Redução da política de conteúdo local representa ameaça para a engenharia e o Brasil

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on email

Em fevereiro de 2017, o Ministro de Minas e Energia do governo interino, Fernando Coelho Filho, anunciou novas regras de Conteúdo Local (CL) para a indústria de petróleo e gás. As regras já passam a valer para a 14ª rodada de leilões da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), prevista para o segundo semestre deste ano. A exigência da participação da indústria nacional em equipamentos, serviços e tecnologias foi cortada em uma média de 50%. Em nota, a Fisenge se pronunciou contrária às mudanças. “Atualmente, a média de exigência de conteúdo local é de 65% a 79%. Com a redução pela metade, o Brasil ficará refém de empresas estrangeiras. Isso significa que o mercado internacional será privilegiado nas contratações”. O governo determinou que, nas áreas terrestres de exploração, a cota obrigatória passa a ser de 50% de CL e, para a exploração marítima, 18% de componentes nacionais. Na construção de poços, o número fixado foi de 25% e no sistema de coleta e escoamento, 40%. Para a construção de unidades estacionárias e plataformas, o conteúdo mínimo exigido será de 25%. A posição contrária à medida é consenso em diversas entidades nacionais, sindicatos patronais e de trabalhadores. De acordo com o engenheiro agrônomo Maurício Garcia, “é mais que oportuna a necessidade de uma aliança para a reconquista dos direitos e ampliação do desenvolvimento brasileiro”. Para o engenheiro, essa união é estratégica para impedir que o Brasil volte à condição de dependente, retrocedendo no seu papel de afirmação no cenário internacional e desenvolvimento com justiça social que vinha trilhando desde 2003. De acordo com nota da Federação Única dos Petroleiros (FUP), “o desmonte da Petrobrás caminha junto com o fim da política de conteúdo local. O objetivo é escancarar todoo setor petróleo para as empresas estrangeiras”.

O CONTEÚDO LOCAL NO BRASIL

A Política de Conteúdo Local (CL) foi implementada no Brasil com o intuito de ampliar e fortalecer a indústria nacional, gerando emprego e renda para o país. Segundo informações do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp), “o conceito de Conteúdo Local nada mais é do que a proporção dos investimentos nacionais aplicados em um determinado bem ou serviço, correspondendo à parcela de participação da indústria nacional na produção desse bem ou serviço”. Desde 1999, a ANP estabelece requisitos de CL em seus contratos de concessão. Entretanto, até o início dos anos 2000 a regra era apenas declaratória. Após 2003, as regras de CL passaram a ser mais específicas, estabelecendo participação mínima de bens e serviços produzidos internamente no país, gerando multas às operadoras que descumprissem o determinado. Com a criação da Cartilha de Conteúdo Local do Prominp, uma metodologia de cálculo do CL de bens, sistemas, subsistemas e serviços relacionados ao setor foi definida. Em 2007, foi regulamentado o Sistema de Certificação de Conteúdo Local, com o objetivo de estabelecer as condições legais para a realização da medição do CL. De acordo com referências do Prominp, “o sistema passa a estabelecer, entre outros procedimentos, a metodologia para a certificação e as regras para o credenciamento de entidades certificadoras junto à ANP”.

A participação da Petrobrás na Política de Conteúdo Local, desde sua instituição pelo governo Lula após 2003, foi de grande importância na atração de investimentos para o país. De acordo com o Relatório do GT Pauta Pelo Brasil, foram identificados ganhos importantes para a Petrobrás e o Brasil. “Para a Petrobrás, o atendimento crescente de sua demanda de máquinas e equipamentos por produção nacional torna-se importante devido a fatores como: acesso à assistência técnica local, maior garantia de fornecimento com maior acompanhamento da fabricação desses bens, redução dos riscos ligados à política externa, aumento da capacidade de inovação dos fornecedores, redução de estoques e, até mesmo, redução dos custos. Para o país, os ganhos acontecem com a geração de mais empregos e renda, diversificação da economia local, crescimento sustentável da economia, ambiente seguro para atração de investimentos, desenvolvimento da capacidade produtiva local e aumento da arrecadação de impostos”, conclui o relatório. De acordo com Leonardo Urpia, da FUP, “com os investimentos decorrentes dos programas de conteúdo local, a engenharia pode desenvolver tecnologias de ponta, potencializando a indústria nacional.

