Logo que sentamos em sua sala, nosso entrevistado avisa que não quer ter seu nome revelado. “Não é por covardia, e sim por causa dos processos que eu faço parte”, garante, “mas pode gravar tudo que eu vou falar”. Sentado em um escritório espaçoso, decorado de maneira clássica e sem nenhum computador à vista, o senhor elegantemente trajado à minha frente começa a falar de maneira clara e pausada.
Engenheiro, Antonio (nome fictício) trabalhou por 33 anos na CESP (Companhia Energética de São Paulo – antiga Centrais Elétricas de São Paulo). Atualmente, a empresa é a principal produtora de energia elétrica do estado de São Paulo. Na realidade, a CESP passou a existir em 1966, produto da fusão de seis empresas públicas da área de energia. Todos os servidores que trabalhavam nessas empresas passaram a ser funcionários da CESP. Esse foi o caso de Antonio, que em 1952 havia sido convidado a colaborar nos projetos da Usina do Rio Pardo.
Ao longo dos anos, até o começo de 1972, Antonio foi alcançando cargos cada vez mais importantes até ser nomeado vice-presidente da CESP. No entanto, um ano depois, iniciava-se o governo Montoro.
Nessa hora, Antonio eleva o tom de voz e demonstra a indignação guardada até hoje. Pede que eu transcreva tudo que me fala. “O professor Montoro me conhecia da Juventude Universitária Católica, conhecia minha carreira, mas eu percebi que não seria reconduzido ao cargo de vice-presidente, porque eu não era político”.
Antonio então abre um parêntese na conversa e pede novamente que se anote o que ele iria dizer. “Aquilo que nós levamos 50 anos para fazer, o senhor Mário Covas e o senhor Geraldo Alckmin destruíram em um ano”. Ele explica que a forma como a CESP foi privatizada acabou com a empresa. “A CESP acabou, hoje não existe mais”, lamenta.
O engenheiro explica que um dos problemas foi “horizontalizar” a empresa. Isso significa que se antes uma determinada companhia produzia, transmitia e distribuía a energia, a partir da privatização a empresa ficava restrita a apenas uma dessas três atividades.
Portanto, conforme explica Antonio, quando um investidor coloca dinheiro na produção de energia da CESP, ele não pode investir na distribuição dessa mesma energia. Tal processo cria intermediários entre as etapas que transportam a energia ao consumidor final. E Antonio ressalta que, na verdade, o maior prejudicado é o consumidor mais pobre. “Se o custo da energia para o fabricante de mortadela aumenta, ele embute esse custo na mortadela, é simples”, conta.
Dessa forma, o consumidor sai inexoravelmente perdendo, como mostra a conclusão de nosso interlocutor. “Aumentou o preço e piorou a qualidade do serviço prestado. Mas alguém está ganhando dinheiro com isso, o preço da energia está subindo…”
O engenheiro ainda explica o que, segundo ele, a “velha guarda” defendia para o setor: uma empresa estatal unificada, com capital aberto, mas sob controle do Estado. Em sua opinião, a empresa constituída sob tal forma proporcionaria lucros grandiosos à sociedade. Com a constante expansão do mercado de eletricidade em São Paulo, haveria condições, segundo Antonio, de se estruturar uma empresa com forte posição no mercado, que prestasse um bom serviço aos cidadãos. Porém, o sonho foi “quebrado” na privatização.
Outros reflexos
A privatização da empresa teve outras conseqüências, especificamente para seus próprios funcionários. Membro ativo da Associação dos Funcionários da CESP, Antonio explica que, quando foi criada, a CESP tinha uma fundação de auxílio aos seus trabalhadores. E a própria empresa era a sua mantenedora. Em poucas palavras, a principal função da Fundação CESP era complementar a aposentadoria de seus funcionários. Para tal, todos tinham descontos na folha salarial, que eram diretamente destinados à Fundação.
Porém, o governador Paulo Egídio, em meados dos anos 1970, concluiu que o procedimento onerava demais a empresa. Assim, decidiu doar 10% das ações da CESP para a Fundação. As ações serviriam de lastro para a manutenção financeira das aposentadorias. Em seguida, o mesmo governador se convenceu de que essas ações não rendiam os dividendos esperados, ou seja, não se revertiam em maiores benefícios para a fundação. Assim, os montantes destinados à Fundação voltaram a ser novamente aplicados na CESP.
Como contrapartida, o governo aprovou uma lei que obrigava o Estado a pagar as complementações nas aposentadorias. Nesse ponto, Antonio saca alguns documentos e mostra seu holerite. Constata-se que o INSS arca com cerca de 10% do total de sua aposentadoria. Portanto, pela lei, os 90% restantes devem ser pagos pelo Estado, por intermédio da Fundação.
A seguir, o engenheiro conta que o expediente funcionou, para ele, de 1978, ano em que se aposentou, até cerca de oito anos atrás. Foi quando, de acordo com Antonio de maneira “completamente arbitrária e ilegal”, o governo estadual cortou diversas gratificações, resultando numa redução de cerca de 40% dos rendimentos dos aposentados.
Além disso, com o argumento de que não representava nenhuma vantagem para os aposentados, o governo requisitou a devolução dos 10% das ações que a Fundação detinha. Sob intensa pressão, os conselheiros se dividiram sobre a questão e, paulatinamente, cederam. Antonio defendeu que a Associação dos Funcionários entrasse na justiça pleiteando os 10% de volta e a restituição dos cortes feitos. Mas, segundo o engenheiro, todo mundo ficou “apavorado”. Todos tinham medo. E assim ele levou seis anos para convencer seus pares a entrar na justiça.
Hoje, Antonio e os demais aposentados da CESP vivem uma complicada batalha jurídica. A Secretaria da Fazenda contratou o renomado escritório de advocacia Pinheiro Neto para defender a manutenção dos cortes nas aposentadorias. Agora, a decisão está caminhando para o Tribunal Superior do Trabalho. Antonio lamenta: “se o TST der uma sentença favorável a eles, nós vamos continuar recebendo nossa aposentadoria com esse corte”.
Ele reflete sobre a situação que na verdade atinge diversos trabalhadores. “Isso foi o que eu construí ao longo de uma vida. Imagina a pessoa que já tem seus 80 anos de idade, que tem esse dinheiro como única fonte de renda, como é o meu caso, e passa a receber 40% a menos de uma hora para outra”.
Rodrigo Mendes é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania