Por Rennan Martins, para o Blog dos Desenvolvimentistas
O anunciado desastre do Rio Doce, perpetrado pela negligência da Samarco e sua insaciável exploração predatória, trouxe à tona novamente o que para muitos é considerado fato consumado: a controversa desestatização da Companhia Vale do Rio Doce, patrocinada pelo então governo de FHC.
Vendida a preço de banana e sob enorme açodamento, a CVRD perdeu sua missão original, esquecendo-se do vale do Rio Doce, sendo batizada como simplesmente como Vale S.A.
A leniência com que é tratada a entrega deste patrimônio, no entanto não desfaz os enormes vícios e irregularidades nela contidos, segundo nosso entrevistado, o advogado e ex-empregado da CVRD, Eloá Cruz.
Responsável por várias ações populares que demandam a declaração de nulidade do leilão da CVRD, Eloá expõe diversos fatos que nos permitem enxergar a “esculhambação” e desprezo à coisa pública vigente nos anos do príncipe de Higienópolis.
Incômodo para a banca, Eloá não se esquece da “doatização” da CVRD e é por isso alvo de perseguição e tentativas de silenciamento.
Confira a íntegra desta rica entrevista:
Qual a finalidade e tipo da ação por ti movida contra o leilão da então Companhia Vale do Rio Doce?
Eloá: A finalidade é obter a declaração de nulidade não apenas do leilão, que foi o ponto culminante de uma série de procedimentos administrativos inválidos, comprometendo tudo que se fez para vender as ações de capital representativas do controle da COMPANHIA VALE DO RIO DOCE (CVRD). O tipo foi o da ação popular, instrumento conhecido do ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição do Império de 1824 (com exceção da Constituição de 1891 e a de 1937), mantido e ampliado na Constituição Federal de 1988 como uma das garantias fundamentais de isonomia (igualdade) e assim definido no artigo 5°, inciso LXXIII: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
A ação popular é regulada pela Lei n° 4.717, de 29/06/1965, que, apesar de promulgada em data anterior, foi acolhida (recepcionada) pela Constituição Federal em vigor e ampliada em seu alcance.
Em que bases se sustentam sua tese? Que fatos tornam o leilão passível de anulamento?
Eloá: Não se trata de uma tese minha, como se fosse um fruto de capricho pessoal tendencioso. Conforme esclareci na questão anterior, a possibilidade de qualquer cidadão propor ação popular está prevista na Constituição Federal e quem estiver convencido de que um ato da Administração Pública está contaminado e é lesivo ao patrimônio público, inclusive sob o aspecto da MORALIDADE, pode pleitear à Justiça que isso seja declarado.
Quando se fala na venda da CVRD é fundamental considerar que a “venda” consistiu na alienação do controle acionário da empresa, que já tinha a natureza de entidade privada. Ou seja, tratou-se da venda de coisas (ações de capital) pertencentes ao Estado. Acontece que a nossa Lei Maior, a Constituição Federal exige como condição sine qua non potest, isto é, condição essencial, que a alienação de qualquer item do patrimônio público obedeça ao princípio da licitação. Isto está fixado por escrito no artigo 37, inciso XXI, da Carta e o passo a passo está na Lei n 8.866, de 21/06/1993, que é conhecida como Estatuto das Licitações. Nessa lei ordinária estão estabelecidas várias regras que não podem ser descumpridas, sob pena de se configurar nulidade, este conceito tem de ser levado em conta de acordo com lições primárias em Direito, a exemplo da seguinte: “Nulidade é a pena pela qual se privam os atos jurídicos dos efeitos que teriam, se praticados conforme a lei” (Professor HERMES LIMA, em Introdução à Ciência do Direito”, Ed. Freitas Bastos, 1958, pág. 75).
Estabelecidos esses pressupostos, o que não faltou nos procedimentos para venda do controle da CVRD foram nulidades. Bastava demonstrar uma delas para invalidar tudo que se fez para alienar o controle acionário da CVRD, mas, sem esgotar todas, resumo as dez seguintes:
(1ª nulidade) o fato de serem inválidos todos os atos e contratos praticados com base no Decreto n° 1.510, de 1°/06/1995, que incluiu a CVRD no PND (Programa Nacional de Desestatização), porque esse edito estava fora do poder discricionário do Presidente da República, além de representar negativa de vigência do artigo 173, § 1, da Constituição Federal na forma então vigente.
