Por uma reforma tributária que enfrente a desigualdade e a crise

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Pouco divulgado, escamoteado pela mídia hegemônica, há no Congresso Nacional um projeto de reforma tributária capaz de enfrentar séculos de desigualdade estrutural e de concentração de riqueza no país. Assinada pelos seis partidos de oposição, a Reforma Tributária Solidária e Sustentável também pode gerar recursos para apoiar o imenso contingente de brasileiros sem renda nem emprego, durante a longa e funda crise global que se anuncia, derivada da pandemia de Covid-19 e das medidas fiscalistas dos últimos anos. Segundo o economista Eduardo Fagnani, da Unicamp, coordenador dos estudos desenvolvidos por 40 especialistas que serviram de base para o projeto, oito das suas principais medidas têm potencial de gerar R$ 290 bilhões de arrecadação.

Apenas o imposto sobre grandes fortunas, incidindo sobre patrimônios superiores a R$ 10 milhões, o que significa meros 0,28% da população, ou 59 mil pessoas, resultaria em uma arrecadação de R$ 40 bilhões, estima Fagnani. Um montante suficiente para dobrar o Bolsa Família, atualmente da ordem de R$ 30 bilhões para atender a quase 14 milhões de famílias.

A gravidade dos efeitos esperados da atual crise econômica, explica o economista, motivou a publicação do trabalho “Taxar os ricos para reconstruir o Brasil”, uma nova síntese dos estudos feitos para o projeto de reforma solidária, elaborado a pedido da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip) e da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), e apresentada no Congresso como Emenda Substitutiva Global à PEC 45, nº 178. Os trabalhos envolveram acadêmicos, tributaristas e apoio de entidades como a Oxfam, o Conselho Federal de Economia, Dieese, Inesc, Associação Brasileira dos Economistas na Saúde, Instituto de Justiça Fiscal (IJF), entre outras. São dois relatórios: um diagnóstico, com 800 páginas, e uma síntese das propostas consolidadas no PL.

“Fizemos o novo documento porque esta crise é da mesma gravidade de outras crises, como a Grande Depressão de 29”, alerta Fagnani. “Quem está dizendo isso não sou eu: editorial do Financial Times, de julho, afirma que os líderes atuais deveriam se inspirar nos líderes do século 20, no New Deal, no Plano Marshall. A Era Friedmann acabou.” Até o porta-voz do capitalismo financeiro global reconhece, destaca o economista da Unicamp, “que o eixo pelo qual a sociedade deveria se orientar, agora, é a cidadania”.

Fagnani cita apenas duas tarefas cruciais que o Estado terá que desempenhar para preservar o mínimo de qualidade de vida aos brasileiros, na renda e na saúde. “O governo vai ter que fazer um programa de renda básica para suprir a falta do salário; o auxílio emergencial vai ter que ser permanente. Você teve o Fome Zero, agora vai ter o trabalho zero. E um programa desse tipo custa dinheiro. Sem falar na necessidade de reforçar o SUS, porque, com a pandemia, há uma demanda reprimida de outras doenças que, em alguma hora, vai chegar.”

A crise terá “implicações profundas, recuperação lenta e incerta; não se sabe se vai ter repique”, diz o economista. No quadro internacional, ele destaca que os bancos centrais estão injetando dinheiro na economia, aumentando a dívida. “Só que no Brasil, ainda mais em ano eleitoral, os dogmas da austeridade continuam sendo reforçados, um contrassenso em relação ao que acontece no mundo. Numa crise desse tamanho, os economistas fazem manifesto a favor do teto dos gastos… Como se vai enfrentar uma crise desse tamanho com teto de gastos?”

Para conseguir recursos, de modo a fazer frente a essas demandas, um dos principais instrumentos utilizados historicamente pelos países capitalistas centrais foi a tributação progressiva das altas rendas e altos patrimônios. No Brasil, infelizmente, compara Fagnani, “estão discutindo teto de gastos e uma .reforma tributária que simplifica o consumo tornando o nosso sistema ainda mais regressivo”.

No projeto de reforma das oposições, ao contrário, a ideia é, exatamente, respeitar o princípio liberal da isonomia, taxando mais quem ganha mais. “No IR, nossa proposta é isentar quem ganha até três Salários Mínimos, que são 11 milhões dos 30 milhões de contribuintes no Brasil, ou cerca de 35% do total. E criar alíquotas maiores — de 30% 35%, 40% e 45% — para as altas rendas.”

Na prática, haveria um aumento efetivo de Imposto de Renda para quem ganha mais de R$ 30 mil. Mas quantas pessoas estão nessa situação? Cerca de 600 mil contribuintes, 0,3% da população, afirma Fagnani. No caso da alíquota máxima, de 45%, atingiria 0,1% dos brasileiros, não mais do que 211 mil contribuintes. Somente com essa nova tabela progressiva no IR e o fim da isenção a lucros e dividendos, a estimativa de arrecadação chega a R$ 160 bilhões.

Do ponto de vista técnico, os estudos feitos pelos 40 técnicos coordenados por Fagnani mostram que nada impede o Brasil de ter um sistema tributário mais progressivo, próximo da média dos países da OCDE. “Dados de 2015 mostram que, se você ampliar a tributação sobre renda e patrimônio em R$ 350 bilhões, e se a sociedade quiser que a carga continue como está, você reduz a tributação sobre o consumo e a folha de pagamento em R$ 350 bilhões. É possível fazer isso.”

