Reformas pra quem?

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Uma série de políticas de restrição de direitos vem acontecendo em nosso país nos últimos meses. O governo não eleito de Michel Temer anuncia mudanças radicais na legislação brasileira.
A primeira medida anunciada foi a de espoliação do fundo público por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto dos gastos públicos. Com a finalidade de transferir qualquer excedente de arrecadação para as despesas financeiras, ou seja, para o pagamento de juros da dívida pública, o governo propõe, com a PEC 55, congelar por até 20 anos as despesas primárias (SUS, universidades públicas, saneamento, cultura, investimento, etc) de nosso país. As reformas previdenciária e trabalhista (via aprovação das terceirizações irrestritas) – também propostas pelo governo – anunciam perdas de direitos elementares e preocupam trabalhadores que temem a precarização das condições do trabalhoe diminuição dos salários. A engenharia é uma das profissões maisafetadas em período de crise política e econômica e, de acordo com especialistas, isso pode se intensificarcom as atuais medidas do governo.

REFORMA DA PREVIDÊNCIA IRÁ DIFICULTAR A APOSENTADORIA

A Reforma da Previdência foi anunciada,em dezembro de 2016, pelo secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano. A PEC 287/16 tramita, atualmente, na Câmara dos Deputados. O objetivo é reduzir as despesas públicas com aposentadorias, pensões e benefícios sociais e, para isso, propõe uma série de drásticas alterações no acesso da população aos direitos previdenciários. Para o governo, há um déficit nas contas do INSS e do regime de aposentadoria dos servidores públicos. O secretário Marcelo Caetano afirmou que as pessoas estão vivendo mais no Brasil e, portanto, a elevação contínua da expectativa de vida acarretaria em um colapso no regime previdenciário. Nas palavras de Caetano,é necessário “reformar a previdência para manter a previdência”. Esse déficit citado pelos representantes do governo, no entanto, é contrariado por especialistas. Para Leonardo Leite, professor de Economia Brasileira e Desenvolvimento Econômico na Universidade Federal Fluminense (UFF), tal argumento é falho, pois a Previdência está inserida dentro de um sistema maior.

A Seguridade Social tem receitas vinculadas a contribuições sociais como CSLL, PIS/ Pasep e Cofins, que foram criadas a partir da Constituição de 1988. “São contribuições que os empregadores pagam, arrecadadas pelo governo e que deveriam ser transferidas para a Seguridade Social. O governo, no entanto, transfere parte desses recursos para o pagamento da dívida pública e não leva em conta isso no cálculo. Por isso falam que existe um déficit”, afirmou o professor. Em entrevista à Fisenge, a economista do Dieese, Maria de Fátima Lage Guerra, também contraria a falácia do déficit. “Essa concepção de que o sistema previdenciário é deficitário surge de uma visão financista e privatista da previdência, muito comum entre os interessados em um promissor mercado de seguros privados e entre governantes que almejam ter acesso a uma maior parcela dos recursos públicos para os seus projetos políticos. Mas essa concepção que, infelizmente, vem ganhando força na sociedade, está em desacordo com a nossa Constituição que, em seu artigo 194, define a previdência como parte integrante do conceito de Seguridade Social, junto com os direitos relativos à educação e à saúde. Como tal, a previdência deve ser financiada em base tripartite, na forma de contribuições provenientes dos trabalhadores, dos empregadores e tributos gerais, arcados por toda a sociedade.

Considerando essa ampla e diversificada base de financiamento, o orçamento da Seguridade Social é e sempre foi superavitário, não havendo porque suprimir ou restringir nenhum direito previdenciário adquirido pelos trabalhadores”, explica a economista. Para Leite, a forma como é proposta a Reforma da Previdência, via corte de gastos e benefícios, é uma escolha ideológica. “O suposto ‘rombo’ poderia ser coberto com uma reforma tributária que taxasse os mais ricos, por meio de um reescalonamento do imposto de renda, de impostos sobre propriedade (IPVA, IPTU, por exemplo) e de impostos sobre herança (ITBI, por exemplo), com a criação de impostos sobre grandes fortunas ou com o retorno do imposto sobre dividendos”. É, portanto, uma escolha ideológica fazer com que a classe trabalhadora e os mais pobres paguem por isso.

