“Alimentação tem que ser um direito humano e não uma mercadoria”, opina presidenta do Consea.
Por Júlia Dolce, para o Brasil de Fato. Edição: Camila Rodrigues da Silva
O Dia Internacional da Alimentação, celebrado na data de 16 de outubro, é marcado por movimentos populares como a Via Campesina e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) como o Dia Internacional de Ação Mundial pela Soberania Alimentar contra as Empresas Transnacionais. Nesta semana, entre os dias 17 e 21 de outubro, o MPA realiza o Especial da Soberania Alimentar, com diversas ações de diálogo e conscientização da população sobre o tema.
Entre as pautas abordadas pelas atividades está o lobby que as empresas transnacionais têm feito para barrar marcos de políticas públicas e legitimar sua hegemonia na distribuição agrícola mundial, além da apropriação de terras camponesas em países em desenvolvimento sob o pretexto de alimentar mais pessoas por meio de tecnologias avançadas, consideradas destrutivas pelos movimentos.
Segundo Maria Emília Pacheco, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e membro da assessoria da ONG Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), o Dia Mundial pela Soberania Alimentar é muito importante por ser um momento de insistência do entendimento da alimentação como um direito humano e não uma mercadoria.
“Cada vez mais o sistema alimentar vai no sentido contrário. É um dilema que vivemos, no caso brasileiro. A sociedade precisa conhecer melhor os níveis de contaminação do solo, da água e dos alimentos, e se juntar aos movimentos sociais para que a gente saia desse lugar de campeões mundiais no uso de agrotóxicos, que deixa nossa sociedade cada vez mais adoecida”, apontou Pacheco.
Consumo autônomo
Para Raul Krauser, membro da Direção Nacional do MPA, a questão da soberania alimentar está diretamente ligada com a liberdade dos consumidores para escolherem alimentos orgânicos e de empresas não hegemônicas. “A questão é que você tem um sistema agroalimentar que é basicamente um complexo de grandes redes varejistas (Walmart, Carrefour, Grupo Pão de Açúcar), articulado com as transnacionais de agroquímicos que impõem à população um modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos padrão. Por exemplo, é definido que o cultivo ideal é o da soja e do milho, porque são passíveis de grande escala, então a partir disso se produz tudo”, afirmou.
Segundo Krauser, o consumidor é levado a acreditar que está consumindo uma variedade de produtos quando na verdade está consumindo derivados da soja e do milho. “O consumidor chega no supermercado para comprar um chocolate mas na verdade está consumindo uma barra de soja com corantes e aromatizantes. Se você quiser fugir dessa lógica e comer frutas e verduras é mais caro, e se quiser sem agrotóxicos, orgânicos, é mais caro ainda. As pessoas são livres para comer o que quiser, mas o que determina fundamentalmente essa liberdade é o dinheiro. Então ela existe de um ponto de vista legal, mas na realidade a população não tem autonomia para escolher o que come”, resume.
Na opinião de Maria Emília Pacheco, é essencial que o debate da soberania alimentar também dialogue com as nossas próprias culturas alimentares. “Nós continuamos perdendo espécies, variedades. A expansão dos monocultivos, pecuária e desmatamentos coloca em risco nossa biodiversidade e nossa soberania. Isso porque, mesmo os alimentos básicos estão em risco. Toda a nossa produção de arroz vem do Rio Grande do Sul, se houver mudanças climáticas extremas podemos ficar em falta. Já estamos importando nosso feijão, um alimento muito importante para nossa alimentação”, explica a presidenta do Consea.
Agricultura
O consumidor, de acordo com Krauser, não é o único que tem sua liberdade podada pela hegemonia das transnacionais. “Da mesma forma, o agricultor, quando vai fazer um plantio de melancia aqui na nossa região do Espírito Santo, se quiser colocar sua produção no mercado tem que utilizar sementes da Syngenta, porque são de auto produtividade. Mas ela também é mais sensível a pragas, o que leva ao uso de mais agrotóxicos e agroquímicos, então mesmo que ele tenha a liberdade de plantar uma semente crioula [mais resistentes e menos dependentes de substâncias sintéticas], ele não tem essa liberdade no mercado”.
“Defender as culturas alimentares significa, sobretudo, defender os direitos dos agricultores tradicionais. Eles que domesticaram as plantas e nos deixaram esse legado de diversidade de alimentos que vão desaparecendo. Até hoje no Brasil são nossos agricultores, camponeses e comunidades tradicionais que garantem a preservação das espécies, com seu sistema de troca e manejo de sementes e mudas. Estão resistindo e mostrando que a diversidade na alimentação é parte do patrimônio de um povo. Por isso, na FASE, parte do nosso compromisso é lutar para apoiar as organizações e associações camponesas, para terem acesso aos mercados institucionais”, reitera Pacheco.
Ações
Durante esta semana, o MPA está organizando um processo de luta e diálogo com a população consumidora e com os agricultores, com o objetivo de refletir sobre o que chamam de dominação alimentar. O Especial da Soberania Alimentar é organizado pelo movimento desde 2011, e já foram realizados diversos atos de denúncias, bem como debates com estudantes, vivências e feiras para comercialização de alimentos saudáveis.
“Nós entendemos que agora é um momento de discutir com o povo, fazer experiências de caráter pedagógico e se somar em todas as lutas contra a perda de direitos, O que a gente tem discutido é que se precisa recuperar e construir nossa soberania, que é o poder real de decisão sobre como produzir e como se alimentar. Essa é nossa grande luta e isso não está de forma alguma dissociado da questão de distribuição de renda, superexploração da mão de obra e concentração da propriedade” afirmou Krauser.
Temer e o Mapa da Fome
No último dia 13, a direção nacional do MPA lançou uma nota destacando a preocupação do movimento com a possibilidade do país voltar para o Mapa da Fome. O relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgou a saída do Brasil do mapa em 2014, como consequência das políticas de distribuição de renda da última década.
Na nota, o movimento afirma que as políticas adotadas pelo governo não eleito de Michel Temer “dão sinais claros de que o país será conduzido para um cenário de escassez alimentar”, por meio de fatores como o aumento do desemprego, a redução de investimentos sociais em políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a redução de financiamentos para a produção de alimentos e o desmonte da estrutura de apoio à produção e abastecimento, com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
“Não sabemos até quando ficaremos fora do Mapa da Fome, porque as políticas atuais vão no sentido contrário. Tememos que programas como o PNAE estejam em risco. Já ouvi um ruído de que pretendem modificar o artigo 14º, que garante que pelo menos 30% da compra da alimentação escolar venha da agricultura familiar. Alterá-lo seria um retrocesso, essa lei ajuda a dinamizar as agriculturas locais e é um estímulo para que os agricultores diversifiquem suas produções. O PNAE também prevê a educação alimentar nas escolas, e com o estabelecimento do teto para gastos públicos, com a PEC 241, o direito humano da alimentação também será afetado”, pontua Pacheco.
Por esse motivo, segundo o dirigente do MPA, esta Semana pela Soberania Alimentar tem também um caráter de denúncia. “Antes nós tínhamos um governo, mesmo com todas as dificuldades, e tratávamos de negociações em torno de uma política de abastecimento, construção de mecanismos de Estado para a garantia da soberania alimentar da população. Agora temos uma junta usurpadora de direitos do povo. Temos que lutar pela prática do que a gente tem feito. Há milhares de famílias produzindo alimentos orgânicos, belíssimas experiências de realização de feiras, mercados populares, redes de consumidores. É uma diversidade enorme. Essas experiências concretas tem nos mostrado que se houver uma perspectiva de abastecimento da população isso se concretiza”, opinou Krauser.