Pacto de enfrentamento à violência sexual contra mulheres é urgente

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Considerada por especialistas como a mais grave violência depois do assassinato, o estupro ainda vitima milhares de mulheres cotidianamente no País. Os dados da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reacenderam a luz de emergência: o número total de estupros registrados no Brasil subiu 19,3% em 2012, em relação ao ano anterior, atingindo 50,6 mil casos – ou seja, quase seis denúncias a cada hora.

Na sua 4ª edição, o Informativo Compromisso e Atitude entrevistou pesquisadores, profissionais do Sistema de Saúde, operadores do Direito e gestores de políticas públicas que lidam com o tema para saber a dimensão do problema e conhecer as principais conquistas e desafios para dar um basta na violência sexual no Brasil.

Entre os entrevistados, um diagnóstico é unânime: é preciso um pacto intersetorial de não tolerância a este tipo de crime. A proposta é fortalecer os serviços e mostrar para a sociedade que o Estado está do lado da vítima, para que ela realize a denúncia e receba o acompanhamento médico e psicológico necessário, e também que seu agressor seja punido e impedido, assim, de continuar o ciclo de violência ou fazer novas vítimas.

Dimensão
Segundo o Anuário, divulgado em novembro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com o aumento dos registros de estupros, a taxa por 100 mil habitantes passou de 22,1 para 26,1 de um ano para o outro, crescendo 18,17%. O levantamento aponta que as ocorrências desse crime superaram o número de homicídios dolosos, e que há ainda o registro de 4,1 mil tentativas de estupros no ano passado.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública sobre o número de estupros no Brasil em 2012Apesar de alarmantes, esses dados ainda podem estar distantes da realidade, já que os números não incluem outras formas de agressão à liberdade sexual – de acordo com a Organização Mundial da Saúde, violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”. Pode ser praticado, segundo o organismo, por qualquer pessoa, independentemente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho.

Além disso, uma parcela significativa desse crime não chega a ser denunciada: estudos do Departamento de Medicina Legal da Unicamp (SP), de 1997, indicavam que a maioria das vítimas não reportava a violência sofrida. Segundo o especialista em Ginecologia e Obstetrícia Jefferson Drezett, nos EUA, por exemplo, calcula-se que apenas 16% dos estupros são comunicados às autoridades. Seus estudos revelam que, no Brasil, a maior parte das mulheres não registra queixa por constrangimento e humilhação, ou por medo da reação de seus conhecidos e autoridades. Também é comum que o agressor ameace a mulher de nova violência caso ela revele a que sofreu.

Na avaliação de Drezett, a mulher teme, principalmente, não ser acreditada. “Esse sentimento, aparentemente infundado, de fato se justifica. São incontáveis os relatos de discriminação, preconceito, humilhação e abuso de poder em relação às mulheres em situação de violência sexual”, aponta em artigo.

Diante do quadro, o aumento de ocorrências constatado em 2012 pelo Anuário pode ser sinal também de um movimento positivo: uma queda na subnotificação. A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), Eleonora Menicucci, considerou os dados como “um alerta que preocupa o Brasil de Norte a Sul”, mas não surpreende. Segundo o governo federal, o aumento no número de estupros captado em pesquisas é esperado, já que as políticas públicas de incentivo à denúncia são crescentes.

“Se as notificações de estupros aumentarem como resultado da atitude corajosa da denúncia, todos teremos dado um passo decisivo para mudar valores e colocar os estupradores atrás das grades”, avaliou a ministra.

Atendimento humanizado e integral

Para especialistas que atuam no atendimento a essas vítimas, a melhor forma de encorajar a denúncia é aprimorar, cada vez mais, o atendimento às mulheres no primeiro contato, conforme aponta a médica psiquiatra Cláudia Facuri, que conduziu uma pesquisa com mulheres vítimas de violência sexual atendidas no CAISM (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher), da Unicamp (SP).

“Se eu for respeitosamente recebida no serviço de saúde ou no serviço legal, vou ficar mais tranquila em retornar ali, me sentirei menos exposta e efetivamente cuidada. Serviços capacitados para atender essas mulheres como preconizado são essenciais”, explica.

Um passo importante nesse sentido foi a promulgação da Lei nº 12.845/2013. Sancionada em agosto deste ano, ela trouxe maior sustentação jurídica a outras referências nesta área, como o Decreto nº 7.958/2013, lançando em março junto ao Programa Mulher, Viver sem Violência para direcionar a humanização e adequação dos serviços de saúde e segurança, sobretudo dos IMLs.

