A discussão sobre a revisão tributária dos impostos e contribuições sociais recai em um imenso tabuleiro de forças políticas
O professor aposentado de Direito Financeiro e Tributário da UERJ, Alexandre da Cunha Ribeiro Filho, experiente administrador tributário do Estado do Rio de Janeiro, tem defendido há anos uma reforma tributária justa para o país.
O professor Alexandre foi um duro crítico do projeto de reforma tributária apresentado em fevereiro de 2008 pelo governo do presidente Lula, que tinha três vertentes: 1) A unificação da legislação federal do ICMS; 2) A criação de um IVA-Federal com a unificação da PIS, da Cofins e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido; e 3) A desoneração da folha de pagamento das contribuições sociais.
Segundo o professor, nenhuma daquelas alterações acarretaria em efetiva justiça fiscal, pois todas persistem no equívoco da tributação regressiva (tributação dos consumidores) e constituem mera tentativa de copiar o modelo europeu de IVA (imposto sobre o valor agregado), totalmente diverso da realidade política, econômica e social brasileira.
A exemplo das propostas de reforma dos governos FHC e Lula, a atual, apresentada por iniciativa da Câmara dos Deputados, por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, não toca no calcanhar de Aquiles do injusto sistema fiscal brasileiro, que faz com que a tributação recaia preferencialmente sobre o consumo, de forma regressiva e que onera basicamente a força de trabalho, num país em que, a cada ano, vem se ampliando a concentração de renda em favor dos muito ricos, fazendo com que os bancos sejam a única atividade econômica a ter aumento de lucros sucessivamente, ano após ano, e de forma exorbitante.
A proposta em debate na Câmara dos Deputados pretende unificar os tributos que recaem atualmente sobre o consumo de bens e serviços – de competência da União (IPI, Cofins e PIS), dos Estados (ICMS) e dos municípios (ISS) – num único imposto – o IBS, imposto sobre bens e serviços -, a ser administrado e compartilhado entre a União, os estados e os municípios.
Pela proposta, pretende-se que o novo imposto seja neutro, com uma única alíquota, sendo arrecadado pela indústria e pelo comércio, porém cobrado somente no destino, ou seja, sendo o tributo pago exclusivamente pelo consumidor final, no momento da aquisição efetiva da mercadoria ou da prestação do serviço.
Pode-se dizer que a atual proposta de Reforma Tributária, apresentada pela Câmara dos Deputados, nasceu do oportunismo político da atual legislatura (2019-2023), que, em pouco tempo, percebeu a completa falta de articulação e habilidade do Executivo, além da fraqueza política do atual chefe do governo federal, na relação direta com os parlamentares.
Abriu-se, assim, espaço para o presidente da Câmara dos Deputados e o Centrão apresentarem uma pauta política para o País, que, independente de ser a melhor, ou não, para o interesse da população, lhes permite a ampliação da margem das barganhas inerentes à política.
Nesta atmosfera política, onde medem forças, de um lado, os parlamentares e, do outro, o governo federal (além dos estados e municípios, pois também estão em jogo os tributos de suas respectivas competências), existe a possibilidade, já declarada, de serem apresentadas outras propostas de reforma tributária para serem debatidas em conjunto com essa em curso na Câmara dos Deputados.
Eventuais propostas podem contemplar os seguintes interesses: 1) Da União, mediante a proposta de criação de um IVA-Federal, com unificação dos tributos de competência federal sobre bens e consumo (IPI, PIS e Cofins); 2) Dos Estados, através de um IVA-Dual, no qual seriam unificados o ICMS e o ISS, com três alíquotas (uma principal, uma reduzida e outra ampliada), ficando a administração e controle do imposto para estados e municípios, sem a participação da União; e 3) Dos municípios, que podem apresentar proposta para assegurar sua competência constitucional, conforme a estrutura federativa brasileira.
Inegavelmente, a discussão sobre a revisão tributária dos impostos e contribuições sociais (incidentes sobre o faturamento, bens e serviços destinados ao consumo final) recai em um imenso tabuleiro de forças políticas, onde os confrontos se dão por envolverem os interesses diretos das entidades federativas e suas respectivas capacidades de arrecadação de receitas.
