O economista Francisco Menezes, da ActionAid, analisa a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE e alerta para o desmonte das políticas emergenciais, num quadro de retorno da fome ao país
É “assustador” o crescimento da extrema pobreza no Brasil, revelado pelos dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE, divulgados na quarta-feira (6), alerta o economista do Ibase e da ActionAid, Francisco Menezes. “Os números confirmam o que estamos percebendo no dia a dia, a volta da fome no país.” O economista destaca o aumento do grupo de extremamente pobres e da dificuldade de acesso aos serviços públicos, efeitos, na sua avaliação, também da Emenda Constitucional nº 95, que promove concentração de renda ao restringir os investimentos governamentais.
De acordo com o levantamento do IBGE, em média, cerca de 1 milhão de pessoas por ano passaram a ficar abaixo da linha da pobreza, entre 2015 e 2018. O economista critica o fato de, mesmo com o agravamento do quadro social, o governo federal ter adiado novamente a divulgação da pesquisa sobre insegurança alimentar – o chamado Mapa da Fome –, desta vez para fevereiro de 2020. Informações que, tornadas públicas, poderiam subsidiar programas emergenciais para este grupo mais vulnerável da sociedade.
A pesquisa sobre a insegurança alimentar, realizada a cada cinco anos pelo IBGE, foi concluída em agosto de 2018, junto com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e o anúncio de seus resultados estava previsto originalmente para dezembro do ano passado. “Esses dados devem servir para orientar políticas públicas; esse adiamento é muito grave”, diz Menezes. “Quando o presidente da República afirmou que a fome no Brasil era uma mentira, respondi: não vamos discutir nessas bases, divulgue os dados.”
A SIS apontou, em 2018, 13,5 milhões de pessoas vivendo em condição de extrema pobreza, ou seja, com renda mensal per capita inferior a R$ 145,00 (ou US$ 1,9 por dia), segundo metodologia adotada pelo Banco Mundial. Esse total representa 6,5% dos brasileiros e equivale a toda a população da Bolívia, da Bélgica, de Cuba, Grécia ou Portugal. É o maior índice em sete anos, desde 1998, início da série histórica. “Aqueles que estão na condição pior, dentro do quadro geral de pobreza, são os que estão tendo mais dificuldade em conseguir algum tipo de alternativa, uma condição muito aguda de sobrevivência”, afirma Menezes.
Falta de acesso aos serviços
A falta de acesso a bens e serviços públicos é outro dado relevante da Síntese de Indicadores Sociais, aponta o economista. Uma explicação possível, segundo ele, está na Emenda Constitucional nº 95 – a chamada Emenda da Morte ou PEC dos Gastos –, que provocou cortes drásticos nos orçamentos do governo. “É uma retirada do Estado, com os investimentos em serviços públicos definhando, ao mesmo tempo em que as camadas de maior renda podem recorrer aos serviços privados.”
De acordo com o IBGE, 56,2% (29,5 milhões) da população abaixo da linha da pobreza não têm acesso a esgotamento sanitário; 25,8% (13,5 milhões) não são atendidos com
abastecimento de água por rede; e 21,1% (11,1 milhões) não têm coleta de lixo.
“A preocupação deste governo são as garantias da dívida pública”, analisa Menezes. “Acabou de entrar no Congresso nacional a proposta de desvinculação orçamentária, que acaba com a obrigatoriedade dos percentuais mínimos de investimentos em saúde e educação. É o desmonte da Constituição, com a finalidade de dispor de mais recursos para garantia do pagamento da dívida e potencializar o mercado financeiro. O lucro dos bancos comprova isso. Quem está à frente dessas políticas não trabalha com uma noção de nação, mas em outro campo de interesses.”
Desigualdade e racismo
Nessa equação desigual, faz sentido que, apesar da crise, do desemprego, da estagnação econômica, do contexto gravíssimo de pobreza, os 10% mais ricos tenham conseguido aumentar seus rendimentos, especialmente o 1% mais privilegiado que ganha diretamente com o mercado financeiro.
Entre 2012 e 2014, o grupo dos 40% com menores rendimentos apresentou aumento mais expressivo do rendimento médio domiciliar per capita, passando de R$ 329 para R$ 370. A partir de 2015, o rendimento médio deste grupo caiu para R$ 339. Já o grupo dos 10% com maiores rendimentos sofreu uma modesta redução do rendimento médio entre 2012 e 2015 (de R$ 5.408 para R$ 5.373), mas passou a subir nos anos seguintes, resultando, ao final de 2018, em um rendimento médio de R$ 5.764, o maior valor da série.
“Em 2018, houve uma melhora nos indicadores do trabalho, embora tenha sido mais relevante no trabalho informal. O valor dos rendimentos cresceu para toda a população, só que foi maior para os 10% com maiores rendimentos que se apropriaram de uma parcela maior do que os 40% com menores rendimentos, ampliando a desigualdade”, diz o analista do IBGE Pedro Rocha de Moraes.
