Radiografias do Fascismo #01: Uma estrutura de ressentimentos sustentada pelo letramento em uma nova gramática

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Há, no Brasil e no mundo, uma produção intelectual abundante sobre as estruturas do fascismo. Grandes mentes vêm se dedicando ao entendimento das suas perspectivas ideológicas e doutrinárias, métodos e estratégias ao longo do tempo. Como o próprio capitalismo, a extrema-direita também evoluiu: se adaptou ao seu entorno e seu tempo. Com novas roupagens e ferramentas, instrumentalizou as particularidades de cada país onde voltou a emergir. Sua essência, no entanto, segue a mesma.

Na noite da quinta-feira, 29/08, o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro realizou a primeira palestra do ciclo ‘Radiografias do Fascismo’. O historiador e coordenador do Núcleo de Estudos Judaicos da UERJ, Michel Gherman, foi o primeiro convidado de uma série de quatro palestras que trarão ao Senge RJ intelectuais que buscarão explicitar o que há por baixo da superfície dos fenômenos fascistas do nosso tempo.

“Entender o fascismo é fundamental para combatê-lo. É justamente por não compreendê-lo por inteiro que temos dificuldades em encontrar caminhos para o seu enfrentamento. Nós entendemos que, como sindicato, para além das rotinas de negociações, das questões jurídicas e trabalhistas, precisamos também falar sobre temas como este. Porque muitos trabalhadores acabam embarcando neste fenômeno que, precisamos admitir, é de massas”, explica Olímpio Alves dos Santos, presidente do Senge RJ.

Gherman e Olímpio concordam: o fascismo é um movimento de massas. Nas ruas do século XX, movimentos operários, socialistas e revolucionários de massa marcaram presença. A eles, os que alcançam e mobilizam das multidões, se soma o fascismo. 

Para o historiador, a pergunta para uma primeira radiografia da extrema-direita precisa ser justamente essa: O que transforma o fascismo em um movimento estrutural da sociedade ocidental pós-capitalista?  Como ele se instrumentaliza para transformar-se em um movimento com um apoio massivo da classe média, mas também de setores do operariado? Como pode uma grande camada de jovens periféricos, empobrecidos, sem perspectivas de garantias de direitos, olhar para um político da extrema direita, que em última instância, os trata como mal-sucedidos, falhos e, ainda assim, ser conquistada?

Desejo e passado ideal

Conquistar corações e mentes: a ordem na expressão não é aleatória. Nesta conquista, a mente vem depois do coração, quando vem. Michel destaca que, ao contrário do que os historiadores e sociólogos do século XX propunham, o fascismo é muito menos um instrumento de coerência ideológica e agenda política e muito mais um instrumento baseado no que Theodor Adorno chamava de ‘paixões das massas’. A perspectiva de pesquisa do Niej aponta para um movimento que aciona as massas não pela ideologia, mas pela paixão, pelo desejo, pelos elementos morais.

“Me parece muito significativo que um dos maiores teóricos do fascismo, um de seus maiores pensadores, Walter Benjamin, não tenha sobrevivido ao próprio fascismo. Sequer viu Auschwitz. Ao contrário de outros teóricos, que buscavam referências ideológicas, ele colocava de maneira lógica que os desejos das massas eram acionados pela destruição, pela superação da civilização e pelo ressentimento”, explica Michel.

Esse desejo todo aponta para o passado e encontra sua justificativa nele. Não o passado real, mas um imaginado, ideal, profundamente hierárquico, onde as estruturas do ser garantiam privilégios. “Esse é um passado onde éramos o que éramos apenas porque éramos. Nossos direitos não eram expandidos porque não havia direitos conquistados. A cristandade branca europeia tinha direitos, não privilégios, porque eles eram brancos e europeus. Quando outros grupos dentro da estrutura nacional surgem e relativizam essa perspectiva de direitos, vem a demanda de retorno aos privilégios superados. Não um retorno ao passado, mas uma aceleração em direção a ele”, aponta o professor.

Entre os muitos sentimentos gerados e alimentados por essa perspectiva de perda de privilégios de uns, atrelada à conquista de direitos de outros, está aquele que marca o fascismo ao longo do tempo, seu elemento fundamental: o ressentimento. É a partir dele que vêm o ódio, o medo e a centralidade do outro no papel de ameaça a ser eliminada. Na busca pela ‘harmonia’, tudo que não é considerado harmônico deve ser destruído: “o negro, o judeu, os gays, as mulheres, nós temos que estar o tempo todo descobrindo quem produz desarmonia e destruindo. Mas como o passado não existe e não vamos conseguir construir um mundo harmônico como ele nunca foi, a noção de retorno ao passado é constantemente frustrada. E, se é frustrada, é porque ainda não destruímos quem deveria ser destruído”, expôs Michel Gherman.

O Brasil pós-moderno replica a fórmula. A ideia de que o povo negro teve direitos negados e que a reparação precisa partir do Estado se transforma em um desejo de morte àqueles que resgataram esses direitos. As mudanças impressas no cotidiano também alimentaram o processo. “Alguns fenômenos são importantes como o fim dos quartos de empregada nos edifícios de classe média, o fim da diferença entre elevador social e de serviço, a entrada da população negra nas universidades públicas”.