(2ª nulidade) o fato de se ter tornado confessada e notória a abdicação de competência do BNDES, como gestor do PND, e da Comissão de Licitação Especial do BNDES para o PND, quanto à elaboração do Edital PND-A-01/97 CVRD, quando transferiu inteiramente para o vencedor do anterior Edital PND/CN-02/95, publicado no DOU de 02/08/1995, não só as cinco tarefas básicas de:
execução da avaliação econômico-financeira do Sistema CVRD,
a avaliação dos direitos minerários sob o controle da CVRD e de suas controladas,
o levantamento das ações sociais desenvolvidas pela CVRD e suas controladas,
o diagnóstico da situação ambiental da CVRD e suas controladas, mas também
a montagem e execução do processo de desestatização, inclusive a “versão final do edital e do prospecto de venda das ações, da informação ao público, do processo sintético de venda aos empregados E do documento em língua inglesa para divulgação aos investidores estrangeiros, após a incorporação das alterações eventualmente determinadas pelo CND”. (7)
(3ª nulidade) o fato de o conteúdo da Resolução CND n° 297 e do Edital n° PND-A-01/97 CVRD constituírem, na essência, um produto concebido e elaborado pela consultora norte-americana MERRIL LYNCH, contratada sob a aparente e meramente formal liderança da consultora PROJETA, CONSULTORIA FINANCEIRA S/C LTDA. posteriormente identificada como um braço abrasileirado da NM ROTHSCHILD & SONS LIMITED (8) para o denominado SERVIÇO “B” do processo de desestatização da CVRD (9)
(4ª nulidade) o fato de haver dúvida quanto ao critério de escolha da consultora norte-americana MERRIL LYNCH, no resultado da Concorrência n° PND/CN-02/95, desde que a própria CVRD contratou a consultora GOLDMAN SACHS como advisor porque esta “tirou a nota técnica máxima na concorrência feita pelo Banco”.
(5ª nulidade) o fato de a consultora norte-americana MERRIL LYNCH manter relação, pelo menos indireta e não menos comprometedora por isso com o Grupo ANGLO AMERICAN, da África do Sul – este tido como “favorito” para arrematar o bloco de ações de controle da União na CVRD – o que vinha sendo objeto de comentários em todos os órgãos da mídia impressa, discrepando o noticiário apenas sobre se haveria efetiva participação acionária recíproca entre a verdadeira condutora do processo de “desestatização” e o licitante sul africano, ou se a relação entre eles estava circunscrita a assuntos administrativos e comerciais (10).
(6ª nulidade) o fato de ter sido informado ANTES da divulgação do Edital PND-A-01/97 CVRD (cf. Jornal do Brasil, de 31/01/97, Seção Finanças) o começo de formação de um consórcio entre companhias mineradoras estrangeiras para “aquisição de parte da Vale, no valor de US$ 3 bilhões”), visando a contornar a restrição que lhes seria feita no edital do leilão, mediante representação desse consórcio estrangeiro no Brasil pela MINORCO (empresa com sede em Luxemburgo, representante dos ativos não africanos do Grupo ANGLO AMERICAN), credenciada para o consórcio porque aparentemente, não possuía nenhuma mina de ferro (SIMULAÇÃO). O preço do lance vitorioso no leilão de 06/05/1997 na BVRJ foi de R$ 3,349 bilhões de reais, mas o ágio de R$ 340 milhões de reais teria sido objeto de renúncia fiscal, reduzindo o valor líquido da venda ao que fora preanunciado em Joahnesbugo: a prova disso dependeria do regular processamento das ações populares atualmente sobrestadas.