Dados e estudos confirmam que a exigência de conteúdo local cria empregos e agrega valor a economia do país”. Ainda para Urpia, “na ordem de para cada bilhão investido pela Petrobrás – com a média da exigência de conteúdo local dos últimos leilões – são gerados 20 mil empregos e adicionados 860 milhões ao PIB”. A Plataforma Operária e Camponesa pela Energia enfatizou em nota que as exigências de CL nas contratações da Petrobrás fortaleceram a indústria naval e fizeram renascer a engenharia brasileira. De acordo com José Ricardo Roriz Coelho, representante da Federação das Indústrias no Estado de São Paulo (Fiesp), “a política de conteúdo local viabilizou o crescimento de uma cadeia de fornecedores para as atividades de exploração e desenvolvimento da produção de petróleoe gás natural. Por meio de grandes investimentos realizados pelas empresas fornecedoras, milhares de empregos foram criados”. Ainda para José Ricardo, a indústria de transformação estimula a geração de empregos em seu próprio setor e também em toda a economia devido ao seu alto encadeamento em diversas atividades. “O crescimento industrial estimula o comércio, os serviços de transportes, informação, comunicação,produção de energia elétrica… isso também ocorre na indústria fornecedora do mercado de petróleo e gás, que gera empregos de qualidade,além de ter efeitos indiretos em diversos setores da economia. Por isso, é importante que a indústria tenha condições de se expandir na economia brasileira”, explica. A Fiesp foi uma das articuladoras e apoiadoras do golpe ao mandato da presidenta Dilma Rousseff.

O QUE ALEGA O GOVERNO?

O Ministro de Minas e Energia Fernando Coelho afirmou que as mudanças trariam números mais realistas para a obrigatoriedade do CL. “No passado este número era muito alto e muitas vezes as empresas não conseguiam cumprir”, afirmou o ministro, se referindo aos números alterados. Sob o slogan “Menos burocracia. Mais competitividade”, o ministro enfatizou que, no entendimento do governo, “é melhor um percentual baixo que todos possam atingir”. O diretor da Petrobrás, Pedro Parente, afirmou, semanas depois do anúncio oficial do Ministro de Minas e Energia, que o percentual de CL não limitará, obrigatoriamente, a participação da Petrobrás ao mínimo determinado pela legislação. O presidente criticou a atuação da ANP, à qual cabe o controle do CL. Em sua opinião, a cobrança de multas pela reguladora “encarece as propostas comerciais e tira a atratividade dos leilões”. Ainda para Parente, a revisão da regra de conteúdo local para a 14ª rodada deve ser comemorada. De fato, o relatório final lançado pelo GT Pauta Pelo Brasil, construído pela FUP e Petrobrás, já destacava, em 2016, a necessidade de revisão sobre o caráter fundamentalmente punitivo da operacionalização da política. O relatório fez esse alerta “para que se evite a geração de uma ‘indústria de multas’, sem que estas gerem ganhos efetivos ou resultados positivos para o país”.

Esse mesmo relatório, entretanto, afirma os benefícios alcançados com a Política de CL e sua importância para o desenvolvimento do país. Para Valter Fanini, diretor da Fisenge e vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros do Paraná, a redução do CL vai na contramão do que está sendo implementado no mundo. “Enquanto outros países estão se protegendo, nós estamos abrindo setores frágeis da nossa economia para uma destruição total pelo estrangeiro. Todas as grandes nações estão se protegendo. Algumas já protegiam e outras estão percebendo que devem se proteger. Inclusive os EUA perceberam que devem ter controle nacional para proteger seu produto industrial. Estamos indo na contramão das grandes nações”, enfatizou o engenheiro. De acordo com estudo da United States Trade Representative, cerca de 75% dos países em desenvolvimento e 30% dos países desenvolvidos utilizaram-se da política de CL. Para o representante da Fiesp, José Ricardo Roriz Coelho, países que não adotaram regras bem definidas de conteúdo local enfrentam problemas socioeconômicos e são exemplos de má utilização de seus recursos naturais.

A Plataforma Operária e Camponesa pela Energia afirmou, em nota, que “essas novas regras revelam que a inspiração do governo ilegítimo, assim como a atual gestão da Petrobrás, se dá no modelo nigeriano em detrimento do modelo norueguês. A Nigéria, em relação aos seus bens naturais, é pura e simplesmente um país exportador que, mesmo comuma importante produção, tem um consumo interno muito pequeno e ‘optou’ por exportar seu petróleo in natura sem exigência do conteúdo local, ou seja, sem a contrapartida de fortalecer sua indústria e investir em tecnologia. O resultado é a ausência de desenvolvimento econômico, muito menos social”. Já a Noruega “utilizou a descoberta do petróleo no Mar do Norte nos anos de 1970 para impulsionar sua economia e, dentre os itens importantes, estava a priorização do conteúdo local, que proporcionou para aquele país o desenvolvimento econômico e social”.

