Quem ganha com a privatização do saneamento no Rio de Janeiro?, por João Roberto Lopes Pinto

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Em vez de ampliar o serviço, 78% do lucro da Águas do Rio irão para pagamento de dividendos.

Após três anos da concessão da distribuição de água, coleta e do tratamento de esgoto em 47 municípios fluminenses, a Águas do Rio, maior vitoriosa do leilão ocorrido em abril de 2021, acumula ganhos milionários. A empresa arrematou a concessão dos Blocos 1 e 4, compreendendo 27 municípios, incluindo aí os bairros da Zona Sul, Centro e Norte do Rio, municípios do interior e da Baixada, abrangendo uma população de mais de 10 milhões de pessoas.

Tais ganhos contrastam com a enxurrada de reclamações associadas a aumentos abusivos na tarifa, cobranças indevidas, interrupções não planejadas de fornecimento de água, não compromisso com a universalização do serviço em áreas de favela etc. O Procon estadual (Procon-RJ) registrou, em 2023, um número de reclamações contra a concessionária Águas do Rio 564% maior em comparação com o início de 2022[1]. Nos próprios formulários de referência da Águas do Rio 1 e 4 consta o surpreendente número de 26.920 processos cíveis sofridos pela empresa, que se referem, em sua maioria, a processos relativos ao direito do consumidor, que estaria sendo de alguma forma lesado[2].

Segundo os mesmos formulários de referência, a empresa acumulava lucros no final do ano passado da ordem de R$ 1,2 bilhão – em pouco mais de dois anos de concessão, já que o contrato da Águas do Rio com o Governo do Estado do Rio só foi assinado em agosto de 2021. Em 2023, o lucro líquido da empresa, somando Águas do Rio 1 e 4, alcançou a cifra de mais de R$ 614 milhões (TABELA 1).

Esse valor representou 45% do lucro líquido total da sua controladora AEGEA de R$ 1,4 bilhão, no mesmo ano. Isso mostra o peso da Águas do Rio para o Grupo AEGEA, que opera hoje, por meio de 54 concessionárias, em 15 estados, 507 municípios, abarcando mais de 30 milhões de pessoas. Este valor apurado em 2023 pela Águas do Rio também equivale a 6 vezes o montante total previsto, no mesmo ano, para investimento no universo de favelas dos Blocos 1 e 4, segundo o “Plano de Investimento em Áreas Irregulares Não Urbanizadas” (AINUs).

TABELA 1 – LUCRO LÍQUIDO E DIVIDENDOS A PAGAR  – ÁGUAS DO RIO SPE 1 e SPE 4

(em R$ milhares)

ANO SPE 1 SPE 4  
2023 131.480 482.824   614.304
2022 125.661 342.744  
2021 (5.832) 146.997  
TOTAL 251.309 977.965   1.229.274
DIVIDENDOS A PAGAR 214.490 (85,3%) 745.774 (76,3%)   960.264 (78%)  

Fonte: Formulário de Referência – 2024 – Águas do Rio 1 e 4 SPE S.A.

Quanto ao saldo de dividendos a pagar trata-se da provisão de recursos para pagamento aos acionistas da Águas do Rio, ou seja, os mesmos da AEGEA, a saber: Itáu, Fundo Soberano de Cingapura e Grua Investimentos – todos eles, instituições financeiras. Importante esclarecer que se tratam de dividendos ainda a serem pagos, em razão da restrição prevista no Contrato de Financiamento junto ao BNDES, que garantiu um empréstimo de R$ 19,3 bilhões para a Águas do Rio. Tal restrição proíbe a distribuição de dividendos aos acionistas da Águas do Rio até a assinatura dos instrumentos de garantia que serão celebrados no âmbito do referido financiamento.

Mas chama a atenção que o total de dividendos a pagar aos acionistas da Águas do Rio, no valor de mais de R$ 960 milhões,  corresponde a 5 vezes o total dos recursos previstos para investimento, no valor de R$ 183 milhões, ao longo de cinco anos, na Favela da Rocinha – vale dizer que se trata do maior investimento previsto em uma AINU. O montante de dividendos a pagar equivaleria, aproximadamente, a R$ 100,00 por habitante doados, no período, aos acionistas da Águas do Rio.