(7ª nulidade) O fato de terem sido propaladas formações de consórcios, no Brasil, para a aquisição do bloco acionário de controle da CVRD, um deles tendo como líder o Grupo VOTORANTIM, chefiado pelo falecido empresário ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES; outro, a COMPANHIA SIDERÚRGICA NACIONAL (“CSN”), em parceira com o indigitado Grupo ANGLO AMERICAN; outro consórcio com a participação do Grupo BRADESCO, associado a outra mineradora sul-africana GENCOR, havendo o pormenor de que tanto a multifacetada consultora norte-americana MERRIL LYNCH – tida pelo menos como prestadora de serviços do Grupo ANGLO AMERICAN – quanto o BANCO BRADESCO S. A. compõem a associação denominada CONSULTOR no Edital n° PND-A-01/97 CVRD dado a conhecimento oficial no dia 06/03/1997. Independente de qual fosse o grupo vencedor, a promiscuidade divulgada contrariou o espírito e finalidade da Lei n 8.666/1993 (o Estatuto das Licitações).
(8ª nulidade) O fato de que foi divulgada pela Revista VEJA (Edição 1.486, de 12/03/97) a informação de que haveria atividade indireta do Presidente da República FERNANDO HENRIQUE CARDOSO no processo licitatório, com o manifestado propósito de manter “a Vale sob o comando de brasileiros”, porém, ao ser cientificado pelo empresário BENJAMIN STEINBRUCH da possível parceria do empresário ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES com o Grupo ANGLO AMERICAN, teria declarado nada poder fazer a respeito. A gravidade disso é que, independente do resultado da intervenção do ex-presidente FHC, a favor de um ou outro licitante, esse tipo de diálogo constitui violação no mínimo ao princípio de isonomia (igualdade das partes concorrentes) em qualquer licitação no Brasil (11).
(9ª nulidade) O fato de que, embora tivesse anunciado de início a montagem de um modelo de alienação das ações da UNIÃO semelhante ao da empresa argentina Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), em que haveria pulverização total das ações, democratizando o capital e dificultando a ação monopolizadora de grupos empresariais, a MERRIL LYNCH ofereceu, no modelo encampado pelo gestor BNDES e pelo próprio CND – SEM QUE ESTES FORMULASSEM AS “EVENTUAIS ALTERAÇÕES” A QUE SE RESERVARAM NO VICIADO EDITAL PND/CN-02/95 – a divisão das ações ofertadas em blocos, numa forma que atendeu as expectativas do seu cliente ou associado Grupo ANGLO AMERICAN.
(10ª nulidade) O fato de que era de conhecimento geral o quadro comprometedor evidenciado no processo do Edital n° PND-A-01/97 CVRD, como se podia inferir do artigo assinado por FRANCISCO F. A. FONSECA – ex-presidente da DOCEGEO – publicado em jornais expressivos, entre eles o DIÁRIO DO PARÁ (pág A-2, de 23/02/97), do qual se reproduziu em medidas preparatórias antecedentes ao ajuizamento de ações populares alguns trechos, como esse a seguir: “A lucratividade da Vale aumentará muito no futuro próximo, devido a dois fatores: liquidação da dívida de Carajás e abertura de grandes e lucrativas minas de ouro. Este aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal será mentirosamente atribuído à privatização. Economistas bisonhos louvarão as virtudes da privatização e apresentarão a Vale como exemplo. A economia deixou de ser uma ciência séria e se transformou em uma numerologia enganadora, a serviço dos interesses dominantes”.
Há outros questionamentos à venda da Vale na justiça além do seu? Em que situação se encontra a sua e demais iniciativas?
Eloá: Sim, além das ações populares propostas por inúmeros cidadãos, foram ajuizadas também ações civis públicas pelo Ministério Público Federal, associações corporativas e sindicatos diversos. Se considerarmos a natureza de ambas, as duas ações são constitucionais, com a diferença de que a ação popular somente o cidadão (pessoa natural) pode ter a iniciativa; a ação civil pública somente as pessoas jurídicas definidas na Lei 7.347, de 24/07/1985. Sem distinguir umas das outras, eu já contei nas páginas de acompanhamento eletrônico 107 ações constitucionais contra a venda do controle da CVRD propriamente dita. Destaco uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal do Rio de Janeiro, onde foi iniciada em 22/04/1997 e recebeu o número 97.00178676. A ação popular em que estou em causa própria, litisconsorciado (emparceirado) com mais dois colegas, ganhou o número 97.0018023-9, foi iniciada em 25/04/1997 e distribuída a meu pedido por dependência à ação civil pública do MPF.