O QUE MUDA COM A REFORMA DA PREVIDÊNCIA?

Para reduzir as despesas públicas, a Reforma propõe alterações drásticas no acesso da população aos benefícios previdenciários. A idade mínima para aposentadoria aumenta para 65 anos e a regra passa a ser a mesma para homens e mulheres do campo e da cidade. O tempo de contribuição que, em nossa legislação atual é de 15, passa para 25 anos. Entretanto, para receber aposentadoria integral será preciso trabalhar 49 anos. Isso significa, na prática, que o trabalhador precisa começar a trabalhar aos 16 anos – sem ficar desempregado no decorrer da vida – para conseguir se aposentar aos 65 com a integralidade de seus rendimentos. Para Leite, o projeto do governo é jogar os trabalhadores para o regime de previdência privada e, assim, gerar mais capital para o mercado financeiro. “Basicamente é esse o movimento: de fortalecer a previdência privada e enfraquecer a previdência pública. Esse é o grande objetivo da Reforma da Previdência, que está alinhado com as outras reformas neoliberais do governo”, explica o professor. Ainda para ele, a Reforma da Previdência vai fazer com que trabalhadores mais pobres tenham uma diminuição nos seus rendimentos.

A desvinculação das aposentadorias, pensões e dos benefícios de prestação continuada do salário mínimo também é um ponto questionado por especialistas. Se os valores dos benefícios passam a ter um tipo de reajuste diferente do salário mínimo, a tendência é que esses valores diminuam consideravelmente ao longo do tempo. De acordo com Leite, “a vinculação dos benefícios previdenciários ao salário mínimo foi um dos principais fatores responsáveis pela diminuição na concentração da renda entre 2003 e 2014. Em muitas cidades pequenas do interior, o BPC é a única fonte de renda para a maioria das famílias”. A proposta da Reforma da Previdência altera o Benefício de Prestação Continuada que atende os trabalhadores mais pobres e pessoas portadoras de necessidades especiais. A idade mínima para requerer esse benefício passou de 65 para 70 anos. Outro ponto bastante criticado na Reforma da Previdência é o simplismo da regra de transição. Trabalhadores acima dos 50 anos e trabalhadoras acima de 45 irão se aposentar dentro dos parâmetros da legislação que temos hoje. Por exemplo, uma trabalhadora de 45 anos entra na regra de transição e vai trabalhar um pouco mais de dez anos até se apo Entretanto, uma trabalhadora de 44 trabalhará mais 21 anos.

QUEM PAGA A CONTA?

A Reforma da Previdência que tramita no Congresso causará, caso aprovada, enorme impacto na vida dos trabalhadores. Para Simone Baía, engenheira química e diretora da mulher da Fisenge, a fixação da idade mínima para 62 anos parte de um raciocínio simplista e perverso, pois a expectativa de vida é muito diversa no Brasil. Quem mais se prejudica com as medidas propostas, de acordo com a engenheira, são as pessoas mais pobres, as mulheres e trabalhadores rurais. Segundo Simone, a fixação da idade mínima para 62 anos para homens e mulheres, trabalhadores do campo e da cidade já mostra a quem serve a reforma. Ela explica que as mulheres são mais prejudicadas pois são submetidas à dupla ou até mesmo à tripla jornada de trabalho em decorrência de um machismo estrutural em nossa sociedade. São, na maioria das vezes, submetidas ao trabalho fora e também ao trabalho doméstico. Para a engenheira, é uma desigualdade muito intensa, já que “a mulher, que trabalha muito mais, vai perder um direito adquirido com muita luta de se aposentar cinco anos antes”. Ainda segundo Simone, o trabalhador rural também é muito prejudicado, pois as condições de trabalho no campo são extremamente desgastantes. As regras previstas na Reforma Previdenciária propõem duas alterações que acabam por atingir diretamente a Previdência Rural, um importante mecanismo de combate à desigualdade: a idade mínima e a exigência de contribuição individual e obrigatória por 25 anos.

