O pão de Vanda leva poucos ingredientes. O segredo para ser “tão saboroso” pode estar na banha, comprada do vizinho que cria porcos soltos, ou no seu próprio modo de fazer, aprimorado pelo fato de ser avó. “Mas vocês devem pensar: será que é saudável? E se o compararmos com o pão do supermercado? Esse que leva pelo menos 10 itens em sua composição, entre eles gordura vegetal, soja, conservantes e acidulantes”, questionou Fabiana Cruz, neta e pesquisadora em desenvolvimento rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Os alimentos tradicionais têm seus processos e componentes conhecidos. São produzidos por várias gerações, sendo frutos dos modos de vida. E são bem empregados, tanto para o consumo das famílias, como para a comercialização. A produção está atrelada a uma cultura, a um lugar. Por isso, são tão singulares que as indústrias são incapazes de reproduzir”, explicou Fabiana.
Mas elas tentam. “Na atualidade, muitas vezes os atributos do “alternativo” estão sendo capturados pelo “convencional”. Um exemplo é o suco laranja caseira, da Coca-Cola. A própria embalagem remete a algo bucólico, ao frescor de um piquenique embaixo da árvore. Porém, é um produto ultraprocessado que utiliza gominhos falsos de gelatina para simular um suco recém espremido”, contou.
O assunto foi provocado pelo tema “Que alimentos (não) estamos comendo?”, do 7º Encontro Nacional do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), que ocorreu de 4 a 6 de junho em Porto Alegre. Durante os debates do evento, ficou claro que termos como “qualidade”, “saudável” e “nutritivo” estão em disputa.
As políticas dominantes não levam à feira, mas ao supermercado
Christiane Costa, do Instituto Polis, estava em um taxi, numa cidade do litoral de São Paulo, quando perguntou ao motorista: onde o senhor costuma comprar a comida do mês? Ele, espantado, respondeu: “lógico que no supermercado, onde mais seria?”. A cena retrata bem a “imposição de padrões alimentares”.
“Essa indução não é inocente. Nesse caminho, existe uma questão vital, uma questão de saúde pública. As escolhas alimentares das pessoas têm uma margem e essa é definida pelo que está disponível. Mais de 90% da população brasileira consome uma quantidade insuficiente de frutas, legumes e verduras. Uma pessoa tem que andar muito mais para comprar alimentos saudáveis do que para comprar um pacote de biscoito doce”, afirmou.
De acordo com informações do Ministério da Saúde (MS), os tratamentos de obesidade e doenças relacionadas, como diabetes e problemas cardíacos, custam por ano cerca de R$ 500 milhões ao Sistema Único de Saúde (SUS). Diante dessa realidade, Christiane relaciona o acesso aos alimentos de real qualidade à organização, nos grandes centros urbanos, de estabelecimentos públicos de convívio socioeconômico que sejam promotores de saúde. Esses devem estar próximos dos locais de moradia e trabalho, refletindo uma leitura que responsabiliza o Estado e “que não exclui, mas sim ultrapassa a ênfase individual de governar a vida para hábitos alimentares saudáveis”.
“O abastecimento é o coração do sistema alimentar. Liga campo e cidade, produção e consumo. Então, não basta a professora falar, em sala de aula, que não se deve comer tais alimentos. É preciso impedir que produtos não saudáveis cheguem às escolas, cheguem às crianças”, ilustrou Christiane.
Proximidade política abre novas rotas para alimentos saudáveis
Segundo Julian Perez , da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), “a situação de concentração do varejo dos alimentos é tão grande, que as cinco maiores redes de supermercados controlam 46% do setor, sendo que duas dessas são estrangeiras”. Explica que uma característica do agricultor familiar é “ser empresário, gestor e trabalhador” e que essa imposição do sistema agroalimentar “põe em risco essa autonomia ”.
“A gente enche a boca para falar que a agricultura familiar é responsável por 70% do que chega aos pratos dos brasileiros, mas eu pergunto: por que ela está tão quebrada? Muito provavelmente porque os que estão incorporando o valor agregado com essa produção não são os agricultores”, expôs Julian.
Como exemplo de resistência ao modelo de agricultura baseado nos agrotóxicos e transgênicos, o professor apresentou a Rede Ecovida Agroecológica, que há 14 anos distribui variados produtos pelos três estados do Sul do país e em parte de São Paulo. “Já ouvi o questionamento: isso é um circuito curto? Eu diria que é um circuito de proximidade. É muito possível que quem consome uma banana ecológica do Vale do Ribeira, em São Paulo, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, saiba muito mais sobre aquele alimento do que sobre o que é produzido a cinco quilômetros dali. Neste caso, a proximidade social e cultural é muito maior do que a de um corte espacial”, ressaltou.
Após se articularem em torno da agroecologia, os agricultores e agricultoras familiares conseguiram se livrar da dependência da venda às grandes redes varejistas. Se antes 74% deles dependiam de atravessadores, hoje conseguem escoar a maioria dos alimentos via associações locais e feiras. A variedade alimentar também foi reflexo. Cada grupo comercializava, em média, três produtos. Depois de organizados na Rede, essa quantidade aumentou para 15 tipos.
“Essa experiência demonstra que há uma relação sinérgica entre os mercados alternativos e a melhoria da produção para autoconsumo, a valorização da biodiversidade, o resgate de alimentos tradicionais, a troca de saberes, o aumento da sociabilidade e da promoção de saúde”, sentenciou Julian.
* Com a colaboração de Camila Nobrega, do Canal Ibase.
Fonte: FBSSAN