Nessa ação popular me foi concedida uma ordem liminar para suspender o leilão da CVRD marcado de início para o dia 29/04/1997; numa segunda ação popular proposta em nome da Cidadã LUCIANA DOS SANTOS foi concedida nova liminar e suspenso o leilão remarcado para o dia 02/05/1997. Ao todo, além daquela em que estou como autor, sou patrono de mais 14 ações populares, todas com o mesmo pedido de declaração de nulidade da venda do controle da CVRD. Finalmente, por causa de um incidente processual provocado em nome da UNIÃO e do BNDES no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que foi o Conflito de Competência n 19.686/DF, todas as ações constitucionais foram remetidas à Justiça Federal em Belém/Pará, para ficarem dependentes de uma antiga proposta em 1995 pelos Advogados MARIO DAVID PRADO SÁ e ILSON JOSÉ CORREA PEDROSO. Foi uma manobra ardilosa, porque os temas discutidos nessa ação popular de 1995 não se confundiam com os debatidos em 1997, que giraram em torno dos vícios manifestados com os editais (i) para contratação do consórcio incumbido de avaliar o acervo da Mineradora e (ii) para a venda do controle propriamente dita.
Tanto as ações populares em que advogo em causa própria e em que sou patrono de outros cidadãos, quanto as outras ações constitucionais sobre o assunto estão paralisadas no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Brasília), por efeito de uma ordem liminar proferida pelo ministro GILMAR FERREIRA MENDES em 15/09/2010. A lei comum (CPC, artigo 265, § 5°) limita em 1 ano o tempo de suspensão dos processos judiciais, mas, nesse caso da CVRD, o ministro condicionou a retomada da tramitação normal ao encerramento do Recurso Extraordinário n° 633.954 interposto em nome da CVRD sob nova direção em dezembro de 2010 e o assunto vem sendo “empurrado com a barriga”. Então, enquanto não transitar em julgado a decisão do RE e revertida a ordem de suspensão geral as ações constitucionais não podem ter sequência natural. Em tentativa de forçar essa possibilidade de prosseguimento, impetrei no início deste ano o Mandado de Segurança n° 33.981, apontando como autoridades coatoras por atos omissivos, o ministro GILMAR MENDES e o presidente do STF, RICARDO LEWANDOWSKI, este porque tem retardado o exame do impedimento do relator, GILMAR, que aleguei ser comprometido por causa de vínculos com o ex-presidente FERNANDO HENRIQUE CARDOSO e este é réu na maioria das ações indevidamente suspensas.
Por que tão pouco se ouve falar das irregularidades envolvendo a Vale? O que explica a falta de interesse no caso?
Eloá: Acho que é porque, depois de encerrado o leilão na terça-feira 06/05/1997, o público em geral ter passou a considerar a venda do controle da CVRD um fato consumado. Enquanto, por um lado, as decisões judiciais somente são publicadas em Diário Oficial, que quase ninguém lê, os usurpadores da CVRD dispõem de imensos recursos financeiros e passaram a promover intensa campanha publicitária, dando a impressão de que não é realidade a profecia do ex-Superintendente de Geologia da CVRD, isto é, o “aumento de lucratividade, resultado de décadas de administração competente sob regime estatal” mentirosamente atribuído à “privatização”.
Diferente do que tem acontecido com outros capítulos escandalosos posteriores no Brasil (casos do “mensalão”, da operação “lava-dejeto” e outras aberrações) a maior parte do público considera a venda do controle da CVRD a preço vil um episódio ultrapassado.