REDUÇÃO DO CL E DESMONTE DA ENGENHARIA NACIONAL

De acordo com o engenheiro naval Alan Paes Leme Arthou – que atuou como diretor do programa de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nuclear do Ministério de Ciência e Tecnologia – a redução do CL é muito vantajosa para as empresas estrangeiras. Segundo Alan, tudo aquilo que estiver sendo produzido no Brasil resultará em royalties para o exterior, “ou seja, eles conseguiram vender um produto que vai dar constantemente dinheiro para eles”, afirma.De acordo com o engenheiro civil e presidente do Senge-BA, Ubiratan Felix, a Petrobras no auge dos seus investimentos tinha 18.000 fornecedores instalados no Brasil, compreendidos por empresas nacionais, a maioria na construção e componentes industriais de média complexidade e de empresas estrangeiras instaladas no Brasil especializada principalmente em componentes de alta complexidade.Ainda para Alan, “o Brasil tem engenheiros com capacidade e tecnologia suficientes para implantar suas próprias indústrias. Mas isso precisa ser incentivado”. Entretanto, as ações do governo parecem fazer o contrário. A Plataforma Operária e Camponesa pela Energia ainda afirmou que a decisão de Temer de diminuir as exigên-cias de contratação do conteúdo local nos coloca sob o risco da chamada ‘Doença Holandesa’, “ou ‘mal da exploração dos recursos naturais’, que é a exportação massiva dos bens naturais, sem desenvolvimento de tecnologia com um aporte muito grande de moeda estrangeira na economia, ocasionando a supervalorização da moeda local e prejudicando todos os setores econômicos do país”.

A Fisenge destaca, ainda, que os trabalhadores brasileiros são parte dapolítica de CL. “Quando o governo federal anuncia a redução pela metade desta exigência, também está assumindo o corte de milhares de empregos”. Para Leonardo Urpia, da FUP, os trabalhadores vão sofrer prejuízo imediato com a redução do CL. Segundo ele, a indústria naval brasileira foi reimplantada graças à política de CL entre os anos de 2002 e 2014. José Ricardo Roriz Coelho acredita que a engenharia brasileira é de suma importância para a valorização da nossa indústria. Não somente para o setor industrial, como também para toda a sociedade. “Para a indústria, a engenharia traz benefícios muito claros, uma vez que a engenharia nacional pode privilegiar a indústria por meio da utilização dos conhecimentos técnicos existentes, como pela introdução de novas tecnologias. Por isso, para potencializar a política de conteúdo local, a engenharia efetuada localmente irá buscar na indústria fornecedora das atividades de petróleo e gás informações de capacidades produtivas, técnicas, dentre outras, além de poder introduzir e desenvolver novas tecnologias. Tudo isso contribui para que aumente a demanda de produtos da indústria nacional”, afirmou o representante da Fiesp. Para o engenheiro civil, sanitarista e presidente da Fisenge, Clovis Nascimento, abrir mão do conteúdo local só irá fortalecer empresas estrangeiras em detrimento da engenharia, e consequentemente, da economia nacional.

“A defesa da política de conteúdo local é estratégica para o desenvolvimento social e econômico de qualquer país do mundo e também precisa estar atrelada à produção de conhecimento científico e tecnológico. O desmonte da política de conteúdo local fere a soberania do Brasil”, disse Clovis, que ainda alertou: “A Petrobrás será uma das mais impactadas, pois é uma empresa estatal que assumiu inúmeros contratos no setor de petróleo e contribui efetivamente para a formulação tecnológica na exploração de pré-sal em águas profundas. Defender a política de conteúdo local também significa defender a Petrobrás”, concluiu Clovis. “Não existe conteúdo local sem tecnologia nacional. Temos que ter a nossa própria indústria. Hoje, somos pouco exportadores, apenas de produtos agrícolas. O Brasil importa mais (máquinas e produtos químicos) e a nossa indústria é muito pequena. É estratégico associar o investimento em pesquisa para o fortalecimento dos nossos parques industriais, valorizando a engenharia e a inovação tecnológica. Precisamos conduzir nossos pesquisadores para as necessidades da nossa indústria e do nosso país”, destacou Alan. Ainda de acordo com o engenheiro, uma proposta seria a implementação de cluster, que é uma estratégia de interligação industrial numa lógica cooperativa e coletiva. Ele defende um plano de industrialização dividido regionalmente, como o modelo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com escritórios em diversos locais do país. “Um plano de industrialização deve ser pensado em termos regionais, para desenvolver regionalmente o que é possível e conseguir uma malha em rede capaz de distribuir esse conhecimento”, apontou Alan.

Por: Laura Ralola 

Foto: Fotos Públicas / Felipe Dana