Durante a 75ª SOEA, o engenheiro e ex vice-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Darc Costa, participou do Simpósio SOS Brasil Soberano “Engenharia e soberania nacional”. Confira a transcrição de sua palestra.
por Darc Costa
Foto: Camila Marins
Não houve sintonia, no século XXI, entre os pensadores do Brasil, na hora de definir o que seria um projeto de longo prazo para o país. Faltou uma visão geral, pelo fato de que as ideias destes intelectuais encontram-se encapsuladas dentro dos seus nichos próprios de interesse e estão muitas vezes também presas aos discursos do que se diz politicamente correto, ou a medidas emergenciais. Diferentemente da primeira metade do século passado, os intelectuais pensadores de Brasil não conseguem pensar holisticamente ficando presos a particularismo. Podemos dividi-los em quatro grupos:
Os sociólogos da inclusão, que compreende aqueles que consideram que a principal responsabilidade do Estado é com a inclusão social e regional. Entram aí sociólogos de esquerda, movimentos sociais e toda aquela legião de pensadores que, até recentemente, haviam divulgado que o Brasil estava se transformando em um país relativamente menos injusto. E que não admitem o retrocesso de nenhum direito conquistado;
Os economistas do Estado indutor, que definem uma política de câmbio mais agressiva, com maior desvalorização da nossa moeda, menor rigor fiscal, maior tolerância com a inflação e com a prática de juros mais baixa. Com diferentes ênfases nestas ações, mas, com convergência no ataque aos recentes apelos ao ajuste fiscal, são encontrados nos cursos de economia ligados à Unicamp e à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A Unicamp vai além, defendendo um desenvolvimento social;
Os economistas dos Estado condutor, que também defendem uma política de câmbio mais agressiva, com mais desvalorização do real. São também críticos em relação à política monetária, contra os juros altos, mas entendem ser importante a ação do Banco Central na utilização da taxa de juros para o controle inflacionário, defendendo limites para os gastos públicos, acompanhando a inflação e o crescimento do PIB. Enxergam salários como componente de produtividade e defendem gastos públicos para investimentos, não para despesas correntes. Estão mais presentes na EE-FGV de São Paulo.
Entre os economistas do Estado, tanto aqueles do indutor como os do condutor, existem ainda aqueles que propõem políticas fiscais contra cíclicas – isto é, que sejam restritivas em tempos de crescimento e expansivas em tempos de recessão, mas sem engessar a política fiscal; e
Os desenvolvimentistas, onde se incluem herdeiros das tradições do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiro) dos anos 50 e dos formuladores dos Planos Nacionais de Desenvolvimento que acreditam que um país só se realiza se dispuser de um projeto nacional. Neste se juntam políticas industriais, diplomacia, defesa, industrialização, uso estratégico do mercado interno, parceria com grupos nacionais, tudo resultando de um planejamento de Estado, coercitivo para o setor estatal e indicativo para o setor privado. Para esses, a questão social vai para segundo plano, como uma espécie de decorrência natural do desenvolvimento industrial. Não por outro motivo, a fase de industrialização brasileira – especialmente no período militar – foi marcada por uma grande concentração de renda.
Nenhum desses grupos, hoje, individualmente, consegue definir um modelo sistêmico de desenvolvimento que possa resultar em um exitoso Projeto Nacional.
Todavia, a partir da década de trinta do século passado, isto foi possível. Industrialização, urbanização e integração do território nacional eram os eixos daquele projeto, acompanhados pela intervenção estatal na economia, toda vez que o setor privado se demonstrasse incapaz de vencer os gargalos que a economia apresentava. Este projeto foi razoavelmente bem sucedido até 1980.
Os quatro grupos nomeados apresentam cada qual sua idiossincrasia e necessitam ou, a visão completa da realidade, ou a readequação à contemporaneidade.
Muitas fórmulas vitoriosas nos 50 anos posteriores a 1930 não seriam mais únicas em um país que encontrou a importância da melhor distribuição de renda como maior fator de construção da cidadania e do mercado interno. Mas, seu macro conceber não deve ser tido como perdido no tempo. A indústria ainda é o motor de desenvolvimento. A urbanização traz consigo menores gastos sociais. A integração do território gera infraestrutura e vice versa. A ação estatal na economia é instrumento central para o desenvolvimento das nações.
Assim sendo, há alguns pressupostos para o desenho de um novo projeto de país, uma espécie de roteiro, que são premissas que se apoiam no passado buscado, inclusive no passado recente, que se refletem no presente e se projetam para o futuro.