Na tentativa de manter aceso o interesse público sobre o caso da CVRD e sobre a possibilidade real de vir a ser declarada a nulidade do negócio jurídico da sua transferência a particulares, abri um Blogue na Internet com o nome MUÇUNGÃO. Esta é uma palavra originada da língua africana banto, significa “beliscão” e com o blogue tento despertar a atenção do público para a situação de pendência judicial do caso da CVRD. Faço isso desde 04 de novembro de 2005, logo depois do julgamento de dezenas de ações populares no TRF-1 (Brasília), quando se decidiu serem nulas as sentenças proferidas na Justiça Federal do Pará contrárias aos cidadãos inconformados com a venda do valioso item do patrimônio nacional.
Alguns artigos publicados nesse blogue (endereço “http://www.alafin.zip.net”) provocaram irritação dos administradores adventícios da CVRD e eles, usando o nome da empresa, moveram duas medidas para forçar o meu silêncio: uma ação judicial, pela 31ª Vara Cível do Rio de Janeiro (capital) e uma representação à Seção da Ordem dos Advogados no Rio de Janeiro, com o propósito de cassar minha inscrição de advogado, a pretexto de que meus escritos eram ofensivos às pessoas dos dirigentes. Depois de 08 anos de processamento, a ação judicial começada em 04/09/2007 foi arquivada em 15/05/2015, mas a parte da sentença que me foi favorável recebeu confirmação do Superior Tribunal de Justiça, com o reconhecimento do meu direito fundamental de cidadania de livre manifestação do pensamento (conforme a Constituição Federal de 1988, artigo 5°, incisos IV e IX). A representação disciplinar na OAB/RJ (que é um processo sigiloso, mas em que eu abri mão do segredo porque desejava divulgar o constrangimento abusivo), também foi arquivada em 08/04/2010. Nas duas medidas a pessoa jurídica da CVRD sob nova direção foi patrocinada pelo advogado CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, que era e continua sendo Conselheiro Federal da OAB.
Há relação entre o desastre das barragens da Samarco e a privatização da Vale? Se sim, qual?
Eloá: Em minha opinião há relação direta, sim, entre a desestatização equivocada da CVRD e o desastre das barragens da SAMARCO. Tanto quanto a desestatização tem relação direta com a suposta rentabilidade da exploração da CVRD depois da terça-feira 06/05/1997.
Tudo se prende à ideia de que a alienação do controle da CVRD deve ser declarada nula. Não apenas por causa do preço vil, pago pelos arrematantes com moeda podre e financiamento discutível do BNDES. Mas, sobretudo por causa das nulidades gritantes, que já resumi em parte ao responder a 2ª pergunta desta entrevista.
A questão toda é que, se for declarada nula (e não simplesmente anulada) a venda do controle acionário, tudo terá de voltar a ser o que era no dia 06/05/1997 e se esse retorno ao estado anterior não for possível, os responsáveis e beneficiários (diretos e indiretos) terão de pagar indenizações por dano material e moral em espécie (dinheiro vivo). Foi por essa razão que, principalmente durante o período de domínio absoluto do Banco BRADESCO, os réus das ações populares alardearam contra a realidade dos fatos, repetindo a mentira de que o leilão do controle aconteceu na quarta-feira 07/05/1997 e não no dia anterior. O grupo BRADESCO precisa dessas 24 horas porque foi nesse período que ele conseguiu se tornar titular de uma grande quantidade de debêntures conversíveis em ações da CVRD, frutos de um financiamento simulado ao banqueiro Daniel Dantas.
O ponto nevrálgico é que a Lei da Ação Popular (Lei 4.717, de 29/06/1965) determina no artigo 11 que “a sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele”. Só que, nessa hipótese, terão de ser aplicadas não só as regras dessa lei especial que define o que sejam responsáveis e beneficiários (vejam as transcrições no quadro final*), mas também as normas do Código Civil em vigor, entre as quais aquelas normas que determinam a responsabilidade pela compensação de lucros cessantes, isto é, além do que o Estado efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”. Alguém tem dúvida do que o Estado Brasileiro deixou de receber e de lucrar durante esse tempo posterior a 06/05/1997?
O governo anunciou conjuntamente à Samarco, Vale e BHP Billiton que será criada uma fundação para promover a recuperação socioeconômica e ambiental do Rio Doce. Você considera adequada a iniciativa? Qual seria a forma ideal de promover esta missão?
