Saneamento brasileiro: um histórico sobre os avanços e as lutas

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Foto: Camila Marins

*Clovis Nascimento

No Brasil, o processo neoliberal teve início durante o governo de Fernando Collor nos anos 1990 e avançou no governo de Itamar Franco com a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Mesmo diante de um cenário econômico neoliberal, nenhum dos dois presidentes ousou propor a privatização do setor energético e de saneamento. No entanto, em 1995, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para a Presidência da República, é inaugurada a agenda de privatização para ambos os setores.

A venda do setor elétrico e de telecomunicações avança, com a privatização da Telebrás e das distribuidoras de energia. No entanto, ao tentar privatizar o saneamento, o então presidente FHC esbarrou em uma questão, a titularidade. Isso porque o saneamento brasileiro desde a Constituição de 1930, prevê que o titular do serviço de saneamento é o município. Até os governos autoritários da ditadura militar respeitaram essa premissa. Tanto que na década de 1960, foram criadas as empresas estaduais de saneamento, começando por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Os governos militares obrigaram os municípios a se conveniarem com as empresas estaduais. Com a redemocratização, em 1985, esta medida cai, fazendo com que os recursos da União passassem a ser disponibilizados para todos os entes federados. Foi uma luta e também uma conquista.

As companhias se fortalecem por meio dos convênios com os municípios. No entanto, o obstáculo que propuseram foi que o município que não se conveniasse com a empresa estadual não teria acesso aos recursos do governo federal. Apesar desta obstrução, cerca de 1.600 municípios se mantiveram, sem assinar convênio e prestando diretamente os serviços de saneamento no âmbito de seu município, inclusive o município de Porto Alegre, que não é conveniado com a empresa estadual, a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento).

Este, portanto, foi um entrave que não permitiu a privatização das empresas estaduais, uma vez que estas, na qualidade de concessionárias das prefeituras, não poderiam privatizar os serviços sem autorização municipal. Diante deste impasse e da necessidade de convencer os 5.570 prefeitos a vender as empresas, o processo de privatização foi barrado.

A partir daí, o governo federal cria um projeto de lei para cassar a titularidade do município nas regiões metropolitanas, que é o PL 4147. Nessa ocasião, nós, movimentos sindicais e sociais, organizações e representantes de universidades, fundamos a Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA), congregando instituições como a ABES, a ASSEMAE, a FNU, a FISENGE e demais entidades do setor de saneamento. A coordenação ficou a cargo do engenheiro Abelardo de Oliveira. A Frente se organiza em torno da agenda de combate ao PL 4147/2001, defendendo a titularidade municipal. Quando o projeto entra em tramitação no Senado, a FNSA pressiona pela substituição da relatoria, uma vez que estava destinada ao senador Fogaça, que rezava a cartilha neoliberal de José Serra. Com esta articulação com a presidência do Senado, nós conseguimos a substituição e o senador Josaphá Marinho assume a relatoria. Josaphá, já falecido, era um jurista e político ilibado, embora conservador. Após várias conversas que tivemos com o relator, Josaphá compreendeu nossas demandas, principalmente com a dificuldade nas regiões metropolitanas, ou seja, apenas uma estação de tratamento para atender a vários municípios. Nesse momento, o senador Josaphá Marinho propõe uma saída brilhante: “a titularidade nessa situação deve ser compartilhada entre o estado e todos os municípios integrantes da região que recebem água desse manancial”.

Essa tese prevaleceu e, há cerca de três anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou, ou seja, nas regiões metropolitanas onde houver uma estação de tratamento com um manancial atendendo a vários municípios, a titularidade é compartilhada entre o estado e os municípios integrantes da região metropolitana. A partir dessa premissa, o projeto de lei não conseguiu avançar. O deputado Adolfo Marinho foi nomeado relator desse projeto, fazendo uma peregrinação pelo Brasil com audiências públicas, onde a Frente sempre estava presente. Conseguimos, portanto, que o projeto do Fernando Henrique não fosse votado.

Em 2003, assume o governo Lula, que pede o arquivamento do PL 4147, o que tira, definitivamente, da agenda do país a privatização do saneamento. O Brasil inicia, deste modo, uma nova era do setor, mesmo diante do quadro dramático deixado por FHC com a falta de investimentos federais e o consequente sucateamento das empresas, que ampliaram os índices de falta de abastecimento de água e esgotamento sanitário. A equipe que assume a Secretaria de Saneamento, nomeada pelo presidente Lula, coloca à disposição do serviço público brasileiro R$2 bilhões de reais para o setor, recursos do FGTS – financiados – sendo que o tomador tinha que comprovar capacidade de endividamento. Mesmo assim, ainda havia dificuldades para operação dos recursos do Orçamento Geral da União (OGU) por conta do superávit primário, já que o saneamento fazia parte do cálculo como gasto público, e não como investimento.

