O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgou Nota Técnica que analisa as empresas estatais federais e contesta os argumentos oficiais para a sua privatização, prevista no Programa de Parcerias do Investimento (PPI), lançado em setembro de 2016 pelo Governo Temer. Segundo o levantamento, o patrimônio das 154 estatais federais somava cerca de R$ 500 bilhões em 2016, o equivalente a 8% do PIB nacional. Levando em conta apenas oito delas – Banco do Brasil, Banco do Nordeste, BNDES, Caixa, Correios, Eletrobras, Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) e Petrobras – foram R$ 808,6 bilhões em lucro líquido entre 2002 e 2016, equivalente a uma média de R$ 53,9 bilhões por ano, e R$ 285 bilhões em dividendos distribuídos no mesmo período, ou R$ 19 bilhões/ano.
“Assim, não é de se estranhar o grande interesse na aquisição destes ativos por parte do setor privado – seja nacional ou estrangeiro – e mesmo do setor público de outros países, como é o caso das estatais chinesas”, diz a Nota. “Se as estatais federais distribuem dividendos dessa magnitude, isso significa que são empresas bastante lucrativas, ao contrário dos argumentos que vêm sendo usados para justificar sua privatização.” Considerando ainda os aspectos estratégicos das estatais para garantir serviços e recursos fundamentais ao desenvolvimento nacional e à qualidade de vida das pessoas, como saúde, água, saneamento, o Dieese destaca que as empresas estatais “têm função essencial no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária e abdicar delas é abdicar do próprio desenvolvimento econômico e social de um país”.
Segundo o balanço do PPI divulgado em 20 de dezembro de 2017, dos 145 empreendimentos qualificados, 70 foram leiloados, o que significa 48% de execução do cronograma estimado pelo Programa de Concessões do governo federal. Os investimentos projetados para os próximos anos a partir das concessões são de R$ 142 bilhões, e com as outorgas, R$ 28 bilhões, num total de R$ 170 bilhões.
As estatais federais, somente em 2016, realizaram investimentos da ordem de R$ 56,5 bilhões, sendo 97% aportados três grupos de empresas: Petrobras (85%); Eletrobras (7%); e setor financeiro/bancário (4%), informa a Nota Técnica do Dieese – “Empresas estatais e desenvolvimento: considerações sobre a atual política de desestatização”. Em relação à soma dos investimentos realizados no país em 2016 (a chamada Formação Bruta de Capital Fixo), as empresas estatais foram responsáveis diretas por 6% do total, índice que chegou a 10% em 2012 e 2013. Além disso, os dividendos recolhidos pela União representaram, em média, 10,1% do resultado primário do governo federal entre 2002 e 2016, sendo que, no período 2009-2013, essa participação chegou a 33,6%.
“As estatais federais brasileiras empregavam 530.922 trabalhadores próprios, o que representa 1,2% do total de empregos formais do país em 2016”, diz a NT, observando que, na Inglaterra e na França, esse percentual atingiu, respectivamente, 1,8% e 10% em 2013. Um dado que desmente o mito do aparelhamento e do inchaço do Estado brasileiro e reforça a relevância da atuação governamental em setores estratégicos nos países desenvolvidos.
O plano de privatização capitaneado pelo ministro Moreira Franco, chefe da Secretaria-Geral da Presidência, inclui Eletrobras, a Casa da Moeda, bancos e outras empresas sob controle da União. Além disso, estão sendo leiloados ativos pertencentes ou sob concessão da Petrobras, além de blocos de exploração na camada pré-sal. Por meio do Ministério da Fazenda, o governo federal aprovou também o Plano de Recuperação Fiscal para os estados, que prevê a privatização de empresas estaduais como contrapartida para o recebimento de ajuda financeira do governo federal, independentemente das políticas públicas e dos programas que tenham sido eleitos em cada local, ou mesmo da pertinência técnica da desestatização. É o caso da Companhia Estadual de Água e Esgoto no estado do Rio de Janeiro (Cedae), atualmente na mira privatista do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, a despeito dos protestos frequentes registrados no Estado.
O documento do Dieese observa que o programa governamental “retoma uma série de conceitos hegemônicos na década de 1990, dentre os quais a desestatização e desregulamentação das relações econômicas e sociais”. Mas lembra que,“ao contrário da expectativa do governo, as desestatizações mostraram-se incapazes de solver a crise fiscal – entre 1995 e 2003, a dívida líquida do setor público passou de 28% para 52% do Produto Interno Bruto (PIB); tampouco aumentaram a eficiência e a qualidade dos serviços prestados – vide política de privatização do setor elétrico que levou o país à ‘Crise do Apagão’ em 2001.”
Na verdade, a transferência do controle das empresas nacionais para estrangeiras (desnacionalização da economia), segundo a NT, “contribui pouco para o aumento da taxa de investimento nacional, condição necessária para a retomada de uma trajetória de crescimento econômico sustentável, e ainda pressiona as contas externas na medida em que permite um ‘vazamento’ de divisas para o exterior”. O estudo aponta que “um enorme montante de recursos” saiu do país na forma de lucros e dividendos no período pós crise –cerca de US$ 205 bilhões entre 2008 e 2016, o que representa quase metade do déficit em Transações Correntes, que chegou a mais de US$ 500 bilhões no período.