Eloá: Acho absurda e inexplicável essa iniciativa. As poucas pessoas que me acompanham ao longo dessas últimas duas décadas sabem que sou daqueles que consideram ainda em vigor o dispositivo do Decreto-Lei n° 4.352/1942, que, ao criar a CVRD determinou, no artigo 6º, § 7º: “O dividendo máximo a ser distribuído não ultrapassará de 15% e o que restar dos lucros líquidos constituirá um fundo de melhoramentos e desenvolvimento do Vale do Rio Doce, executados conforme projetos elaborados por acordo entre os Governos dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, aprovados pelo Presidente da República”.
Quem ou o que autorizou o BNDES, gestor oficial do Programa Nacional de Desestatização a abdicar desse fundo e transferir para os arrematantes do controle da CVRD “o que restar dos lucros líquidos” depois de separado o dividendo máximo atribuído aos acionistas, incluindo o(s) acionista(s) majoritário(s)?
Falta vontade política e coragem cívica dos governantes do momento para exigir da CVRD, desestatizada ou não; “privatizada” ou não; “bradesqueada” ou não, o percentual de lucros líquidos destinado a “melhoramentos e desenvolvimento do Vale do Rio Doce”, principalmente nesses últimos dias em que o BRADESCO está comemorando terem sido superadas suas expectativas, ao constatar que seu lucro líquido ajustado em 2015 alcançou R$ 17,8 bilhões de reais, montante 16,4% superior ao registrado em 2014 (vejam no “Jornal do Commercio”, Empresas, pág. B 2, 29/01/2016).
É bem verdade que na mesma página consta que a CVRD sob nova direção divulga que não pretende pagar remuneração aos acionistas em 2016, “diante da volatilidade dos preços das commodities minerais”. No entanto, ninguém leva em conta que o Banco BRADESCO é um dos principais réus das ações populares hostis à venda do controle da CVRD em 06/05/1997 e que, três anos depois, a história financeira do Brasil passou a registrar que:
“A Bradespar foi constituída em março de 2000 pela cisão parcial do Banco Bradesco para atender à regulamentação do Banco Central quanto às participações societárias não financeiras e ao mesmo tempo permitir uma administração mais ativa desses investimentos não financeiros. Como uma Companhia de investimento, sua receita operacional é proveniente do resultado de equivalência patrimonial dos investimentos e dos ganhos de capital decorrentes de alienações. (…) § Na CVRD, a Bradespar implementou com sucesso diversas iniciativas juntamente com os demais acionistas, adicionando valor aos seus investimentos. Destacam-se, entre outras, a reestruturação acionária da CVRD com a saída da CSN do bloco de controle, a redefinição do core business com foco em mineração e logística, a aquisição da Ferteco, Samitri, Samarco e Caemi, a compra das participações da Sweet River e do Opportunity na Valepar, controladora da Vale, e a redefinição do modelo de governança corporativa da CVRD. Para Renato da Cruz Gomes, Diretor da Bradespar, essas iniciativas permitiram a criação de um grupo de controle coeso, focado na administração do negócio da CVRD, o que certamente foi a peça chave para a sua história de sucesso que refletiu-se não somente no seu desempenho operacional e financeiro, mas também no retorno para os seus acionistas” (vejam em www.mzilios.com/arquivos/MZ_090505_port.pdf).
Afirmo eu, ELOÁ DOS SANTOS CRUZ, que a criação da BRADESPAR três anos depois do leilão de 06/05/1997, com o uso dos ativos que o Banco BRADESCO conquistou fraudulentamente no leilão foi a prova mais cabal da esculhambação (não há outro termo) do procedimento de desestatização do controle da CVRD. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Ministério Público Federal (MPF) não viram porque não quiseram ver, porque entre as condições para se proceder a uma cisão empresarial está a de realização de uma auditoria jurídica, feita por escritório independente, que responde a um questionário apresentado pelo promotor da cisão. Hoje, quem perguntar ao auditor jurídico da cisão BRADESCO / BRADESPAR porque não informou a relevância de existirem tantas ações populares questionando a desestatização da CVRD terá de resposta o óbvio de que nada disse porque não lhe foi perguntado.