Com a lei, ficou definido que todos os  hospitais da rede do SUS devem “oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando o controle e o tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social”. Entre as medidas indicadas estão a  contracepção de emergência e a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, no atendimento emergencial, e o amparo médico e psicológico para o tratamento da vítima no médio prazo.

Como o hospital deve ser a principal porta de entrada para os serviços do Estado, a lei é bastante importante por ser incisiva, na avaliação do médico obstetra Avelar de Holanda Barbosa. “A urgência é ir para o hospital, porque para as ações que se tomam no atendimento emergencial o tempo é importantíssimo – ou seja, quanto mais elas demoram, maior é o prejuízo para a vítima”, explica.

O desafio agora é fazer com que o marco legal seja assimilado e efetivado no dia a dia dos serviços de saúde país afora, uma vez que, apesar de bastante positiva, existe um intervalo entre a promulgação da lei e sua efetiva capacitação, conforme destaca a médica Cláudia Facuri. “É difícil sensibilizar uma equipe de saúde para atender uma situação que é tabu”, indica.

Machismo e insegurança

“Quando uma mulher – criança, adolescente ou adulta – sofre uma violência, ela deve receber um atendimento para evitar gravidez, DSTs e tudo o que for necessário para sua saúde física, mas também um cuidado da sua saúde mental, para sua resiliência, para que ela possa se reconstruir”, detalha sobre o padrão que deve ter esse atendimento a médica ginecologista e sanitarista Verônica Alencar, Coordenadora do Programa Iluminar Campinas pela Secretaria Municipal de Saúde.

A plena efetivação deste padrão, porém, ainda enfrenta barreiras dentro e fora do sistema de saúde. A primeira pode ser a resistência entre os próprios médicos em realizar os procedimentos necessários, sobretudo a prevenção da gravidez e o aborto previsto em lei.

“Se toda lei tem um porteiro, que abre ou fecha sua efetivação, o porteiro dessa lei é o sistema patriarcal e o machismo perpetrado, principalmente, por uma parcela dos médicos. E, sem o médico, não se consegue qualificar o atendimento”, frisa a especialista.

Com isso, para sair do papel, as normas precisam de um trabalho intersetorial de divulgação, conforme enumera a dra. Verônica: da Secretaria de Políticas para as Mulheres, para toda a sociedade conhecer os direitos; do Ministério Saúde, para seus quadros; e do Ministério da Justiça, para operadores do Direito, como os promotores públicos, que podem exigir o cumprimento da lei.

Como coibir efetivamente a violência sexual?

Além dos desafios para o acolhimento adequado das vítimas no campo da saúde, os médicos lembram ainda que estas medidas não previnem o crime de estupro, mas apenas buscam remediar seus graves efeitos. “Para diminuir o número de estupros, a medida de saúde não resolve. O estuprador que não é punido vai estuprar de novo, além de poder encorajar outros a praticar essa violência perante a impunidade”, alerta o médico Avelar de Holanda Barbosa, supervisor de Emergência Obstétrica do Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB).

Com isso, os profissionais destacam a importância de fortalecer os outros serviços, sobretudo os de segurança, e promover campanhas para combater as causas da violência sexual contra as mulheres: a impunidade e o machismo.

O estupro está tipificado no artigo 213 do Código Penal, no capítulo Dos Crimes contra a Liberdade Sexual, e sua pena varia de 8 a 30 anos, dependendo das circunstâncias. Em 2003, a Lei nº 10.778 estabeleceu a notificação compulsória dos casos de violência – física, sexual e psicológica – atendidos em serviços de saúde públicos ou privados.

Apesar de importante para gerar dados regionais que possam embasar políticas públicas, nem sempre a notificação do crime gera a responsabilização: “existe um verdadeiro descaso na investigação dos crimes sexuais relacionados às mulheres, sobretudos às crianças e adolescentes – em que, na maioria das vezes, o perpetrador está na própria família. Em muitos casos, a saúde cuida, a assistência social cuida, mas não se consegue responsabilizar os autores. O julgamento e a responsabilização devida desses autores são muito raros”, relata a médica, a partir de sua experiência em Campinas.

Ainda assim, a dra. Verônica considera a notificação compulsória importante para trazer um outro olhar para a questão da violência interpessoal. “A notificação obrigatória nos dá possibilidades de criar políticas públicas mais concretas, uma vez que a ficha preenchida por uma UBS [Unidade Básica de Saúde], por exemplo, é um instrumento de cobrança de ações para fazer o município se mobilizar”, conclui.