O ingresso de investimento estrangeiro no país também cresceu: a média anual passou de US$ 12,6 bilhões entre 2001 e 2008 para US$ 57,2 bilhões entre 2010 e 2016, mas parte significativa na forma de fusões e aquisições de um conjunto amplo de empresas privadas e estatais –facilitadas pela crise econômica e política, pela desvalorização cambial em 2015 e pelo PPI via venda de estatais e leilão de concessões até então operadas por empresas estatais nacionais. “Exemplo recente foi o leilão de grandes usinas hidrelétricas operadas pela empresa pública do estado de Minas Gerais (Cemig), que passarão a ser operadas por empresas da China, França e Itália, todas com participação dos governos de seus respectivos países, isto é, participação estatal.”
Tendência internacional
A presença do capital estatal internacional nas operações não surpreende. A nota do Dieese cita estudo da Comissão Europeia, segundo o qual, dentre as 2 mil maiores empresas com ações listadas em bolsas de valores na União Europeia em 2013, aproximadamente 200 estavam sob o controle estatal e outras 200 tinham participações minoritárias do Estado.
“Nos países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as maiores estatais em 2011 detinham cerca de US$ 2 trilhões em ativos e geravam mais de 6 milhões de empregos, excluídas as empresas com participações dos Estados como acionistas minoritários. Mesmo em países caracterizados por governos de orientação neoliberal, como a Inglaterra, as empresas estatais cumprem expressivo papel na economia e têm valor de mercado correspondente a 5% do PIB e quase 2% do total de trabalhadores daquele país. Na França, esses percentuais chegam a 10%. Em economias menores, como a da Suécia, representam aproximadamente 21% do PIB e 4% dos empregos; e, na Finlândia, equivalem a 45% do PIB e a 9% dos empregos gerados.”
Na China, as estatais tiveram papel essencial, tanto do ponto de vista organizativo da sociedade quanto na atração e indução de investimentos para o crescimento do país a partir da década de 1990. “Em 1992, as empresas estatais e as empresas de propriedade coletiva, combinadas, foram responsáveis por 86% da produção total da indústria chinesa. Na primeira década dos anos 2000, esse patamar permaneceu elevado, correspondendo a 64%. Também era expressiva a participação conjunta de unidades estatais e de propriedade coletiva sobre o total de empregos urbanos, equivalente a 41%, em 2000”, afirma a nota.
Setores estratégicos
A presença do Estado é maior em setores estratégicos, como infraestrutura e energia. “A OCDE estimou que as estatais dos setores de energia e de transporte representavam cerca de 40% do valor dos ativos e 43% do total de empregos de todas as empresas estatais analisadas em 34 países selecionados.”
No segmento de geração hidrelétrica a importância estatal é relevante em todos os países de maior capacidade instalada. “Na China, que responde por 27% de toda a capacidade instalada mundial, predominam as empresas estatais hidroelétricas. O mesmo ocorre com o segundo país em capacidade instalada, os Estados Unidos, em que 73% pertencem a órgãos ou empresas públicas. No Canadá e Noruega, onde predomina a fonte hidroelétrica, a participação do setor público chega a alcançar 90%; e, na Índia, atinge 93%. Ainda na Rússia (62%), Turquia (55%) e França (82%), a maior parte das usinas está sob o controle público.” No Brasil, onde o Sistema Eletrobras foi incluído no plano de privatização, as estatais respondem por 54,0% da capacidade hidrelétrica instalada.
O mesmo ocorre na operação de bancos de desenvolvimento, no controle das reservas de petróleo e na oferta de serviços postais, destaca o Dieese. As estatais brasileiras, por exemplo, atuam em pesquisa, inovação e desenvolvimento; indústria de transformação; transporte; energia; abastecimento; financeiro; e comunicação.
“Atividades que proveem serviços essenciais à vida -como captação, tratamento e distribuição de água e geração, transmissão e distribuição de energia elétrica – e que, sob pena de colocarem em risco a economia do país e a própria sobrevivência da população, não podem ser tratados como uma mercadoria qualquer”, alerta a Nota Técnica. “Na maioria dos países, procura-se assegurar, como questão estratégica e de segurança nacional, o provimento de tais serviços na quantidade e qualidade necessárias e a preços acessíveis tanto para consumo da população, quanto dos diversos setores de atividade econômica. Ademais, os problemas no atendimento à população associados à ineficiência da gestão privada desses serviços têm sido a principal justificativa para sua reestatização generalizada nos países em que foram privatizados.”
Para concluir, a Nota Técnica do Dieese chama a atenção para a “dinâmica de funcionamento do setor privado, pautada, primordialmente, pela busca do lucro, o que pode gerar conflito com o atendimento aos interesses e necessidades do bem comum”. Por isso, o papel das estatais, afirma o estudo, “ultrapassa muito a quantia monetária que pode ser arrecadada com sua venda.”
Fonte: Veronica Couto/SOS Brasil Soberano