O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos crimes cibernéticos fere o direito de liberdade de expressão e representa um retrocesso ao Marco Civil da Internet, aprovado em abril de 2014 (Lei nº 12.965). A análise é de sociólogos e advogados que avaliaram o texto apresentado em 31 de março, pelo deputado Esperidião Amin (PP-SC), relator da proposta. A CPI foi criada em 17 de julho de 2015, pelo presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ).
O texto foi analisado nesta quinta-feira, 07, às 10h30, na reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos (CPICIBER). O documento tem de ser aprovado até quarta-feira, 13, quando expira o prazo da CPI. Especialistas e instituições contrários ao teor da proposta querem adiar o processo de análise do documento.
A advogada Flávia Lefèvre Guimarães, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) e da Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), alerta para pontos polêmicos do relatório e de oito projetos apensados que alteram conquistas consideráveis obtidas no Marco Civil da Internet.
A especialista se disse “preocupada” com o teor da proposta da CPI dos crimes cibernéticos. “O relatório e as propostas de lei representam imenso retrocesso em relação a tudo que foi conquistado com o Marco Civil da Internet, de forma claríssima de cercear a liberdade de expressão, os direitos políticos e a livre informação”, alertou e lembrou que Cunha havia sido um dos “principais inimigos” na construção do Marco Legal da Internet.
A advogada considera grave um dos propositivos que permitem a coleta maciça de dados pessoais (CPF e RG) para acesso a plataformas da internet, sem que haja regras claras de como as empresas preservariam esses dados. As regras atuais do mecanismo de internet, segundo a advogada, impedem esses procedimentos, considerando a preocupação de preservar a privacidade dos usuários.
“Para criar uma conta no Facebook será preciso dar algumas informações pessoais, como CPF e RG”, exemplificou. “Isso cria vulnerabilidade enorme para os usuários”, avaliou. A advogada apontou ainda como crítico a proposta que prevê pena de dois anos para o usuário que violar termos de uso para utilização de sites.
Responsabilização do provedor sobre conteúdo postado
A especialista em Direito considera também como retrocesso a proposta sobre a responsabilização da publicação de conteúdo em blogs e redes sociais (Facebook e Twitter), por exemplo. “Esses projetos apresentados voltam com a história de que uma simples notificação, em determinadas circunstâncias, como calúnia, difamação e injúria, o provedor terá de excluir o conteúdo, independentemente de ordem judicial”, disse.
Por exemplo, se for postada em um blog uma denúncia contra um político, e ele discordar da publicação, este poderá encaminhar notificação ao provedor que o hospeda para excluir a informação. “Isso é um sério prejuízo ao direito de liberdade de expressão”, opinou.
A advogada lembrou, aliás, que esses foram alguns dos pontos polêmicos discutidos durante o processo de elaboração do Marco Civil da Internet. Disse que foi prevalecida, porém, a prerrogativa de o provedor retirar o conteúdo postado somente em casos de ordem judicial reconhecendo algum tipo de ilicitude e justificando a retirada do conteúdo postado.
“A única exceção que o Marco Civil estabeleceu para retirar com simples notificação são os casos de pornografia e de cenas de nudez não autorizadas”, lembrou a advogada.
Leitura sociológica
O sociólogo Sergio Amadeu da Silveira, doutor em Ciência Política e pesquisador de redes digitais, concorda que o relatório final da CPI dos crimes cibernéticos possui uma série de proposições que colocam em risco as conquistas do Marco Civil da Internet no Brasil; e que retomam a “pontos polêmicos e perigosos” do projeto de lei conhecido como AI-5 Digital, que havia sido derrotado na legislatura passada.
“A CPI de crimes cibernéticos retrocede em relação ao Marco Civil e coloca o Brasil, novamente, a reboque dos interesses vigilantistas da política norte-americana de destruição de direitos, em razão de um suposto combate ao terrorismo”, disse.
“Pesquisadores de redes digitais, ativistas da democratização das comunicações e juristas apontam que o relatório proposto pela CPI cria medidas de exceção inaceitáveis para uma sociedade democrática. Não é destruindo direitos que defenderemos nossa sociedade contra qualquer tipo de crime”, complementou Silveira, também professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC).
O sociólogo criticou, por exemplo, o fato de o relatório da CPI propor incluir no Marco Civil “o endereço IP como dado cadastral”. Desse modo, o sociólogo entende que qualquer policial poderá exigir dos provedores a vinculação de um determinado IP a uma identidade civil. Também poderá obter toda a navegação que a pessoa realizou na Internet.
“Sem ordem judicial, isso se presta mais ao autoritarismo, à chantagem e à perseguição de cidadãos comuns. É inaceitável que as informações sobre o uso da Internet sejam obtidas sem uma ordem judicial fundamentada”, argumenta.
O sociólogo considera ainda como “perigosa” a ideia de bloquear aplicações existentes na Internet. Esse procedimento permitirá que qualquer juiz, por exemplo, mande proibir o acesso às redes P2P (peer-to-peer) ou coibir o acesso às novas tecnologias e implantar um obscurantismo digital inaceitável para um país que pretende avançar na era informacional.
Mobilização reforçada
Já existem mobilizações, tanto nacionais como internacionais, contrárias ao relatório da CPI dos crimes cibernéticos. Organizações da sociedade civil e da academia, reunidas na conferência RightsCon Silicon Valley 2016, organizaram uma sessão especial, no dia 1º. de abril, sobre o tema e redigiram um abaixo-assinado, pedindo aos congressistas que não aprovem o relatório final da CPI Congresso Nacional. O texto original, em inglês, também encontra-se disponível online.
Ao mesmo tempo várias organizações da sociedade civil encaminharam uma nota técnica à Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos em que reforçam a preocupação com o relatório final da CPI.
Fonte: Jornal da Ciência