Estima-se que atualmente 9,5 milhões de pessoas são beneficiadas pela Previdência Rural. Para a economista Maria de Fátima Lage Guerra, “o Brasil, em função de suas múltiplas desigualdades, não tem um mercado de trabalho e nem uma população homogênea. Os trabalhadores rurais, por exemplo, têm em média uma expectativa de vida menor do que os trabalhadores urbanos, já que começam a trabalhar mais cedo e em condições bem mais adversas, recebendo inclusive um salário menor pelo seu esforço. A inclusão desses trabalhadores no sistema, com as ‘vantagens’ conhecidas foi, na verdade, uma tentativa dos constituintes de reparar parte dessas distorções que ainda persistem, apesar dos lentos avanços. Logo, tratá-los como os demais não me parece justo”. Simone Baía explica que não podemos discutir a previdência sem perceber as especificidades de determinadas situações. No fim, quem paga a conta são as pessoas em maior situação de vulnerabilidade. “Não dá para comparar. São realidades completamente diferentes e quem está propondo essa reforma já se aposentou”, enfatiza Simone.

REFORMA TRABALHISTA OU DESMONTE DA CLT?

A Reforma Trabalhista, proposta pelo governo Temer, promove alterações na legislação e passa a garantir, caso aprovada, a supremacia de acordos coletivos sobre as leis trabalhistas. Na prática, a medida acabará por comprometer condições de trabalho, jornada, remuneração, direito a greve, etc. O princípio “negociado sobre o legislado” é um dos mais importantes pontos defendidos pelo governo nas mudanças propostas. A Reforma prevê que esse princípio seja a base reguladora em direitos como jornada de trabalho, horas extras, parcelamento de férias, etc. Para o engenheiro civil, sanitarista e presidente da Fisenge, Clovis Nascimento, isso quer dizer que garantias conquistadas em lei poderão ser derrubadas por acordos. Ou seja, toda a legislação trabalhista será descartada privilegiando a negociação coletiva, que passará a prevalecer sobre o determinado na lei. Dessa forma, direitos atuais podem passar a ser considerados concessões. “Na reforma trabalhista, a prevalência do negociado sobre o legislado poderá, por exemplo, acabar com o Salário Mínimo Profissional [lei. 4950-A/66]. Isso porque as negociações e acordos coletivos poderão ter força de lei e ignorar toda a legislação vigente. Se um acordo coletivo trouxer como cláusula o pagamento de salários inferiores ao Salário Mínimo Profissional dos engenheiros, a lei poderá ser ignorada.

Hoje, os sindicatos e as entidades de classe recorrem à Justiça para garantir o cumprimento do Salário Mínimo Profissional. Com a reforma trabalhista, uma lei histórica para a nossa categoria de engenheiros, e outras leis específicas de outras categorias deixarão de existir”, explicou Clovis Nascimento. O Projeto de Lei nº 6.787/2016 que regulamenta a Reforma Trabalhista tramita atualmente na Câmara dos Deputados e representa, de acordo com especialistas, uma séria ameaça à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), conquistada com intensa luta do movimento social organizado de trabalhadores e trabalhadoras. Para Clovis, o negociado sobre o legislado acaba por permitir que o mercado defina os termos do contrato de trabalho. “Foram décadas de luta pelo estabelecimento da CLT. Foram gerações lutando para a formulação de efetivação de um conjunto de leis,inclusive pelo Salário Mínimo Profissional dos engenheiros. Tudo o que está na lei trabalhista como um todo está em risco com a reforma trabalhista”, alertou o engenheiro. Para o professor Leonardo Leite, a introdução de mecanismos como o negociado sobre o legislado pode significar a destruição da CLT. Os acordos e as convenções coletivas vigentes têm como objetivo a conquista de mais direitos e benefícios mas, com a aprovação da Reforma, poderão servir como instrumentos para prejudicar os trabalhadores.

O QUE PODE MUDAR COM A REFORMA TRABALHISTA?