Tais interesses não são fáceis de se compor, independente da vontade das entidades empresariais e dos consumidores de ver reduzido o alto custo de gerenciamento do recolhimento tributário e da elevada carga econômica, uma vez que causam impacto sobre o faturamento das empresas, sem que a população tenha a respectiva contrapartida efetiva de prestação de serviços públicos.
Existe, sem dúvida, a necessidade de se fazer uma reforma tributária, porém, as propostas apresentadas até aqui limitaram-se a tentar repassar todo o custo para a população, de forma regressiva, não havendo qualquer iniciativa por parte dos governos e do parlamento de tentar entender se é possível reduzir a carga de tributos paga pelos consumidores, além de passar a cobrar efetivamente, de forma progressiva, daqueles que, tendo muito, nada ou quase nada pagam de tributos no País.
Em um debate sério, a primeira questão a ser discutida tem a ver com o conhecimento do real montante da dívida pública da União, dos estados e dos municípios. Em seguida, saber se a dívida pública foi ou está sendo paga pelas entidades federativas e, por fim, a possibilidade de sua quitação efetiva.
Sem o conhecimento do total da dívida pública, que só aumenta (de forma quase exponencial), não é possível reduzir a carga tributária, limitando-se os sucessivos governos, inclusive o que agora está no exercício do poder, a alegarem a necessidade de venda do patrimônio público, promovendo a entrega das riquezas do País por baixíssimos preços de mercado para cobrir o suposto endividamento público, que nunca se finda; a exemplo do que ocorreu em todo o processo de privatização e de concessões, iniciadas nos anos 90 do século passado e mantidas em curso até hoje pelos diversos governos, nos âmbitos federal, estadual e municipal. Com o País queimando o seu patrimônio, a cada ano fica mais pobre e amplia-se a concentração de renda nas mãos de uns poucos, que tudo podem, em detrimento da massa da população.
A segunda medida seria restringir ao máximo a concessão de desonerações tributárias, por meio de redução de base de cálculo, não-incidência, isenções, contratos de regimes especiais etc., o que acaba possibilitando favores para alguns e desigualdades para o conjunto do País.
A terceira medida, urgente e necessária, seria tornar eficaz o princípio constitucional da progressividade, na medida em que, atualmente, os mais ricos não pagam tributos de forma justa em relação à classe média e aos demais trabalhadores.
Pode-se afirmar, sem nenhum temor, que o patrimônio e a renda dos muito ricos quase não é tributado. O Portal G1, em 22 de junho de 2019, veiculou a seguinte notícia: “Dados do IR (Imposto de Renda) mostram que super ricos têm mais isenções e pagam menos impostos no Brasil. Quanto maior a faixa de renda, maior é a parcela de rendimentos isentos, o que faz com que o topo da pirâmide pague uma alíquota efetiva menor. Faixa mais alta de renda paga, em média, 2% do IR, ao passo que faixas intermediárias pagam até 10,5%.”
Portanto, uma reforma tributária justa tem que, essencialmente, rever a tributação regressiva, que recai diretamente sobre a população mais pobre e a classe média, passando a incidir a tributação, verdadeiramente de forma progressiva, sobre os muito ricos, que nada ou quase nada pagam de impostos no País.
O debate aberto pela Câmara dos Deputados, por meio da PEC 45/2019, não toca neste ponto, o que nos permite afirmar que não se trata de uma reforma tributária, mas de mera tentativa de revisão dos tributos que incidem sobre o consumo da população, que, ao final das contas, continuará suportando todo o ônus tributário e ficará cada dia mais pobre, diante de governos totalmente desinteressados em fazer justiça fiscal e prestar serviços públicos dignos.
Sem propostas verdadeiras para o País, limitam-se a repetir o lugar comum, qual seja, que tais reformas são necessárias para o bem do País etc. Porém, elas têm se revelado contrárias aos interesses do povo, que está sem emprego formal, sem previdência, sem saúde, sem assistência social e sem educação, apesar de pagar, e muito, por tributos que não lhe favorecem.
Fonte: Carta Capital