Em entrevista à Fisenge, a filósofa Marcia Tiburi fala sobre o papel das mulheres na atual conjuntura política e aborda as novas narrativas políticas de enfrentamento. Também autora do livro “Como conversar com um fascista”, Márcia propõe, ainda, diálogos baseados no afeto e ainda problematiza os “escrachos” nas redes sociais. Se a esquerda precisa se reinventar? Não temos as soluções, mas o apontamento central deve ser, segundo ela, reorganizar relações baseadas no afeto.
Entrevista por Camila Marins
• De que forma o machismo atravessa e impulsiona o processo de impeachment da presidenta Dilma? Podemos dizer que o Brasil acordou mulher?
O machismo é a lógica, a teoria e a prática, do capitalismo aplicada à questão de gênero. O fato de que a presidente seja mulher corre ao lado do fato de que seja de esquerda. Dilma Rousseff não se elegeu com uma pauta feminista, por isso o discurso misógino não apareceu com tanta força antes. A misoginia é mais fortemente aplicada àquelas mulheres que politizam a condição feminina. Com Dilma, ele foi usado para os fins do golpe. Atiçou o machismo estrutural que está na base da sociedade. Coisa que a presidenta só começou a fazer durante o processo do golpe. O machismo em relação a ela intensificou-se como uma espécie de ódio que vinha piorar o fato de que fosse também uma pessoa de esquerda. O feminismo, quando levado às últimas consequências, é sempre uma reflexão e uma ação de esquerda. Muitos perceberam, e isso vem se confirmando legalmente também, que Dilma sofreu um golpe justamente por ser de esquerda, por ser mulher e por não ser corrupta. Os defeitos reais de seu governo nunca foram tratados com cuidado, até porque foram erros que implicam a própria crítica e autocrítica da esquerda. Um dos seus erros, a meu ver, foi não ter se tornado feminista antes. Nenhuma mulher pode fazer política sem levar esse aspecto em conta. São as mulheres que podem defender as mulheres quando se trata de política.
• Podemos dizer que vivemos em uma democracia? Ou nunca experimentamos essa vivência?
A democracia faz parte da história. A democracia é um substantivo, mas não uma substância que se encontra na natureza. Ela é um processo que pode ou não ser construído pelas pessoas. De fato, uma democracia radical ou profunda, aquela que funciona como uma operação dialógica, coletiva, respeitosa da diferença, protetora dos direitos fundamentais, não se realizou até hoje. Essa democracia faz parte dos sonhos e dos anseios de muitos. Há que se construí-la. Não podemos realizar a democracia sem a busca de um aspecto fundamental, aquele da defesa da natureza sem a qual o futuro da vida humana no planeta está ameaçado. Uma democracia radical é, necessariamente, socialista em um sentido não burocrático, não estatal e profundamente ecologista.
• A esquerda, hoje, vive um momento de tensionamento pela necessidade de reinvenção e novas formas de mobilização, principalmente pelas redes sociais. Como você avalia essa transição?
Isso não me assusta nem um pouco. O que chamamos de esquerda hoje é bem diferente do que se considerava esquerda no século 19, em 1917 ou em 1968. A esquerda de hoje relaciona-se à ecologia, ao feminismo, à luta racial, à questão indígena, ao lugar da singularidade autocompreensiva da dimensão social. Hoje em dia, não podemos dizer que a luta de classes é a luta fundamental ou central, porque a luta cultural, ecológica, feminista, racial, a luta que implica a singularidade e a multidão, muda o sentido de todos os jogos de poder tradicionais. A única coisa que permanece comum para quem luta é o fato do capitalismo, como tendência destrutiva da sociedade, precisar ser superado em seu DNA.
• Você disse em um debate sobre a endogenia da esquerda. Como superá-la?
Essa é uma questão que ocupa a todos que, de algum modo, fazem parte do amplo campo da esquerda, incluindo aí a totalidade das lutas contra o capitalismo como tendência destrutiva da sociedade. Alguns dizem que vivemos em uma bolha e que precisamos expandir o diálogo. Ora, isso é verdadeiro, mas também é falso. Verdadeiro, porque, de fato, fazer política é expandir o campo das relações. Como disse [a ativista ambiental e ecofeminista indiana] Vandana Shiva, as relações são a alternativa ao capital. E isso quer dizer o quê? Que as relações são o princípio da politização. Ou seja, temos que nos tornar seres de relação, e para termos relações, precisamos de linguagem. Não estou aqui me referindo aos conluios, evidentemente, estou me referindo a ser “camarada”. A aprender a conviver. Hoje, isso envolve descentralizar e deslocar a ação política. Dar espaço para que outras relações aconteçam, sejam as que nos envolvem pessoalmente, sejam as que podem acontecer entre outras pessoas. Penso que podemos desenvolver uma política com base na generosidade, um afeto que é típico do que chamamos de esquerda. Mas essa generosidade precisa se tornar método de transformação econômica e social. A generosidade começa com a política da escuta. E se realiza no fim da avareza capitalista. Isso é o que está contido na afirmação de Shiva: criar relações é a alternativa para a pobreza que causa o capital.