No texto proposto, o governo listou uma série de itens que poderão ser negociados e um deles é a ampliação da jornada de trabalho. A Constituição Federal prevê que é direito dos trabalhadores urbanos e rurais a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais. Entretanto, a Reforma Trabalhista prevê que o cumprimento dessa jornada seja negociado entre patrões e empregados, e a proposta impõe o limite máximo de 220 horas mensais e 12 horas diárias. Para Simone Baía, a ampliação da jornada de trabalho prejudica, sobretudo, as mulheres (pela dupla ou até mesmo tripla jornada de trabalho) e as pessoas submetidas a trabalhos desgastantes. “Um trabalhador do campo, por exemplo, vai passar 12h por dia em um trabalho que exige força física extrema?”, questiona a engenheira. Outro item fundamental, que também passa a ser negociado, é o parcelamento das férias. Pela legislação atual, os 30 dias de férias podem ser utilizados integralmente ou de maneira fracionada. No caso de parcelamento, a CLT prevê a divisão das férias em apenas dois períodos, considerando que um desses não pode ser inferior a dez dias corridos. Com a aprovação da reforma o parcelamento de período de férias anuais poderá ser feito em até três vezes. Nem mesmo o horário de almoço escapou.

De acordo com a CLT, em trabalho contínuo, cuja duração exceda seis horas, é obrigatória a concessão de intervalo para repouso ou alimentação de, no mínimo, uma hora. Com a Reforma Trabalhista em vigor, o tempo limite mínimo passa a ser 30 minutos. Isso significa que as empresas poderão reduzir horário previsto para descanso e/ou alimentação de seus funcionários. Caso aprovado, o fim da ultratividade, que é um princípio que garante os direitos de acordo ou convenção coletiva, os direitos conquistados por trabalhadores em negociações coletivas anteriores serão extintos automaticamente, iniciando nova negociação. A lista de itens que poderão ser negociados de acordo com o governo é extensa e contém, ainda, a negociação na participação nos lucros e resultados da empresa, jornada de deslocamento, entrada no programa Seguro-Emprego (PSE), plano de cargos e salários, banco de horas, trabalho remoto, remuneração por produtividade e o registro de jornada de trabalho.

FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO

A reforma trabalhista está sendo proposta no contexto da aprovação das terceirizações irrestritas e da intensificação do trabalho temporário. De acordo com especialistas, a terceirização, inclusive nas atividades-fim das empresas, estimulará a chamada pejotização das relações de trabalho, ou seja, os trabalhadores assalariados serão transformados em pessoas jurídicas desprovidas de qualquer direito trabalhista. Os contratos de trabalho temporários também sofrerão alterações, sendo estendidos para seis e podendo chegar a nove meses. Para Leonardo Leite, a função prática da reforma trabalhista é fazer com que os salários diminuam. Na opinião de Julia Cassab, Engenheira de Controle e Automação recém-formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tais mecanismos vão acabar por dificultar condições satisfatórias de trabalho, já que o contrato de Pessoa Jurídica (PJ) exime o contratante de uma série de responsabilidades. Para a jovem engenheira, “a lei da terceirização vai facilitar o aumento dos contratos de PJ, que são piores e mais instáveis para o contratado”.

De acordo com Leonardo Leite, a flexibilização das leis trabalhistas dá um poder muito maior aos empregadores, já que apenas em casos muito específicos os trabalhadores têm o poder de barganha sobre os patrões. O ônus dessa flexibilização, ainda, se intensifica em um país profundamente desigual, no qual parte considerável da população é desempregada ou subempregada.Esse processo de flexibilização das leis trabalhistas está sendo feito em diversos países. A intenção, para Leite, é tornar mais simples as demissões e contratações. A resposta internacional à crise estrutural que vivemos hoje mundialmente é basicamente a mesma colocada no Brasil: restrição de direitos e espoliação do fundo público. “É o que se manifesta, por exemplo, na Grécia, França, Argentina, Portugal, Espanha, dentre muitos outros lugares”, conclui o professor.

Por: Laura Ralola