A redução da população ocupada e do número de empregados com carteira assinada no Brasil durante o governo Temer é uma das mais agudas da história e aponta para a precarização do trabalho e o confinamento da maioria da mão de obra brasileira em atividades de baixa remuneração e alta vulnerabilidade social, alerta a supervisora técnica do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no Rio, Jessica Naime. Reflete o modelo econômico proposto ao país pelo atual governo Temer – e pelas forças que o sustentam. “Todas as reformas que estão sendo apresentadas têm por trás um projeto de país com Estado mínimo e redução de investimentos públicos, em que voltaremos a ser exportadores de matérias-primas e importadores de produtos industrializados, com inserção periférica no cenário global”, diz Jessica. Um projeto da mesma natureza, mas radicalizado, daquele tentado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), que deixou o governo em 2002 com altos níveis de desemprego, fome e rejeição popular.
De acordo com os dados do IBGE, o número de trabalhadores com carteira assinada no Brasil no último trimestre (fevereiro a abril de 2017) caiu 3,6% em comparação ao mesmo período há um ano, quando o total de empregados com vínculo formal somava 34,5 milhões. Significa que, desde abril de 2016, véspera do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, já são 1,242 milhão de pessoas que deixaram de ter empregos com carteira assinada. Na comparação março a março entre 2016 e 2017 (veja o quadro abaixo), feita pelo Dieese, a participação no mercado dos assalariados com carteira do setor privado caiu 3,5%, enquanto cresceu 4,7% a parcela dos que têm remuneração sem carteira. “Praticamente uma transferência de uma situação para a outra”, explica Jessica. A queda dos contratados é menor no setor público, devido à estabilidade maior do segmento. E a expansão do número de empregadores traduz, em boa medida, a transformação de trabalhadores em pessoas jurídicas.
“O mercado tende a um novo equilíbrio rebaixado para o nível de ocupação e de remuneração”, diz a supervisora técnica do Dieese. Um equilíbrio comparável, por exemplo, ao que se dá no México, onde há baixa taxa de desemprego – na faixa dos 3,9% –, devido ao fato de grande parte da população já ter desistido de buscar empregos de maior remuneração e valor agregado, para se fixar em atividades que começaram na informalidade e por necessidade. “A pessoa que foi vender tapioca porque estava desempregada, vai ficar mesmo vendendo tapioca”, diz ela.
Na prática, esse trabalhador deixa de ter os benefícios do contrato de trabalho (plano de saúde, carga horária definida, pagamento de horas extras, folgas asseguradas, entre outros) e também de recolher para a Previdência. E passa a ganhar menos, assim como os terceirizados, outra tendência do modelo. Segundo os estudos do Dieese, o salário do empregado terceirizado é 24 vezes menor, em média, do que o de quem tem carteira assinada. “Devemos avaliar que tipo de emprego queremos fortalecer no país”, observa Jessica.
Nesse sentido, é revelador que o presidente Temer não se constranja em denominar publicamente de “renascimento” o aumento de 1% no PIB do primeiro trimestre de 2017 (janeiro a março) – em comparação com o período anterior, divulgado na quinta-feira passada (1º) pelo IBGE. A variação foi fortemente influenciada pelas exportações do agronegócio, que obteve safras extraordinárias. Altamente mecanizado, o trabalho no campo tem baixa remuneração, é sazonal e frequentemente realizado em condições análogas às da escravidão. Já com relação aos dados do PIB sobre a demanda, a formação bruta de capital, que diz respeito diretamente a investimentos e à atividade industrial no país – com os empregos de maior valor –, caiu 3,7% em relação ao mesmo trimestre em 2016, a 12ª consecutiva (veja aqui a análise dos números do PIB pelo Dieese).
Eu sou você, ontem
“Estagnação crescente, salários reais em queda, desemprego em nível nunca antes visto e uma dívida estarrecedora”. Parece ter sido escrito em maio, para a comemoração dos 12 meses de governo Temer, completados no útimo dia 15 de maio, mas, na verdade, é a síntese da gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente do país, segundo o historiador britânico Perry Anderson, na edição de 10 de novembro de 2002 da Folha de S. Paulo, quando FHC se preparava para passar a faixa presidencial a Lula.