• As redes sociais têm cumprido um importante papel de disseminar informações. Por outro lado, percebemos o imediatismo e a falta de profundidade no debate. Como resolver esse conflito?
Não haverá solução imediata para essa tensão. O que era urgente continua urgente, precisamos pensar e aprofundar a reflexão seja na internet, seja na vida. O caminho alternativo à internet está dado, ele é a vida analógica que conhecemos. O diálogo e a conversação precisam ser retomados. Não há tecnologia que possa substituir o corpo humano, o olhar, a fala que se desenvolve nos encontros mediados por afetos amorosos que nos ajudam a desenvolver o respeito e o reconhecimento eticamente necessários em nosso tempo.
• Também percebemos nas redes a viralização de escrachos. Esta não é uma representação da cultura do justiçamento? Qual a pedagogia desse processo?
O escracho é um tipo de performance política coletiva. Não devemos confundi-lo com linchamento ou justiçamento. Um político ou um cidadão que age de modo abjeto, que com seu ato provoca algo execrável, pode receber uma resposta forte e criativa, como são os escrachos políticos. Não devemos pensar a política, a boa política, como uma política em que o “fofismo” e a “meiguice” sejam uma regra. Não há desrespeito nas reações fortes e expressivas quando se trata de questões que não obtêm respostas mais simples. Falo isso pensando naqueles momentos em que políticos desrespeitosos e irresponsáveis não dão respostas ao povo diante de várias asneiras que cometem. Às vezes o escracho é só um modo de manifestar insatisfação e repúdio. Mas é um fato que temos que ler cada caso e entender a que servem esses escrachos.
• Como conciliar a felicidade com as duras tarefas de militância e luta por sobrevivência e resistência?
O exercício da cidadania não pode ser uma profissão. Creio na militância como esse exercício que faz parte da vida de muita gente. A questão da felicidade é a meta maior que se busca para uma sociedade. Não há felicidade particular em um mundo injusto. O que há é a luta que nos sinaliza para um mundo feliz a ser construído. Uma utopia no melhor sentido do que pode orientar nossas ações em todos os tempos e lugares.
• As mulheres têm cumprido papel fundamental na atual conjuntura política. A transformação da sociedade será feminista? O que é ser feminista?
O feminismo sempre foi uma busca de transformações profundas que pudessem dar conta dos direitos da sociedade como um todo. O feminismo desde seu início é uma crítica da sociedade. Começa como um questionamento sobre o lugar das mulheres na sociedade, a busca por seus direitos, o direito à educação e à cidadania. A percepção das contradições da dominação masculina fazem parte de sua história. Hoje podemos dizer que o feminismo é um grande questionamento em termos teóricos e práticos da estrutura patriarcal que coincide com o capitalismo. Quando falamos em feminismo queremos dizer que o capitalismo precisa ser desmontado em sua versão de gênero. Foram as feministas negras que colocaram as melhores questões para o sentido da crítica e da luta por emancipação em nossa época. O que chamamos de feminismo interseccional é o feminismo que opera desmontando classe, raça, gênero, idade, plasticidade. Ou seja, todo o feminismo que questiona os marcadores da opressão em nossa sociedade. Há quem diga que isso não é feminismo. Mas é feminismo no sentido da visão ampla que só o feminismo permite diante do machismo estrutural que foi incapaz de tornar problemáticas as opressões profundas da sociedade. Nesse sentido, os melhores teóricos críticos, que não incluem a questão da opressão de gênero junto a essas outras, falham na análise e não desmascaram o todo da opressão.
• Como conversar com um fascista?
O título do meu livro é uma ironia. De fato, o fascismo que se desenvolveu em nossa época, sob as condições atuais da tecnologia, mostra a verdade profunda da personalidade autoritária que o fascista torna espetacular: o fascista não está aberto ao outro. Ele não quer nem saber. Mesmo assim, se a tendência é que as pessoas se tornem, a convite do capitalismo, cada vez mais iludidas com o individualismo (e cada vez mais tristes, ressentidas e perdidas), é preciso continuar tentando pensar e agir contra essa tendência que ameaça a todos nós. A conversação e o diálogo são caminhos metodológicos para pequenos e grandes eventos éticos e políticos.
Perfil
Marcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia (UFRGS, 1999). Publicou diversos livros, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002); “Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita” (Escritos, 2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008); “Filosofia em Comum” (Ed. Record, 2008); “Filosofia Brincante” (Record, 2010); “Olho de Vidro” (Record 2011); “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011); “Sociedade Fissurada” (Record, 2013) e “Filosofia Prática, ética, vida cotidiana, vida virtual” (Record, 2014). Publicou também romances: “Magnólia” (2005), “A Mulher de Costas” (2006), “O Manto” (2009) e “Era meu esse Rosto” (Record, 2012). É autora ainda dos livros “Diálogo/desenho” (2010), “Diálogo/dança” (2011), “Diálogo/Fotografia” (2011), “Diálogo/Cinema” (2013) e “Diálogo/Educação” (2014), todos publicados pela editora SENAC-SP. Em 2015, publicou “Como Conversar com um fascista – Reflexões sobre o Cotidiano Autoritário Brasileiro” (Record, 2015). Também é colunista da revista “Cult” e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie.
Foto: Adriana Medeiros