviços de água e esgoto traria para o Brasil, onde 100 milhões de pessoas não têm acesso a esgoto tratado. “A pandemia foi um ótimo teste para o setor de saneamento, e acho que ele não se saiu bem. No Ondas (Observatório Nacional para o Direitos da Água e Saneamento), do qual participo, fizemos uma lista de dez pontos que se esperaria que os prestadores e reguladores do saneamento observassem para contribuir para o controle da doença. Por exemplo, não deveria haver cortes de ligação durante a pandemia. Deveria haver uma certa moratória de quem estava devendo, para que as pessoas não precisassem pagar pela água e esgoto e pudessem usar esses recursos para outros fins que a pandemia colocou.”
Segundo Heller, o uso da água para o controle de doenças respiratórias é tema relativamente novo na literatura do setor. “A maior parte da literatura sobre esse tema fala em água como controle de problemas intestinais ou também doenças de pele, que dependem de higiene. Mas é um tema muito interessante, que mostra outras faces da relação entre água e controle de doenças. Existe um estudo que foi publicado recentemente na revista Lancet que fala que se pode esperar em torno de 50% de redução da diarreia infantil quando se colocam serviços adequados de água e esgoto. Em todo o mundo, muitos óbitos, hospitalizações e internações poderiam ser evitados com o serviço de água e saneamento.”
O engenheiro lembra ainda os impactos em outras áreas. “Investir em saneamento diminui o absenteísmo ao trabalho, o absenteísmo das crianças à escola, a hospitalização, a compra de medicamentos. Há um estudo muito interessante, já de alguns anos, mostrando que se eu invisto um real em saneamento, posso ter um ganho de até duzentas vezes em economia de outros setores. É um investimento que resulta em frutos econômicos substanciais”, diz. “Sem falar no impacto da recuperação ambiental, que é óbvia. Os turistas também não gostam de ir a locais bonitos, mas que têm esgoto correndo na rua. Então são múltiplos os impactos e precisam ser colocados à luz do dia, para convencer as pessoas e os governantes sobre a priorização disso. Mas o principal impacto é garantir o direito humano a todos.”
Apesar de tudo, o país tem um desempenho em água e esgoto semelhante ao de nações com nível parecido de desenvolvimento, diz Heller. “Em julho, o Brasil vai receber um destaque da ONU como um dos três países bem-sucedidos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estabelecidos em 2015. Aumentou muito o nível de tratamento de esgoto entre 2010 e 2020.”
Por sua vez, o Marco do Saneamento diz que os contratos de concessão devem prever o alcance de metas até 2033. “Fala-se em metas de universalização: 99% de cobertura por água e 90% de cobertura por esgoto até 2033. Mas é muito inapropriado uma lei falar em meta com tempo determinado. E uniformizar essa visão é problemático. É diferente falar que a cidade de São Paulo vai cumprir a meta ou que uma pequena cidade do Nordeste vai cumprir a meta. Não vivemos num país homogêneo. Então essa meta nacional até 2033 me parece improvável de cumprir, principalmente neste modelo de privatização.”
Chamado aos engenheiros
Por fim, Heller exortou os engenheiros a discutirem mais as políticas públicas. “Eles precisam ser muito bem formados, fazer bons projetos, boas obras, mas não devem se omitir nem se alienar da discussão das políticas públicas. Às vezes parece uma coisa abstrata, mas tem tudo a ver conosco. Pensar nas políticas públicas, participar, se aproximar dos movimentos sociais, se inteirar dos debates que estão ocorrendo, rejeitar a ideia de que não importa o tipo de prestador, só o resultado. Tem muito esse discurso do Deng Xiaoping: não importa a cor do gato, importa que eles capturem os ratos. Importa sim, porque dependendo do tipo de modelo de gestão, os ratos não serão capturados. Então precisa fazer essa análise, e isso tem a ver com a engenharia, não só com cientista político, sociólogo, geógrafo, porque saneamento é objeto da atuação do engenheiro. Devemos participar mais do debate.”
Fonte: SOS Brasil Soberano
Foto: José Cruz/Agência Brasil