Sociólogo defende uma nova regulação para as relações de trabalho

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Um futuro governo progressista deverá construir “um novo padrão regulatório para as relações de trabalho”, diz o sociólogo Clemente Ganz, assessor do Fórum das Centrais Sindicais e ex-diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Além da revogação das reformas Previdenciária e Trabalhista, ele defende recuperar os instrumentos de negociação sindical e assegurar direitos à imensa categoria de profissionais que hoje atua em condições precárias, sem nenhum tipo de proteção. Renda e direitos para os trabalhadores e trabalhadoras são a base, na sua avaliação, para um programa de retomada virtuosa do desenvolvimento.

Uma pauta unificada da classe trabalhadora será lançada pelo movimento sindical nesta segunda (7), como instrumento de mobilização para as eleições deste ano. “É um conjunto de propostas, uma maneira de o movimento sindical dizer: _Estão aqui as nossas dez, 15, 20, 30 propostas que são fundamentais; e está aqui um rol de candidatos de vários partidos que se comprometem com essa agenda”, explica Clemente. “Escolham um deles para nós tenhamos deputados, deputadas, senadores e senadores comprometidos com essa agenda.”

Na avaliação do assessor sindical, é importante fazer mais do que a revogação das reformas Trabalhista e Previdenciária. “Muito além de tirar esse entulho que foi colocado sobre o sistema previdenciário e laboral, precisaremos recolocar um novo padrão regulatório das relações de trabalho. Portanto, vamos fortalecer os sindicatos, as negociações coletivas, e dar os instrumentos para que façam a regulação do trabalho onde cabe ação sindical. De outro lado, precisamos ter uma legislação que efetivamente seja capaz de induzir o Estado e os agentes econômicos a promoverem a efetiva proteção laboral de toda a força de trabalho, especialmente daquela que não está protegida pelo sindicato, na negociação coletiva.”

Esse contingente desprotegido, calcula o assessor sindical, já representa entre 40% e 50% da força de trabalho total do país. Uma nova organização laboral deverá garantir, por exemplo, que a trabalhadora autônoma possa se afastar na gravidez, da mesma forma que a assalariada na licença maternidade, com direito à renda e à assistência; ou que um trabalhador, um camelô, que vende produtos em vias públicas, se tiver um problema de saúde, vá ter a proteção e a sustentação do Estado, como um empregado da iniciativa privada quando é afastado pelo INSS.

Na ampliação do alcance dos direitos, Clemente destaca a situação dos trabalhadores de aplicativos, com relações mediadas por plataformas digitais. Esses profissionais cresceram de “forma exorbitante na pandemia”, diz o sociólogo. “São de 4 milhões a 5 milhões de trabalhadores que hoje no Brasil circulam entregando as mais diferentes compras que nós fazemos. Vamos precisar de um meio de gerar um reconhecimento, algum tipo de proteção laboral, que a legislação anterior já não dava conta e que a Reforma Trabalhista só agravou. Vamos precisar resolver o problema e recolocar a proteção previdenciária num outro patamar.”

O arranjo construído especialmente a partir de 2017, flexibilizando o mundo do trabalho, significou, na avaliação do sociólogo, precarização, fragilização, vulnerabilidade, desproteção sistêmica, porque os trabalhadores não têm capacidade de gerar proteção laboral, com muita dificuldade de se inserir nesse sistema previdenciário.

“O que o governo fez nas reformas Trabalhista e Previdenciária foi estrangular a proteção social”, critica. “De um lado, ela está cada vez mais debilitada no seu financiamento, porque temos cada vez menos trabalhadores contribuindo para a Previdência Social; e de outro, temos regras mais perversas impedindo que mais pessoas aos 60, 65 anos, não tenham adquirido o direito à aposentadoria. Vamos jogar os velhos que não tiveram como fazer uma poupança privada na miséria e na pobreza.”

Bolsa Família como tração de arranque na economia
Recompor o sistema de proteção laboral e social, contudo, requer a recuperação da capacidade de crescimento do país, afirma Clemente. “Não conseguiremos fazer [as mudanças] numa canetada, mas o Brasil pode produzir mecanismos para acelerar o processo de inclusão. Talvez começando imediatamente com uma extensão do sistema de transferência de renda, como no caso do Bolsa Família, precarizado pelo governo Bolsonaro.” De tal forma, que o país promova uma rede de proteção imediata, dando renda àqueles trabalhadores que não estão inseridos na economia formal, enquanto, progressivamente, vão sendo criados os instrumentos de proteção social, laboral e previdenciária, para todos,”

Resgatar a concepção do Bolsa Família, como programa bem estruturado, integrando transferência de renda com saúde, educação, investimento em formação profissional, é fundamental para o Estado dar essa “tração de arranque” para uma nova economia, diz Clemente. Mas retomado com base de proteção ainda mais ampla – “porque a miséria e a pobreza cresceram, e os sem emprego são mais de 13 milhões no Brasil”. Ao mesmo tempo, o governo daria partida às iniciativas para gerar emprego, investindo em infraestrutura. Por exemplo, recuperando as obras paradas no Brasil, que já totalizam mais de 10 mil, no complexo da saúde, etc.