O primeiro é que se constitui, ao longo dos últimos anos, uma enorme dívida pública que inviabiliza qualquer ação estatal que necessite de investimentos e que poderia ter êxito na solução dos entraves para promover o desenvolvimento do país;
O segundo é que no século XXI houve uma melhor distribuição de renda, que resultou da aplicação de políticas sociais, possibilitada, também, pela melhor relação de trocas no comercio internacional, que elevou o preço das commodities.
O terceiro é o fato de o país ter integrado ao litoral significativa parcela de seu interior, tendo até deslocado sua capital federal a mais de 1000 Km da costa;
O quarto é que o Brasil conta com uma indústria, ampla e diversificada, a mais completa do Hemisfério Sul e da América Latina;
O quinto é o Brasil ter se transformado em um país urbano. Mais de 84% de sua população vive em aglomerados urbanos e mais de 45% mora em grandes metrópoles;
Analisemos um a um esses pressupostos.
O Brasil possui uma enorme dívida pública
Toda orientação da política econômica recente tem sido no sentido de criar o impossível, ou seja, criar as condições de se honrar a enorme dívida pública, contraída ao longo dos anos e maximizada no último quarto de século. Esta enorme e impagável dívida pública deveria, ao invés de se tornar um impedimento ao exercício da ação estatal, via ajuste fiscal e cortes orçamentários, ser vista como um elemento promotor de investimentos, pela sua ordenada e planejada alocação na atividade produtiva. Esta modificação de enfoque é a chave para o sucesso de qualquer projeto de longo prazo para o Brasil.
Os instrumentos fundamentais para a construção desta enorme dívida pública foram, nos últimos anos, as sucessivas desonerações do capital acompanhadas por uma política econômica que não enfrentou as questões do câmbio apreciado e dos juros escorchantes. Mantem-se um errôneo modelo, em que se deixa liberdade para o capital e que pratica a mais alta taxa de juros para o planeta. A liberdade e os juros atraem capitais voláteis que promovem a apreciação cambial e a perda de competitividade da produção interna.
Por isso, a construção de um projeto nacional exige câmbio competitivo e controlado, uma nova política monetária que traga os juros aos níveis internacionais e a troca da lógica da atração da poupança externa pela enorme poupança interna, que será liberada pela conversão da dívida pública em investimentos.
O Brasil precisa melhorar a distribuição de renda
A primeira década do século XXI demonstrou que a melhoria na distribuição de renda, através de políticas sociais, pode ser uma peça importante no processo de desenvolvimento do país. Contudo, ela tem de ser permanente e baseada em fatores internos.
A valorização constante do fator trabalho no processo produtivo deve ser buscada através de uma política que valorize o emprego, o salário mínimo e as relações trabalhistas. Este é um instrumento importante de distribuição de renda.
Contudo, o elemento central para a melhoria permanente na distribuição de renda é a construção de um sistema educacional que garanta, no mínimo, uma década e meia de bancos escolares à população e que vocacione a maior parte dos formandos para as ciências naturais e engenharia. A reformulação de currículos, a valorização do magistério, o fomento à pesquisa científica tem de serem pilares neste modelo a ser criado de educação em massa. Montar uma economia não dependente da mão de obra barata para ser bem-sucedida, exige um novo tipo de trabalhador, um trabalhador educado e com maior renda.
O Brasil precisa integrar seu território
Todo o esforço de construção da infraestrutura do Brasil, do último século, foi incapaz de prover acesso dos meios modernos de logística à metade do território nacional. Isto se deve, entre outros fatores, ao desprezo ao planejamento da ocupação do território, à não priorização de recursos para a infraestrutura e à excessiva prioridade concedida ao modal rodoviário.
A formação da infraestrutura, seja a social, aquela que envolve ações nas áreas de educação, saúde, segurança e saneamento, seja a econômica, vocacionada para energia, transportes e comunicações requerem, necessariamente, planejamento de longo prazo e a elaboração de um plano de ocupação do território, que envolva desde ações de ordenamento territorial até políticas de ocupação fundiária.
Dentre essas ações deve estar presente, com destaque, o planejamento da integração física do Brasil com os demais países da América do Sul e sua inserção mais logisticamente apoiada no comércio mundial.
O Brasil conta com uma indústria
Em síntese, o Brasil conta com uma indústria, mas não é um país industrializado. Um país é industrializado quando sua população participa no uso fruto dos bens produzidos por essa indústria. Grande parcela da população brasileira não tem acesso aos bens industriais produzidos no Brasil. A começar pela sua casa, a casa própria. Temos de continuar industrializando o país.