Atenção ao letramento

Usado como laboratório de extrema-direita, o Brasil vem mergulhando em uma cortina de fumaça que, talvez, comece a se dissipar à medida que a academia soma saberes para decodificar os caminhos pelos quais as massas, hoje, abraçam o que há de pior na humanidade. No âmbito do debate ideológico e doutrinário, a discussão – absolutamente descabida do ponto de vista histórico – gira em torno de o nazismo ser de esquerda ou de direita. Depois disso, há uma espécie de retrofit: “é o que eu chamo de pós-nazismo, uma necessidade de se limpar o nome do nazismo. As estruturas constitutivas e centrais do nazismo, a xenofobia, racismo, antissemitismo são deixadas de lado. Aquele nazismo era de esquerda e diferente do que estamos fazendo aqui. É um negacionismo histórico muito bem sucedido no Brasil”, disse Gherman.

A questão é que, alerta o professor, enquanto nos debruçamos sobre ideologia, doutrina e pontos fundamentais, perdemos de vista uma geração de pessoas sendo letradas a partir de outras perspectivas. Programas de TV aberta, principalmente os noticiários focados em tragédias, os “jornais pinga-sangue” e, pouco mais a frente, as redes sociais, deram a capilaridade necessária para este letramento de massa. Gherman destaca que a população brasileira foi letrada numa perspectiva de massa durante uma década. O que, segundo ele, piorou quando essa dimensão de massa de “mundo cão” se estabelece em programas com grandes audiências. O professor cita o CQC e o Pânico na TV, “onde passam a aparecer algumas figuras que dão espaço para essa sedução da morte. E uma dessas figuras é Bolsonaro”.

Um tiro pela culatra

Entre as constantes participações de Bolsonaro como elemento cômico em programas de TV, uma é apontada por Gherman como fundamental para entender como a massa aprendia uma nova gramática, o ovo da serpente, sem que o letramento fosse imediatamente identificado.

Em um quadro onde os convidados aceitavam passar por um teste do polígrafo, Bolsonaro foi convidado a falar sobre o Holocausto. Passou no teste sem mentir: elogiou o Hitler – pra ele, “um general brilhante” – e o regime nazista. Também comprou os campos de concentração ao Sistema Único de Saúde (SUS) e citou David Irving, um famoso negacionista inglês do Holocausto, conhecido por suas posições antissemitas e racistas.    

“Um programa de TV aberta, em rede nacional, produziu letramento sobre o negacionismo do Holocausto, sobre o nazismo, durante uma hora e meia. Eu fiquei desesperado assistindo aquilo porque reconheci nas falas do Bolsonaro as falas de Irving. Escrevi para um dos jornalistas do CQC dizendo ‘ele está citando um negacionista do holocausto’! O jornalista respondeu que eu não precisava me preocupar. “Esse é o fim do Bolsonaro”, disse. Não era. Aquele era o começo de Bolsonaro. Aquele era o processo radical de letramento. O jornalista, no caso, era Noblat”, conta Gherman.

Aquele homem medíocre, produto do ressentimento pelos direitos conquistados por grupos minoritários, estabelecia vínculos profundos com outros como ele, medíocres e ressentidos.

O episódio foi ao ar apenas seis meses após o discurso de Bolsonaro na sede da Hebraica, no Rio, considerado por Gherman como a inauguração de uma nova perspectiva de letramento: “Foi um discurso claramente fascista, genocidário, proferido por um candidato à Presidência da República. Quilombolas foram chamados por termos animalescos: pesam arroubas e não servem para procriar. Ele promete um genocídio contra indígenas e, o ponto mais pornográfico de todos, afirma que há raças boas e raças ruins. Está feito um vínculo profundo entre o fascismo e as vítimas históricas do fascismo. E a porta para o pós-fascismo, uma dimensão pós-fascista está aberta”.

Dali para frente, os registros dos discursos imprimiram a imagem do “cara que fala o que pensa”, e que “não tem medo do sistema” a Bolsonaro. As equipes de comunicação, absolutamente estruturadas, fizeram a distribuição. O resto é história.

Os nossos desejos

O primeiro palestrante do ciclo Radiografias do Fascismo, que tinha como tema o arcabouço que mantém de pé o fascismo destes tempos, destacou que foi este letramento na gramática fascista que faz, hoje, com que eleitores de São Paulo leiam corretamente em um candidato a prefeito a continuação deste letramento, ainda que o candidato apoiado por Bolsonaro seja outro. É ele que está por trás, também, do entendimento de que o Estado, ao regulamentar as redes sociais, estaria ferindo a liberdade de expressão, ou que a reparação de desigualdades e injustiças históricas é ferramenta de divisionismo.

“Sem produzir um projeto efetivo de letramento antifascista, iremos enxugar gelo. Mas, mais do que isso, é importante entender que o fascismo tem, como elemento fundamental, o desejo. E nós, da esquerda, precisamos encontrar referências de desejo para as massas. Essa é a dimensão da sedução. O campo não é doutrinário, mas do desejo. Nós abrimos mão das utopias em nome de referências absolutamente pragmáticas. Precisamos agora resgatar, recuperar e recriar as nossas utopias”, defende Michel.

O professor lembra que, inevitavelmente, o que é utópico e desejável para o campo progressista é distópico e assustador para a extrema-direita. Nesse contexto, propõe a criação de referências palatáveis que apontam para o ideal de mundo que a esquerda quer.

“Tivemos gestores públicos fazendo o símbolo de White Power para as câmeras. Garanto que, depois daquilo, milhões que não sabiam o que era aquele símbolo, sabem hoje. A pergunta é: quais símbolos são os nossos? Qual é a nossa sedução? A nossa utopia? Com qual futuro iremos contrapor o passado ideal de uma extrema-direita que letra muito bem os seus seguidores?”, finaliza.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ

Fonte/Fotos: Adriana Medeiros