O quadro nacional, contudo, é muito diferente daquele dos anos 2000, alerta Clemente. Com a “terra arrasada” que veremos no Brasil em 2022 e 2023, o campo progressista deve articular rapidamente uma estratégia para recolocar o país em uma trajetória de crescimento econômico comprometido com a distribuição social dos resultados, com a sustentabilidade ambiental, o espraiamento da perspectiva do desenvolvimento em todo o território – não mais concentrado nas regiões que já são ricas. Ou seja, guiar-se pelo princípio de que gerar renda, emprego, processos distributivos são fatores para sustentar o próprio crescimento econômico.

“É importante que se tenha claro que a geração do emprego, o aumento do salário, da proteção laboral constituem não só uma dimensão da promoção do direito, daquilo que a Constituição prevê e garante a todos brasileiros, mas é também um elemento estruturante de uma estratégia de desenvolvimento”, argumenta o sociólogo. “Porque, na medida em que a renda e o emprego são gerados, a pobreza e a fome são enfrentadas, com renda e capacidade das pessoas produzirem, esse trabalho gera consumo, produção e previsibilidade para o setor produtivo planejar o investimento. Se o Estado puxa o investimento de partida, traz junto o investimento privado que vai procurar atender àquela demanda que o Estado está mobilizando. Construir uma estrada, refazer uma escola, aumentar um posto de saúde, criar linhas de Internet, expandir a rede elétrica, nossa capacidade eólica e solar, tudo aquilo que amplia nossa capacidade de produção exige uma resposta econômica, e a indústria produzindo os insumos.”

Reorganização orçamentária
Trata-se da dinâmica virtuosa que o Brasil viveu entre 2004 e 2014, quando a gestão petista fez o salário mínimo crescer mais de 77% em termos reais, lembra o assessor sindical. “Fizemos gerar empregos predominantemente com carteira assinada, ampliou-se a proteção laboral e previdenciária. Tudo isso aconteceu no Brasil e o país cresceu, a inflação, o gasto e o orçamento público ficaram sob controle, em condições também de ampliar investimentos. A performance brasileira foi muito saudável do ponto de vista econômico, e é a base para que tenhamos resposta para os problemas sociais, para enfrentar a fome, a pobreza , a miséria, a inflação, a necessidade de financiamento do Estado, que sofre dificuldades com regras fiscais absurdas, como é o caso do teto de gastos.”

Entre as alternativas de propostas que podem ser combinadas, Clemente cita a reorganização da dívida pública, com prazos estendidos para permitir investimentos, e uma reforma tributária que taxe a renda e a riqueza de maneira progressiva. “Compreender que o Estado é fundamental para um projeto de desenvolvimento, e que cabe ao Estado ser mobilizador, indutor e em grande medida um coordenador dessa estratégia, em uma relação de complementaridade com o setor privado, sem antagonismo. Nesse sentido, deve-se identificar o que são de fato atribuições do Estado na manutenção do que se chama atualmente de bens comuns – ambientais e sociais.”

O sociólogo observa que cada real (R$ 1,00) ganho pelo trabalhador vira um real de consumo, e 43 a 50 centavos voltam ao Estado na forma de tributação. “Um real para o rico vai para o exterior ou para a poupança, mas, na mão do pobre, vira produção. Se a gente quer sustentar um crescimento econômico virtuoso, animando nossa produção, fazer essa [política] não é só justo do ponto de vista social e político, é inteligente.”

A medida também teria efeito sobre a Seguridade Social, tripé que inclui saúde, assistência social e previdência para todos. Esse complexo de proteção exige, alerta Clemente, a reconstrução de sua capacidade de financiamento. “Nos últimos 20 anos foram feitas mudanças que fragilizaram o sistema de seguridade, seja pela desoneração, seja porque mudou a base tributária, seja porque se ampliou o contingente de trabalhadores informais, sem contribuição, ou porque foram fragilizadas outras formas de financiamento — não esqueçamos que o fim da CPMF tirou R$ 50 bilhões da saúde. Portanto, há várias coisas que fizeram com que aquele sistema, que era altamente superavitário no passado, hoje tenha déficits operacionais do ponto de vista das receitas, que deveriam ser garantidas pela Constituição.”