A industrialização do Brasil feita de forma progressiva e desbalanceada, em ciclos, sendo que o seu último grande movimento se deu faz meio século, provocado pelo segundo PND, no setor de bens de capital e insumos básicos. Isto resulta, hoje, numa indústria que necessita ser modernizada para ser mais competitiva internacionalmente. Além disso, houve permanentemente um incentivo à indústria metalomecânica, em especial ao seu ramo automobilístico, que colocou esta atividade como a determinante na formação do produto industrial. Tem-se de incentivar setores que formam a moderna capacidade industrial de
um país, quais sejam o eletroeletrônico, o de química fina, o de biotecnologia, dentre outros, de forma a balancear melhor o produto industrial.
Uma das peças centrais de qualquer projeto de industrialização são as vantagens competitivas estáticas do país. E uma dessas principais vantagens, com que conta o Brasil, é o mercado interno, a capacidade de gerar massa crítica, ganhos de escala, para assim permitir a busca do mercado internacional. A essas vantagens cabe agregar outras vantagens comparativas tidas como dinâmicas, que resultam do planejamento, da formação de blocos de capitais e principalmente da ação estruturada do Estado.
O Brasil é um país urbano
Urbanizar vai muito além de se colocar gente nas cidades. Significa construir moradias, mecanismo de suporte como escolas e hospitais, de convivência como praças, de lazer como cinemas e teatros, de segurança como delegacias, fornecer transportes públicos que adequem deslocamentos, e, fundamentalmente, prover infraestrutura social que dê saúde, educação e saneamento básico.
O Brasil colocou gente nas cidades como atestam as favelas, os cortiços e os mocambos. Entretanto, não urbanizou o país. Muito deve ser feito na urbanização do país, de forma a se vencer a imensa desestruturação urbana, que se vê nas cidades e metrópoles do país. Isto requer planejamento urbano e um programa de construção civil de moradias, que se encaixe no conceito moderno de formatação de cidades.
Tem de se dar a saúde um tratamento prioritário nas políticas urbanas valorizando a medicina preventiva e o conceito de médico de família, promovendo-se o conceito de esferas crescentes de especialização nas clinicas e unidades hospitalares.
Parte central de qualquer urbanização é a construção da coesão social. Tem que se estabelecer limites a um grupo que se coloca como humanista, sempre disposto à defesa dos direitos universais individuais, mas que atua deslocada de nossa cultura, copiando padrões comportamentais que dizem ser universais. Esses humanistas atuam no que dizem ser politicamente correto, promovem mudança de costumes, liberalização sexual, igualdade de gêneros, descriminalização das drogas, e um conjunto de medidas que atendem a reclames de minorias e que afeta um público restrito ao seu meio. Mas é necessário fazê-los entender que a democracia é o governo da maioria e que eles têm de ir muito além, endossando todas as medidas que possam promover a massificação dos direitos civis.
Urbanizar vai muito além de deslocar pessoas do campo para a cidade. Urbanizar é dar a essas pessoas emprego, educação, saúde, segurança e uma boa moradia provida de água, esgoto, energia e dos meios modernos de convivência social.
O Brasil no mundo
Todos os pressupostos acima dizem respeito à vertente interna de um projeto nacional. A inserção internacional do país – a conquista do mercado externo, seja política ou econômica – necessita de uma estratégia geopolítica e de um conjunto de ações diplomáticas.
Ações planejadas são necessárias para a conquista de novos mercados, para montagem de grandes parcerias no mundo, para atração de investimentos. Exemplos de ações de bem sucedidas e praticadas recentemente pela nossa diplomacia foram a investida brasileira na África, a constituição do Banco do BRICS e a constituição da UNASUL.
Dispor de um bom aparato dissuasivo de defesa, investir em tecnologia militar, ter uma indústria moderna e diversificada produtora de material bélico, ganhar total autossuficiência energética, já que possui a alimentar, praticar o soft power com vizinhos e países menores, divulgar amplamente nossa cultura, tudo isto faz parte da constituição dessa estratégia que lastreia a vertente externa de um Projeto Nacional.
Concluindo, o Brasil tem como vantagens comparativas estáticas amplas recursos agroindustriais e minerais e um mercado de consumo crescente, além de uma cidadania mais exigente, que vem cobrando políticas nacionais para todos, como na saúde e na educação. Esse deve ser o ponto de partida para identificar as vantagens competitivas dinâmicas, sua priorização, para elaboração de um bem sucedido Projeto Nacional.
* Darc Costa é engenheiro formado pela Pontifícia Universidade Católica/RJ; consultor na área de planejamento, mestre em engenharia de produção pela PUC/RJ, doutor em engenharia de produção pela COPPE/UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, em cursos de Estratégia Nacional; vice-presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)- 2002/2004; conferencista da Escola de Políticas Públicas e de Governo da UFRJ; membro do Conselho Diretor do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (CEBRES); presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Venezuela no Rio de Janeiro e da Federação das Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul. Professor visitante no Programa de Economia Política Internacional da UFRJ