‘‘Vou denunciar isso enquanto eu respirar’’: A luta de mães órfãs de filhos vitimados pelas forças de segurança pública

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A história de Ana Paula Oliveira, pedagoga e uma das fundadoras do Movimento Mães de Manguinhos, foi completamente transformada pelo amor. A tragédia, o assassinato covarde de seu filho Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, pelo braço armado do Estado trouxe a tristeza, a confusão, a raiva, o sentimento de abandono. Mas foi o amor que fez nascer a militante que hoje luta por muitos filhos e filhas que sobrevivem cotidianamente à guerra racista empreendida pelo Poder Público nas periferias e favelas do Rio de Janeiro.

“Johnatha transforma a minha vida desde que chegou. Foi uma chegada inesperada, uma gravidez não planejada. E ele também me transformou com a sua partida, igualmente inesperada. Poder ser a mãe dele me fortalece e me enche de orgulho. Transformou a minha vida e só tenho a agradecer, deixando alguma contribuição nesse mundo, trabalhando de alguma forma para mudar esse sistema racista e desigual. É pouco o que eu faço, mas se todos pudessem tentar fazer um pouco, o nosso país teria jeito”, explicou Ana Paula no Soberania em Debate de 02/05, em entrevista à jornalista Beth Costa e ao advogado Jorge Folena.

Uma das fundadoras do Movimento Mães de Manguinhos, Ana Paula deu um depoimento emocionado – e emocionante – sobre sua trajetória até a militância pela vida da juventude negra, alvo preferencial de uma segurança pública pensada para a guerra e fora de controle. O filho de Ana Paula teve a vida interrompida por um disparo pelas costas durante uma operação da Unidade de Polícia Pacificadora de Manguinhos. Daí em diante, a confusão foi constante até que o encontro com o coletivo deu sentido ao luto. 

“Todos os dias de manhã, a primeira coisa que eu pensava era ‘por que a polícia matou meu filho’? Eu queria essa resposta. Vi isso também em outras mães. Elas pensavam que podia ser bala perdida, algumas se culpavam pela morte dos próprios filhos. Por isso é tão importante fazer formação política: para que essas pessoas possam entender por que essa violência nos atinge. No meu caso, fui participar de um ato fora de Manguinhos, na Zona Sul do Rio e encontro várias mulheres negras com as fotos de seus filhos assassinados estampadas na camisa. Todos aqueles meninos negros de diferentes favelas contavam a mesma história que eu tinha vivido com meu filho. Histórias de 10, 15 anos atrás. Mas elas seguiam na luta. Quando encontro aquelas mulheres, encontro também a resposta que eu procurava. Meu filho morreu porque era um jovem negro e morador de favela. Vou denunciar isso enquanto eu respirar”, contou Ana Paula.

O Movimento Mães de Manguinhos nasceu em 2014 com o objetivo de acolher o cada vez maior número de mães que contam a mesma história. A solidariedade, segundo Ana Paula, é o fio condutor do trabalho do movimento. A mãe em sofrimento profundo, amparada por outras que viveram o mesmo que ela, se transforma naquela que, no futuro, irá receber outras mães cujos filhos ainda estão vivos, mas marcados pelo braço armado do Estado. Para construir um futuro no qual essas mães parem de chegar ao movimento, elas organizam a revolta e lutam por memória, justiça, direitos e visibilidade, contra o racismo, a impunidade policial e a criminalização de moradores das periferias. E é assim que seguem conectadas aos seus filhos.

“É na luta, na militância que você consegue continuar sendo mãe do seu filho, cuidando dele, defendendo a sua memória. Você também passa a cuidar de outros filhos. Em Manguinhos, não sou mãe só dos meus filhos biológicos, mas de muitos outros. E de outras mães também que, como eu antes delas, precisam agora de alguém que segure sua mão para não sucumbirem. Dentro de mim eu carrego uma dor imensa. Mas também carrego amor. E o amor é muito maior que a dor. Ele me mantém de pé”, contou Ana Paula.

Ela lembra que, embora sejam as polícias, na ponta, como braço executor, que fiquem em evidência na violação cotidiana dos direitos humanos nas periferias do Rio e do Brasil, todo o sistema colabora com a perpetuação do genocídio do povo negro. O caso de Johnatha foi emblemático neste sentido: ele foi criminalizado por uma década, apontado pelos policiais como parte de uma troca de tiros que não aconteceu. O policial foi condenado pela morte – “um ponto fora da curva”, lembra Ana Paula – mas o juiz não viu intenção de matar quando o policial atirou em um jovem, pelas costas, com um fuzil.

“O judiciário também tem as mãos sujas com o sangue do meu filho. Parte da sociedade, também. Pessoas indiferentes a uma luta que não pode ser só das mães que perdem seus filhos para a letalidade policial. A gente luta por memória, verdade e justiça sim mas, acima de tudo, a nossa luta é pela garantia das vidas das pessoas. E não tem nada nesse mundo maior que isso”, finalizou.

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.


Texto:
Rodrigo Mariano/Senge RJ

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Fonte: Senge RJ