Confira o capítulo anterior da série de reportagens: https://www.senge-pr.org.br/2025/10/08/privatizacoes-do-setor-eletrico-o-embate-de-narrativas/
Privatizar não foi apenas vender empresas. O Brasil precisou reinventar seu modelo institucional para dar conta de um setor elétrico que se tornava competitivo e fragmentado. Até os anos 1980, estatais federais e estaduais planejavam, geravam, transmitiam e distribuíam energia. Com a privatização, essa lógica se rompeu. Era preciso separar papéis, criar regras claras e instituições capazes de arbitrar disputas entre atores cada vez mais diversos.
Essa transição, ocorrida entre 1995 e 2004, foi marcada pela criação de órgãos reguladores e operadores que até hoje estruturam o setor: a Aneel, o ONS e a CCEE (inicialmente MAE). Mais do que siglas, essas instituições representam a passagem do Brasil de um modelo estatal para um modelo de mercado regulado.
A Aneel: o árbitro da regulação
Em 1996, nasceu a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Até então, o setor era supervisionado pelo antigo DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica), que tinha pouco poder de fiscalização e se mostrava incapaz de arbitrar conflitos na transição.
A Aneel foi criada como órgão regulador independente, com mandato para definir tarifas, fiscalizar contratos e garantir a universalização do serviço. A ideia era dar previsibilidade a investidores privados e, ao mesmo tempo, assegurar os direitos dos consumidores.
Na prática, a agência se tornou um árbitro em disputas que iam desde reajustes tarifários até qualidade de serviço. Para os trabalhadores, representou também um novo interlocutor: não mais o Estado-empregador, mas uma autarquia que avaliava indicadores como DEC e FEC, cobrando resultados das concessionárias.
O ONS: quem comanda as águas e os fios
Com a fragmentação do setor, alguém precisava coordenar o funcionamento do sistema interligado nacional. Essa tarefa coube ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), criado em 1998.
O ONS assumiu a responsabilidade de operar a geração e a transmissão em tempo real, equilibrando oferta e demanda em um país dependente de grandes hidrelétricas. Isso significava definir quais usinas deveriam gerar, em que momento e com que intensidade, levando em conta a hidrologia e a confiabilidade do sistema.
Até então, essa função cabia às próprias estatais, em especial à Eletrobras. Com o novo modelo, o ONS passou a ter caráter técnico e independente, reunindo representantes de empresas privadas, estatais e do governo. Era a tentativa de mostrar que o sistema elétrico não seria capturado por um único agente.
O MAE e a criação de um mercado de energia
Outro passo fundamental foi a criação, em 1998, do Mercado Atacadista de Energia (MAE), que depois se transformaria na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
O MAE nasceu como espaço de negociação entre geradores e distribuidores, definindo preços de referência e estimulando contratos bilaterais. Na prática, era o coração do modelo de mercado, onde a energia deixou de ser apenas um serviço público para se tornar também uma mercadoria negociada em ambiente competitivo.
Nos primeiros anos, o MAE enfrentou turbulências. Havia disputas sobre metodologias de cálculo e forte insegurança jurídica. Essas fragilidades ficaram evidentes no Apagão de 2001, quando o racionamento mostrou que a transição institucional ainda não estava consolidada. O próprio mercado foi paralisado temporariamente.
A lógica da desverticalização
O pano de fundo dessas mudanças foi a desverticalização das empresas. Antes, uma companhia como a Eletropaulo controlava geração, transmissão e distribuição. Após a reforma, esses segmentos foram separados, e cada atividade passou a ser regulada de forma distinta.
A separação permitiu que novos agentes entrassem no setor: grupos privados, fundos de investimento em transmissão e distribuidoras locais. Também abriu espaço para a figura do consumidor livre, empresas capazes de negociar diretamente sua energia, fora do cativeiro tarifário.
Mas, para os trabalhadores e consumidores residenciais, o impacto foi desigual. Enquanto grandes indústrias negociavam contratos mais baratos, famílias viram suas tarifas subir. A lógica de mercado favoreceu quem tinha escala e poder de barganha.
O lado humano da transição
Por trás das siglas e das leis, havia pessoas. Trabalhadores que antes tinham a identidade de servir a uma empresa estatal passaram a lidar com a pressão de metas de eficiência e indicadores regulatórios. Consumidores que esperavam tarifas estáveis enfrentaram aumentos frequentes, justificados por revisões tarifárias periódicas.
Para muitos brasileiros, essa nova institucionalidade parecia distante. Como explicar que uma agência em Brasília decidia sobre a conta de luz em pequenas cidades? Ou que uma câmara de comercialização, desconhecida da maioria, definia preços que impactavam o dia a dia de milhões?
Esse distanciamento criou uma sensação de que o setor elétrico havia se tornado tecnocrático e impessoal, reforçando a percepção de que o cidadão comum tinha perdido voz no processo.
Um modelo ainda em construção
Mais de duas décadas depois, Aneel, ONS e CCEE são instituições consolidadas. Mas o debate sobre seus limites continua. Críticos apontam que a Aneel, por vezes, cedeu demais às pressões de investidores, deixando consumidores em segundo plano. O ONS enfrenta o desafio de operar um sistema cada vez mais complexo, com a entrada da geração distribuída e das renováveis intermitentes. A CCEE, por sua vez, convive com disputas jurídicas e o desafio da abertura total do mercado.
O que fica claro é que a reestruturação institucional foi indispensável. Sem ela, a privatização não teria se sustentado. Mas também mostrou que criar instituições não resolve, por si só, os dilemas de conciliar eficiência, justiça social e segurança energética.
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📌 Referências – Capítulo 4
- Kawall, C.K.L.F. Privatização do Setor Elétrico no Brasil. PUC-SP, 2000.
- Teixeira, R.E.B. Privatização no Setor Elétrico: um estudo dos ganhos de produtividade. PUC-Rio, 2011.
- Filardi, F.; Assis, F.; Moraes, A.B. Análise da Privatização no Setor de Distribuição de Energia no Brasil pela Ótica dos Indicadores de Performance de Consumo Residencial. Revista de Ciências da Administração, 2022.
Fonte: Senge-PR