Será necessária muita pressão social, acredita o sociólogo, para que as prioridades do governo sejam reafirmadas e façam frente às pressões que virão pela manutenção das desonerações. “A grande reorganização do orçamento público, que envolve acabar com o teto de gastos, vai exigir comprometer a sociedade com um novo padrão de financiamento e de carga tributária, especialmente sobre os mais ricos, os que têm riqueza financeira e material, grande fonte de arrecadação, que precisa ser mobilizada. Precisamos gerar uma dinâmica orçamentária pública que gere transferência de renda para os mais pobres, e esses, ao ativarem a economia, geram melhoria na capacidade de financiamento do Estado.”

Poder às organizações sindicais
O assessor do Fórum das Centrais Sindicais também defende “reconferir às organizações sociais um poder para participar do processo de construção do desenvolvimento”. Ou seja, recolocar na estrutura política o papel das organizações e da sua dimensão participativa e deliberativa, incluindo os sindicatos, para que atuem no processo de elaboração de propostas, iniciativas, políticas, etc.

De acordo com Clemente, as organizações podem aportar conhecimentos e pontos de vista que não estão contemplados na abordagem feita por deputados e senadores, e atualmente, com a internet, também são capazes de criar mecanismos de participação popular nos processos de decisão, elaboração e controle social de políticas públicas. “Seja por participação voluntária ou aleatória, seja pela constituição de grupos de trabalho, seja pelas organizações populares, sociais, inclusive a organização sindical.”

A organização sindical tem um papel adicional, segundo ele, porque é uma organização historicamente estruturada para representar o interesse coletivo e a autonomia daqueles que produzem a riqueza do país. “Os sindicatos hoje se propõem a ser uma organização que busca proteger e representar e construir o direito por meio de uma negociação coletiva, por meio de uma relação com o patrão e o empregador, mas também na ação junto ao Congresso, às câmaras de vereadores e as assembleias legislativas para conseguir a regulação por meio da lei para todos aqueles trabalhadores que não são assalariados.” Por exemplo, as centrais e o movimento sindical têm tentado a aprovação de uma lei, no Congresso ou nos estados, que garanta a proteção laboral para os trabalhadores em aplicativos.

“Esse papel precisa ser recolocado”, diz Clemente, lembrando que, durante os quatro anos de governo, Bolsonaro atacou os sindicatos buscando quebrar sua capacidade de atuação e retirando poder de negociação e representação. “Mas não foi só isso. Ele acabou com todos os conselhos de representação da sociedade – foram dezenas de conselhos eliminados. A participação social deixou de acontecer e o governo ficou livre para executar suas políticas do jeito que bem entenda. Aliás, criou mecanismos mais perversos: por exemplo, recentemente, o mecanismo absurdo de dar aos parlamentares o poder de realizar investimentos com recursos públicos, por meio de emenda parlamentar, retirando a capacidade do Estado de coordenar uma estratégia de investimento, dando aos parlamentares bilhões de reais para que eles façam as alocações… muitas vezes as mais ineficazes possíveis.”

Assim, para pensar um país para o futuro, o sociólogo afirma que será preciso “constituir força política, para que a sociedade organizada crie as pressões necessárias sobre os parlamentares, o governo e sobre a própria sociedade para que ela se manifeste e faça as mudanças”.

O primeiro passo para esse futuro é mobilizar todas as energias para a campanha eleitoral. “Se a gente já ficou assustado com as fake news e com o uso das redes sociais nas eleições passadas, em 2018, vamos ficar surpreendidos com o nível absurdo do que vamos ver no processo”, diz Clemente. “Por isso, 99,9% da nossa energia têm que ser deslocadas para fazer de 2022 um ano de esclarecimento político com a sociedade, de trabalho nas bases sindicais, conversar olho no olho com trabalhadores e trabalhadoras, mostrar qual é o projeto, para onde o Brasil tem que ir. Se não fizermos isso agora, se Bolsonaro com esse projeto neoliberal for eleito, pode jogar o sindicato no lixo, os direitos no lixo, porque eles não serão recuperados. O pouco que existe será exterminado. Não tenhamos dúvida disso.”

Soberania em Debate é realizado pelo movimento SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ)

Fonte: Verônica Couto/Senge-RJ