“A dinâmica fundamental do neoliberalismo se ergue sobre dois princípios: a desregulamentação dos mercados e a privatização dos serviços”, explicava há 15 anos o historiador, para quem “a lógica de um modelo neoliberal na periferia do capitalismo mundial coloca qualquer país que a adota à mercê de movimentos imprevisíveis nos mercados financeiros no centro, de modo que os infortúnios que acometeram FHC foram em grande medida a crônica de um fiasco anunciado.” Se ele definia então o modelo como um “neoliberalismo light”, o programa de Temer poderia ser chamado de “neoliberalismo hard”. Segundo estudo da FGV, divulgado nesta segunda-feira (5), pela Folha de S.Paulo, a parcela da força de trabalho brasileira com alguma ocupação chegou neste ano ao mais baixo patamar em 25 de anos: uma retração para 86%, entre janeiro e abril deste ano.
Discursando na cerimônia de assinatura da lei das concessões, em 1995, o ex-presidente tucano chegou comemorar o fim da Era Vargas, uma meta que também havia anunciado no pronunciamento de despedida do Senado, para assumir a Presidência. Na verdade, ele não conseguiu desfazer as conquistas nacionais e trabalhistas de Getúlio Vargas. Mas os articuladores do golpe que derrubou Dilma, o próprio FHC entre eles, podem agora afinal ter sucesso nessa missão contra-revolucionária, se puderem implantar todas medidas que estão sendo sendo propostas – com Temer ou sem ele: a desregulação de áreas estratégicas como petróleo e gás, fim das políticas de conteúdo e tecnologia nacional, desobrigação com direitos trabalhistas, privatização da previdência, desidratação da estrutura e dos investimentos públicos.
A Lei da Terceirização, a reforma trabalhista e a da Previdência de certa forma dão o arcabouço legal aos impactos do modelo periférico e ultraliberal que, em FHC, foram considerados anômalos – por exemplo, por meio dos dados relativos a desemprego, afirma Jessica. Com as novas regras e a nova conformação do mercado, o Brasil poderia mascarar a precarização da mão de obra, passando a conceituar de forma diferente as relações de trabalho. De forma similar ao baixo desemprego no México, que escamoteia a qualidade de vida precária do trabalhador.
Considerando o aumento na taxa de desocupação de 11,6% (trimestre de maio a julho de 2016) para 13,6% (fevereiro a abril de 2017), temos 14,048 milhões de pessoas sem trabalho no país, número 23,1% superior ao total do mesmo período em 2016, segundo o IBGE. Em um ano de governo Temer, o Brasil passou a ter mais gente sem a proteção da carteira assinada e também mais 2,6 milhões de desempregados. O coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azevedo, estima que a cada trabalhador que perde o vínculo formal, correspondem outras duas ou três pessoas a mais na base total de desocupação, em geral integrantes da mesma família que são obrigados a ir procurar emprego.
Velhos fantasmas
Em dezembro de 2002, quando FHC deixou o governo, a taxa de desocupação, conforme dados do IBGE, era de 10,5%. O poder de compra do salário mínimo representava 14% da cesta básica calculada pelo Dieese em dezembro de 2002, na véspera da posse de Lula; até maio de 2016, quando Dilma foi afastada, subiu a 23%.
A precarização da qualidade de vida, do emprego e da renda desperta velhos fantasmas. Ao longo dos últimos quatro anos de FHC crescia entre os brasileiros o medo da fome e da miséria. Estas ameaças eram a maior preocupação para 15% dos entrevistados pelo Datafolha em fevereiro de 2002; praticamente o triplo do percentual registrado pelo mesmo instituto em novembro de 1998, quando o tucano tomou posse. Cerca de metade (52%) dos consultados no final da gestão considerava ruim ou péssima a maneira como o ex-presidente tratou do combate à fome e à miséria, que estavam em segundo lugar no ranking de problemas mais citados na pesquisa. O topo da lista era mesmo o desemprego, apontado por 34% dos entrevistados em 2002; 67% consideravam ruim ou péssimo o desempenho do governo nessa área. Em terceiro lugar, a violência já era o principal problema brasileiro para 14% da amostra.
Finalmente, políticos (33%) e bancos (29%) foram mencionados como os setores mais beneficiados pelo governo FHC. Bem atrás, com 7% cada, vinham indústria e agricultura; comércio (6%); trabalhadores (5%); serviços (2%). Já os mais prejudicados, naturalmente, para 49% dos entrevistados, foram os trabalhadores. O levantamento coincide em muitos pontos com o entendimento do professor Perry Anderson, entrevistado pela Folha de S. Paulo. Na opinião dele, o projeto liberal de FHC deixou “um legado desastroso”.
Por: Verônica Couto / SOS Brasil Soberano