Obscenidades tributárias

O problema, contudo, não é técnico, mas político. Razão por que existem três projetos no Congresso que não enfrentam a desigualdade nem o caráter regressivo da estrutura, tentando apenas simplificar a tributação com um imposto único sobre bens e serviços. “Essa não é a questão central no Brasil”, critica Fagnani. “A questão central no Brasil é a seguinte: nós somos vice-campeões mundiais de tributação sobre o consumo: 50% de tudo que nós arrecadamos é sobre o consumo, enquanto nos EUA é 17%. O sistema progressivo é quando os ricos, os que ganham mais, pagam mais; proporcionalmente, os pobres pagam menos. No Brasil, é regressivo porque toda a nossa estrutura tributária está assentada no consumo; e os mais pobres e a classe média consomem tudo que ganham. Os mais ricos consomem parcela pequena da sua renda.”

O economista dá um exemplo simples para evidenciar a injustiça desse modelo. “Suponha uma geladeira, com R$ 300,00 de imposto. Para uma pessoa que ganha R$ 1 mil, a tributação representa 30% da renda; para quem ganha R$ 10 mil, 3%; para quem ganha R$ 100 mil, 0,3% da renda. Ou seja, a tributação sobre o consumo captura uma parcela maior da renda dos mais pobres. Estudos mostram que para os 20% mais pobres, a tributação captura 40% da renda.”

Por outro lado, de tudo o que é tributado, só 20% vêm das altas rendas, diz Fagnani. Para se ter ideia do quanto este índice é ínfimo, renda e patrimônio contribuem com 50% do total nos EUA, e com 67% na Dinamarca. “O Brasil é uma anomalia na comparação internacional. Tem coisas do arco da velha; são obscenidades”, afirma. Por exemplo, uma pessoa que ganha R$ 320 mil por mês, ter 70% de renda isenta no IR, por meio de vários mecanismos, entre eles a não tributação de juros e dividendos.

Para entender esse privilégio, Fagnani cita os quatro maiores bancos do país, que lucraram R$ 80 bilhões no ano passado. “Imagina um sócio pessoa física de um banco que lucrou R$ 20 bilhões, e vai distribuir R$ 10 bilhões. Esse sócio majoritário vai receber R$ 400 milhões de dividendos, não tributados. Enquanto uma pessoa que ganha R$ 4,8 mil tem 27,5% da sua renda capturada na fonte.”

Em outro retrato do que o economista da Unicamp classifica como “obscenidade tributária”, ele compara uma pessoa que ganha R$ 5 mil, ‘por exemplo um médico do SUS, que está combatendo a pandemia nos hospitais, correndo o risco de pegar o vírus”, com alguém que ganhe R$ 500 mil: ambos terão a mesma alíquota de 27,5% de IR.

“A tributação no Brasil é inconstitucional, porque não segue este princípio da isonomia”, diz Fagnani. “Em qualquer país do mundo, você tem alíquotas progressivas de acordo com a renda. No Brasil, a alíquota máxima é 27,5%. Sem falar na questão do patrimônio. O Imposto sobre Grandes Fortunas foi aprovado na Constituição de 88 e até hoje não foi aprovado.”

Na mesma direção, a média do imposto sobre herança nos países desenvolvidos é de 30%, podendo chegar a 40%, 50%, enquanto, no Brasil, a alíquota máxima para altas heranças é de 8%. A maior parte dos estados cobra 4%. Outra aberração envolve a propriedade rural, com o Imposto Territorial Rural (ITR). O peso do agronegócio na economia, diz Fagnani, representa cerca de 25% do PIB e metade das exportações. “Mas quanto o Brasil arrecada de ITR?”, questiona. “A arrecadação federal é de aproximadamente R$ 1,4 bilhão, que representa 0,1% de tudo que é arrecadado. O valor é declaratório e os dados de 2015 mostram que, em média, as grandes propriedades pagam R$ 2,8 mil.”

São muitos exemplos para mostrar como nosso sistema é regressivo. “O mais assustador é que o Congresso Nacional discuta uma reforma tributária e não enfrente essas questões”, critica o economista. Especialmente num cenário de crise aguda, como o atual.

“Felizmente, o Congresso aprovou esse auxílio de R$ 600,00, que fez com que a queda do PIB não fosse maior”, observa, lembrando que será inevitável a injeção de recursos do Estado na economia. “A redução no auxílio emergencial, que evitou queda mais aguda do PIB, a partir deste mês já terá impacto no desempenho da economia. Talvez haja uma pequena recuperação no terceiro trimestre mas a tendência é a economia de novo afundar. Esse cenário vai colocar uma tensão muito grande na manutenção de todas essas amarras fiscais. O que se fez no Brasil nos últimos 30 anos foi a montagem de uma arquitetura fiscal de política monetária e política fiscal, com teto de gastos, meta de superávit primário… Como enfrentar a crise com tantas amarras? Vamos insistir em enfrentar a crise, que tende a se agravar, com os mecanismos e amarras fiscais?”

> O Soberania em Debate com o economista Eduardo Fagnani, uma realização do movimento SOS Brasil Soberano, patrocinado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), está disponível na íntegra, no link abaixo:

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Fonte: Veronica Couto/Senge-RJ