Constata-se que os lucros da empresa em vez de retornarem na forma de investimento na melhoria dos serviços concessionados, dirigem-se a engordar as contas dos acionistas, proprietários da empresa. Fica aí evidente a lógica predatória do domínio financeiro sobre grupos privados, a exemplo da Águas do Rio/AEGEA.

Como afirma o economista francês François Chesnais, para o capital portador de juros em busca de fluxos estáveis de rendimentos, não há melhor investimento que as indústrias de serviços públicos privatizadas. Os domicílios que estão habituados ao gás, à eletricidade, à água e ao telefone são “consumidores cativos” e “vacas de leite”, fontes de ganhos regulares e absolutamente seguros aos rentistas.

Para que os acionistas, controladores da empresa, possam auferir o máximo de rentabilidade é fundamental que os gestores, dirigentes da empresa estejam totalmente alinhados e comprometidos com estratégias de elevação crescente dos lucros, que permitirão maiores dividendos e valorização acionária da empresa. Tal comprometimento dos dirigentes será garantido não apenas com salários elevados, mas também com participação nos resultados da empresa.

TABELA 2 – REMUNERAÇÃO DA DIRETORIA (QUATRO MEMBROS)

DA ÁGUAS DO RIO, EM 2023

(em R$)

MODALIDADE DE REMUNERAÇÃO VALORES ANUAIS VALORES MENSAIS P/DIRETOR   NÚMERO DE SALÁRIOS MÍNIMOS*
Salário ou pró-labore 14.073.964 270.653   205
Benefícios direto e indireto 644.614 12.396   9
Participação de resultados 4.450.652 85.589   65
TOTAL 19.169.231 368.638   279

Fonte: Formulário de Referência – 2024 – Águas do Rio 1 SPE S.A.

(*) Valor do salário mínimo, em 31.12.2023: 1.320

Na Tabela 2 pode-se verificar o valor exorbitante, somando salários e participações, de quase R$ 370 mil mensais recebidos por cada um dos quatro diretores da Águas do Rio, no ano de 2023 – equivalente a 279 salário mínimos. Embora não sejam servidores públicos, estes dirigentes atuam na prestação de um serviço público. A título de comparação, o limite máximo da remuneração do serviço público equivale ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – que em 2023 era de R$ 41.650,92. Imaginemos que um diretor da CEDAE ganhasse o que ganha um dirigente da Águas do Rio, certamente haveria grande comoção pública.

Já o valor de mais de R$ 19 milhões recebido pelos quatro diretores, no ano de 2023, ultrapassa, em muito, o valor total previsto para investimento, de aproximadamente R$ 16 milhões ao longo de três anos, no Morro dos Macacos, segundo o “Plano de Investimento em Áreas Irregulares Não Urbanizadas” (AINUs).

Os dados aqui demonstram a total incompatibilidade da privatização dos serviços de saneamento com a garantia do direito humano à água e ao saneamento, reconhecido pelas Nações Unidas, desde 2010. Estes serviços não podem ser tomados como ativos financeiros a garantir rendas crescentes à predação rentista. Não por acaso, assiste-se à precarização do serviço, ao não atendimento às populações mais carentes de saneamento, à elevação e cobrança indevida de tarifas.

Diante de tais abusos, cabe pautar a necessidade de rompimento do contrato de concessão, já que os próprios termos de contrato são permissivos em favor dos ganhos da empresa, em detrimento da observância do direito humano ao saneamento. Ademais, a fragilidade institucional da AGENERSA – Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela fiscalização do contrato, torna irrealizável uma efetiva regulação pública.

O divórcio entre a lógica financeira que orienta a empresa e o enorme déficit de saneamento nas favelas e periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro desnuda o quanto a privatização viola o direito humano à água e ao saneamento. Em menos de três anos, evidencia-se, assim, a total falta de legitimidade da concessão e da própria Águas do Rio/AEGEA seguir operando o serviço público de saneamento no Rio de Janeiro.

João Roberto Lopes Pinto – Professor de ciência política da UNIRIO e PUC-Rio, coordenador do Instituto Mais Democracia e membro da Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde.


[1] Ver em https://vejario.abril.com.br/cidade/reclamacoes-aumento-conta-agua-sobem-um-ano

[2] Vem em https://ri.aegea.com.br/debentures-companhias-abertas/aguas-do-rio/

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Texto: João Roberto Lopes Pinto

Fonte: Jornal GGN

Foto: Freepik