A que fatores você atribui a diferença de tratamento entre, por exemplo, a Operação Lava Jato e o caso da Vale, ou o desastre da Samarco? Por que as coberturas são tão diferenciadas?
Eloá: Não posso identificar esses fatores, que obedecem a interesses inconfessáveis e dissimulados. Mas é manifesto o critério discriminatório, seletivo, contra os suspeitos. Aparentemente é louvável o rigor com que se procura coibir os desmandos típicos de corrupção na administração pública. Mas, nesse caso mesmo da desestatização da CVRD, em que estão caracterizados às escâncaras vários ilícitos administrativos, algumas posições adotadas pelo Ministério Público Federal e pelo próprio Poder Judiciário são de deixar o queixo cair. Ponho exemplos:
a) numa medida cautelar de protesto, notificação e interpelação foi expedida carta precatória para São Paulo para se intimar o Sr. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, mas, depois de várias diligências infrutíferas, o oficial de justiça certificou nos autos que deixou de proceder à intimação em deferência à celebridade do ex-presidente da República (?);
b) na Ação Popular 200251010187644, em que reivindiquei em favor do Tesouro Nacional o percentual destinado ao fundo para “melhoramentos e desenvolvimento do Vale do Rio Doce”, na longa defesa do ex-presidente FHC ficaram por escrito os efeitos desejados pelos governantes da época com o leilão da terça-feira 06/05/1997, assim:
“… essa transformação que sofreu a CVRD, deixando o domínio estatal para ingressar na livre iniciativa, fez com que todas as normas legislativas editadas por seu anterior acionista controlador (UNIÃO) perdessem imediatamente a eficácia, ressalvadas as disposições comuns a todas as empresas, relativas à regulação do estado do processo econômico.
A partir desse momento, pois, a companhia não mais se sujeitava aos ditames da lei 8.666/93, sendo livre para efetuar suas transações econômicas com quaisquer pessoas, bem como não tinha mais a obrigação de prestar suas contas ao Tribunal de Contas da União”. [Cabe perguntar: que transações eram essas, que não podiam ser conhecidas pelo Tribunal de Contas da União? O que sabe o Tribunal de Contas da União sobre os montantes recolhidos, ou não, ao fundo público desde o resultado financeiro positivo em 1954 até maio de 1997? Qual a inconveniência para o Interesse Público se o “anterior acionista controlador (União)” recebesse a maior parte dos dividendos (quase R$ 9 bilhões, somente em 2005)? Qual a vantagem para o Povo Brasileiro de trocar o “anterior acionista controlador (União)” pelos investidores da Bolsa de Valores de Nova Iorque? Pior, ainda: por que os investidores beneficiados com o fundo abdicado não foram informados expressamente do contencioso popular instaurado no Brasil? Por que somente agora, por causa da tragédia acontecida em Mariana e o mundo inteiro descobriu as consequências ruins da exploração mineraria desenfreada com foco na lucratividade, os investidores norte-americanos resolveram processar a CVRD para obter indenizações com base em alegações de “declarações falsas”, “engodo” e “omissão” imputadas ao atual presidente MURILO FERREIRA e sua diretoria? (vejam na matéria divulgada em O Globo de 26/01/2016: http://oglobodigital.oglobo.globo.com/epaper/viewer.aspx)
Então, particularmente vejo com muita reserva essa exaltação de delações premiadas, que depõem contra a capacidade e eficiência da nossa Instituição Fiscal das Leis, que parece ficar dependente da boa-vontade de corruptos denunciarem seus parceiros de falcatruas. E fica no ar a dúvida quanto à recuperação dos montantes que se dizem desviados ou apropriados indebitamente.