O presidente Lula cria, então, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tira o saneamento do cálculo do superávit, acabando com as amarras. Só no ano de 2007, por exemplo, foram disponibilizados cerca de 12 bilhões para o setor. Em paralelo, a Secretaria Nacional de Saneamento iniciou a formulação de um projeto de lei que pudesse dar um norte às ações de saneamento no Brasil, que se efetiva com a promulgação da lei federal nº11.445/2007. A nova legislação estabelece a realização do contrato programa, com o objetivo de firmar a segurança jurídica dos convênios entre a Prefeitura e as empresas estaduais. Isso significa que o contrato programa, quando assinado por dois entes públicos, dispensa a licitação, substituindo os antigos convênios. Outro ponto fundamental da lei nº11.445 é a necessidade de licitação, quando o contrato programa não for assinado por dois entes públicos, desde que precedida por audiências públicas, cumprindo uma rotina jurídica.

A lei define os elementos que constituem o saneamento básico: abastecimento e tratamento de água, esgotamento sanitário e manejo dos resíduos sólidos e das águas pluviais. A legislação ainda estabelece a necessidade de apresentação de um plano diretor municipal de saneamento, que precisa ser amplamente discutido com a população.

Nessa época, a nossa principal luta era a universalização dos serviços de saneamento, conquistando o Plano Nacional de Saneamento Básico. Com o golpe ao mandato da presidenta Dilma Rousseff, instaurado em 2015, e a consequente ascensão do governo ilegítimo de Temer, a privatização do setor volta à agenda. Este recrudescimento se materializa com a edição da Medida Provisória 844, que desestrutura o setor, os princípios de gestão e os marcos legais. A medida acaba, principalmente, com o subsídio cruzado, instrumento que permite que municípios com alta arrecadação financiem os municípios mais pobres, inviabilizando o acesso a serviços públicos de água e esgoto em municípios com menor arrecadação.

Em 2017, segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), do Instituto Brasileiro de geografia e Estatística (IBGE), divulgada em agosto de 2018, apenas 41,5% dos 5.570 municípios tinham um Plano Nacional de Saneamento Básico e 32,2% tinham uma Política Municipal de Saneamento Básico e 28,2% disseram que estão elaborando. Dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE apontam que, em apenas um ano (2017 a 2018), o Brasil passou a ter quase 2 milhões de pessoas a mais vivendo em situação de pobreza. A pobreza extrema também cresceu em patamar semelhante. Cerca de 70% da população que compõem o déficit de acesso ao abastecimento de água possuem renda domiciliar mensal de até 1/2 salário mínimo por morador. Isso significa que a população mais pobre estará vulnerável à falta de saneamento e à água.

Após o processo eleitoral à Presidência da República, no apagar das luzes, o governo de Michel Temer editou a Medida Provisória nº 868, que é praticamente uma outra versão da MP 844 que havia sido arquivada. A propositura acaba com possiblidade do contrato programa ser assinado por dois entes públicos, facilitando licitações para empresas privadas, cuja lógica é de privilegiar o lucro, e não a vida.

Com este cenário de ataque frontal ao saneamento, organizações da sociedade civil e movimentos sociais retomam a Frente Nacional pelo Saneamento, criam o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), que tem o objetivo de ser um braço técnico com formulação de estudos e investigações acerca de gestão, legislação e financiamento. Além disso, o ONDAS contribui para fortalecer a luta contra a privatização do serviço público de água e do esgotamento sanitário. A ordem do dia é derrubar a MP 868 por ela ser, sobretudo, inconstitucional e continuar a luta para que o saneamento brasileiro possa avançar. Na contramão internacional, o Brasil promove uma onda de privatizações. Desde 2000, ao menos 884 serviços foram reestatizados no mundo, com Alemanha, França e EUA no ranking de países, de acordo com Transnational Institute.

Privatizar o saneamento é privatizar a vida e a saúde, prejudicando ainda mais a população mais pobre no Brasil.

 

* Clovis Nascimento é engenheiro civil e sanitarista, pós-graduado em políticas públicas e governo, e presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge). Também é vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ). Exerceu o cargo de Subsecretário de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos do Rio de Janeiro e foi Diretor Nacional de Água e Esgotos da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, no período de 2003 a 2005. Profissional com mais de 40 anos de atuação no setor de saneamento ambiental. Clovis foi presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, eleito por dois mandatos.