A concentração da renda aumenta e penaliza, principalmente, a população preta e parda – grupo que representa 72,7% dos pobres (ou 38,1 milhões de pessoas)–, e também as mulheres, que têm o maior índice de subocupação no mercado. As mulheres pretas ou pardas compõem o maior contingente, 27,2 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza.
Em 2018, os brancos ganhavam, em média, 73,9% mais do que pretos ou pardos. E a desigualdade se mantém mesmo quando verificada a remuneração por horas trabalhadas. O rendimento-hora da população ocupada de cor ou raça branca (R$ 17,0) era 68,3% superior ao da população preta ou parda (R$10,10). A maior diferença maior nessa remuneração por hora, entre os trabalhadores com nível superior completo: R$ 32,8 para brancos e R$ 22,7 para pretos ou pardos.
Tanto em relação às inadequações habitacionais como em relação à ausência de saneamento, as proporções registradas são maiores entre pretos e pardos do que entre brancos. Entre pretos e pardos, 42,8% (49,7 milhões) não são atendidos com coleta de esgoto; 17,9% (20,7 milhões), não têm abastecimento de água por rede; e 12,5% (14,5 milhões) não têm acesso a coleta de lixo.
O custo da informalidade
Embora 1 milhão de pessoas tenham deixado a linha de pobreza – rendimento diário inferior a US$ 5,5, medida adotada pelo Banco Mundial para identificar a pobreza em países em desenvolvimento como Brasil – um quarto da população brasileira, ou 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420,00 per capita por mês. O índice caiu de 26,5%, em 2017, para 25,3% em 2018, porém, o percentual está longe do alcançado em 2014, o melhor ano da série, que registrou 22,8%.
Em uma análise preliminar, ainda sem cruzar os dados de emprego, Francisco Menezes atribui essa ligeira queda no índice de pobreza a uma ligeira melhora na renda, originada principalmente da migração de desempregados ou estudantes para atividades informais. “Acredito que houve uma melhora muito tênue no nível de emprego; mas concentrada na informalidade, ao custo de perdas de direitos expressivos, que vão cobrar seu preço no futuro: um trabalhador sem garantias, sem aposentadoria.”
Moraes, do IBGE, reconhece que a oscilação não indica uma reação do quadro, nem é significativa. “Em 2012, foi registrado o maior nível da série para a pobreza, 26,5%, seguido de queda de 4 p.p. em 2014. A partir de 2015, com a crise econômica e política e a redução do mercado de trabalho, os percentuais de pobreza passaram a subir com pequena queda em 2018, que não chega a ser uma mudança de tendência”, informa.
Bolsa Família
Todos os indicadores demonstram que a importância crescente do Bolsa Família e dos programas de segurança alimentar, ressalta Francisco Menezes. Mas as ações nesse campo também estão sendo desidratadas pelo governo. O orçamento do Bolsa Família anunciado para o ano que vem é de R$ 30 bilhões, em comparação a R$ 29,4 millhões este ano, dos quais R$ 22,7 milhões tinham sido pagos até setembro.
O próprio benefício está perdendo valor, sem correção. O pesquisador do IBGE Leonardo Athias explica que, em 2011, o valor de R$ 70 para o Bolsa Família era compatível com o valor global da época, de US$ 1,25 por dia. “Por falta de correções monetárias, hoje o valor de R$ 89 é abaixo do valor global indicado pelo Banco Mundial”, destacou.
De acordo com estimativa da ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Dilma Rousseff, Tereza Campello, citada pelo economista, será preciso tirar mais 400 mil famílias do Bolsa Família com base no orçamento do programa para 2020. “Não é para se festejar, a pasta deveria estar brigando para aumentar os recursos, é uma política emergencial”, afirma Menezes.
O gerente do estudo do IBGE, André Simões, também defende políticas públicas para combater a extrema pobreza, que atinge um grupo mais vulnerável e com menos condições de ingressar no mercado de trabalho.
“Esse grupo necessita de cuidados maiores que seriam, por exemplo, políticas públicas de transferência de renda e de dinamização do mercado de trabalho”, diz. “É fundamental que as pessoas tenham acesso aos programas sociais e que tenham condições de se inserir no mercado de trabalho para terem acesso a uma renda que as tirem da situação de extrema pobreza.”
Outras iniciativas relevantes para a segurança alimentar e nutricional, contudo, também estão sendo desmontadas, com orçamentos reduzidíssimos ou zerados. É o caso do programa de construção de cisternas, estratégico para o Semiárido, e praticamente extinto pelo atual governo federal, diz Francisco Menezes. Segundo ele, as ONGs estão buscando recursos junto a governadores de estados do Nordeste para tentar manter os programas vivos. “O investimento é absolutamente necessário para fazermos essa reversão do quadro de pobreza extrema”, adverte.
Fonte: Senge-RJ