Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que no ano de 2012, por região geoeconômica, na Amazônia Legal, formada pelos estados da região Norte, mais parte do Maranhão e Mato Grosso, se concentram 58,3% dos assassinatos (21 de 36); 84,4% das tentativas de assassinato (65 de 77); 77,4% dos ameaçados de morte (229 de 296); 62,6% dos presos (62 de 99) e 63,6% dos agredidos (56 de 88).O número de conflitos no campo tem aumentado nos últimos dez anos e se deve ao processo histórico de concentração fundiária no Brasil. Os movimentos sociais travam há anos a luta por um modelo de desenvolvimento de distribuição de renda e terra. Mas no meio do caminho: violência, capital, agronegócio e latifúndio. Estes elementos acirram a disputa pela terra. A reforma agrária é central na solução desta questão estrutural. No Pará, o número de lideranças ameaçadas é alto. Uma delas é a integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Pará (MST-PA), Maria Raimunda de Souza. Mesmo vivendo sob constante ameaça, ela se mantém firme na luta.
Como começou sua militância e seu contato com o MST?
Comecei no movimento de igreja e grupo de jovens, no Pará. No MST, tive meu primeiro contato em 1994, quando estava na universidade de letras e integrava o Diretório Central do Estudantes. Nós, estudantes, participávamos das mobilizações e reuniões e apoiávamos as ações do movimento.
Você cresceu e vive na região do Araguaia, local onde tivemos um dos maiores massacres da história brasileira. Quais as lembranças dessa época?
Minha família é do interior da região do Araguaia e vive no Pará desde 1958. Nasci em Marabá, mas vivi em Brejo Grande do Araguaia. Vivenciamos o período da Guerrilha. Foi um período muito difícil. Muitos camponeses não sabiam o que estava acontecendo e era uma pressão cotidiana do Exército Brasileiro. Eu nasci em 1974, no final da Guerrilha e, mesmo assim, lembro de ter ido, ainda criança, às caravanas do Major Curió. Passamos a viver sob ameaça permanente do Exército nos postos de saúde, nas escolas e casas. Quem mandava era o Exército. Toda a cidade era vigiada. Eu fui crescendo nesse ambiente. O major Curió passou a ser figura de controle da região. Lembro que ele era tido como se fosse o presidente da república, um herói do povo. O povo o carregava no colo e ocorriam caravanas imensas para recepcioná-lo. Me lembro de ter ido a uma dessas caravanas ainda muito pequena com minha família. Quem não fosse já era enquadrado como subversivo e era perseguido. Naquela época construíram no imaginário popular a figura de que guerrilheiro era terrorista, quando, na verdade, os guerrilheiros mantinham uma relação de solidariedade com os camponeses, principalmente com momentos de intercâmbio em práticas de educação e saúde.
Como é militar na região Norte, uma das mais conflituosas na disputa pela terra?
A região Norte é um território de disputa permanente, seja pela terra, biodiversidade ou recursos minerais. Aqui, ou se luta ou se luta. Lutar é a única saída dos trabalhadores. Muitos dizem que morrem se lutam. Mas a exploração do trabalho antecipa a morte e vai matando aos poucos pela exploração. Esta é uma estratégia do capital e, por isso, lutar é uma condição de vida. A disputa pela riqueza é diária por aqui.
Já recebeu muitas ameaças de morte?
Eu e outros dirigentes de movimentos sociais recebemos ameaças das mais diversas formas, desde a tentativa de cooptação até a ameaça concreta de morte. Aqui nós temos ocupações de mais de dez anos e quando intensificamos o processo de resistência as ameaças aumentam. Em alguns casos, promovem a execução imediata e em outros a violência ocorre pela pressão psicológica, a mais comum no Pará, como perseguição de carros, telefonemas. Dar visibilidade a esta violência é fundamental. Quando entramos no confronto direto, os pedidos de prisão são intensificados para as lideranças do movimento. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) alega que o governo federal não está executando as liminares de despejo das ocupações e que os fazendeiros têm que resolver por eles mesmos. Fica claro que são ações arquitetadas para reforçar a violência. E sabemos o tamanho da impunidade da violência no campo. Basta lembrar do massacre de Eldorado dos Carajás ou o assassinato de irmã Dorothy.
Para além da violência física, que outras violências são praticadas?
A violência se instaura em outros campos, inclusive nas ações institucionais, isto é, a pessoa ameaçada fica refém da própria vida. Muitas lideranças, hoje, andam com dois seguranças, que são policiais, ou precisam sair da região. Se o ameaçado ou a ameaçada forem assentados e tiverem que sair do estado, correm o risco de perderem o lote. O processo de reforma agrária no Pará está parado. Temos áreas ocupadas de oito a dez anos e sem solução. Essa morosidade amplia as formas de violência, uma vez que configura uma estratégia de “matar” pelo cansaço. Concomitante a esta morosidade, fazendeiros e agentes do Estado ainda arquitetam o processo de criminalização dos movimentos sociais. Costumamos chamar essa violência de “sangria”, pois vai sangrando e matando aos poucos. Aqui no Pará, temos dois grupos (o Santa Bárbara e o grupo Opportunity) que além de violentar com milícia armada, negociam diretamente com o gabinete da presidência.
As políticas públicas chegam aos assentamentos?
As políticas específicas da reforma agrária não chegam aos nossos assentamentos. Mesmo com a presidenta Dilma dizendo que iria priorizar melhores condições dos assentados, as políticas não chegaram. Não temos estradas, escolas e nem postos de saúde no campo. Na realidade, nem na cidade. As crianças, por exemplo, estudam numa tapera (espécie de barraca). Esses dias, fizemos dois dias de mobilização ocupando a prefeitura em Eldorado, para pressionar pela construção de um poço na escola.
De onde vem a sua força para lutar?
A força vem da própria luta, da vontade de mulheres, homens, crianças e jovens de mudar essa sociedade. Esse envolvimento com o povo pela construção de uma outra sociedade é o que me anima.