Já no caso da CVRD os ilícitos são quase todos formais. A tipificação da ilicitude não depende de custosas e sofisticadas investigações. Basta ter como referência as prescrições legais e confrontar os procedimentos adotados ou omitidos, a leniência, os abusos de autoridade flagrantes. Para simplificar, basta lembrar a fraudulenta avaliação prévia do acervo da CVRD, prenhe de exemplos de sonegação e subavaliação de bens. Ignorar as jazidas de nióbio, ou subestimar o valor de 900 toneladas de ouro e fazer de conta que não existem jazidas de minerais e minérios radioativos não são coisas desprezíveis. Só não presume a falcatrua quem for por demais inocente; e não procura se certificar da verdade quem não quer.
O que alguém interessado na Vale e no Rio Doce pode fazer para acompanhar os processos contra o leilão?
Eloá: Esse alguém supostamente interessado precisa antes de tudo ter curiosidade de conhecer seus próprios direitos de cidadania. Há uma regra na Constituição Federal em vigor, no elenco do artigo 93, que diz o seguinte: “IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (…)”.
Com base nisso todos nós, cidadãos e jurisdicionados, temos o direito de saber como e porque nossas autoridades de qualquer nível do Poder Judiciário proferem suas decisões. Então, independente da iniciativa dos veículos de comunicações (rádio, televisão, imprensa escrita), cada cidadão pode acompanhar o andamento de processos e saber porque o juiz, desembargador, ministro, câmara, turma, corte especial, plenário etc. julgaram assim ou assado. Hoje em dia, com os recursos eletrônicos da Internet quem quiser pode acessar os portais do STF, STJ, Justiça Federal de Primeiro e Segundo Graus e se inteirar sobre o andamento de processos. Não é por mera casualidade a existência da TV Justiça, por exemplo. Repito a lição recorrente do falecido Jurisconsulto HELY LOPES MEIRELLES sobre ação popular: “O beneficiário direto e imediato da ação não é o autor popular, é o povo, titular do direito subjetivo ao governo honesto.”
Então, dou o número da minha ação popular 199739000108178 (cuja sequência de tramitação pode ser vista nos sites http://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?); os processos AC 2.716, RE 633.954, AImp 9, AC 3818 e MS 33981, podem ser localizados no Portal do STF. Falo dos meus pelo conhecimento óbvio que tenho deles, mas o que me chega a conhecimento de outros também procuro divulgar.
O que é preciso é que, independente da corrente ideológica ou partidária de cada qual, as pessoas se compenetrem de que ação popular é assunto de interesse geral e até (ou principalmente) os comunicadores da mídia em geral, sendo brasileiros e legitimados constitucionalmente por serem portadores de título eleitoral, tenham consciência de que os autores de ação popular não são “malucos, histéricos e carnavalescos” como disseram um dia o ex-presidente FERNANDO HENRIQUE CARDOSO e um de seus cortesãos, também réu nas minhas ações populares.
Gostaria de acrescentar algo?
Resposta: Sim. Gostaria de ressaltar que, a despeito do ceticismo de muitos, ainda é possível fazer realidade o sonho de retomar o item inestimável do patrimônio nacional que é a COMPANHIA VALE DO RIO DOCE, obtendo para o Estado compensação material e moral contra o uso abusivo que tem sido feito dela a partir do maldito leilão da terça-feira 06 de maio de 1997. E na esteira disso, demonstrar ao mundo inteiro que existem boas leis verdadeiras e juízes decentes no Brasil.
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(*) Complemento da resposta ao quesito n° 5
Na Lei n° 4.717, de 29/06/1965 (Lei da Ação Popular):
“Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”
“Art. 7º (…): III – Qualquer pessoa, beneficiada ou responsável pelo ato impugnado, cuja existência ou identidade se torne conhecida no curso do processo e antes de proferida a sentença final de primeira instância, deverá ser citada para a integração do contraditório, sendo-lhe restituído o prazo para contestação e produção de provas, salvo, quanto a beneficiário, se a citação se houver feito na forma do inciso anterior.”
“Art. 11. A sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa”.
“Art. 17. É sempre permitida às pessoas ou entidades referidas no art. 1º, ainda que hajam contestado a ação, promover, em qualquer tempo, e no que as beneficiar a execução da sentença contra os demais réus”.
Fonte: Blog dos Desenvolvimentistas
(Foto de abertura: Pragmatismo Político)