“Os sentimentos eles nunca vão indenizar”

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“Que mal a gente tinha cometido pra ter medo da polícia, do quartel?!”, bradou em um típico tom de indagação afirmativa. Guardadas na memória, diversas “peleias” travadas durante a ditadura militar brasileira. A política desenvolvimentista do período ficou marcada pela intensificação dos grandes projetos hidrelétricos em todo o país, como Tucuruí, no Pará, e Itaipu, construída na divisa entre Brasil e Paraguai.

Claides Helga Kowahld vivia há 38 anos na comunidade Água Verde, no município gaúcho de Marcelino Ramos, quando a notícia do projeto de construção de 25 hidrelétricas na bacia do rio Uruguai chegou à região, no início dos anos 80.

 

Ao todo, as barragens previstas para os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina expulsariam 40 mil famílias, totalizando 200 mil pessoas, na sua grande maioria pequenos agricultores. “A gente tirava todo o sustento da terra. Então a gente se perguntava: pra onde nós vamos?”, rememorou.

Passados a surpresa e o luto pela descoberta da barragem de Itá, os moradores de Água Verde, e de outras comunidades próximas, iniciaram um intenso processo de organização, que culminou na criação da Comissão Regional dos Atingidos por Barragens, que posteriormente foi um dos pilares na nacionalização da luta dos atingidos, com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).

Na ocasião, Claides foi a única mulher entre os 120 integrantes da CRAB. “Brincavam que eu tinha um banheiro feminino só pra mim, porque eu fui a única mulher entre os 120 homens na comissão dos atingidos”, lembrou sorrindo.

A luta foi acompanhada sempre de perto pela polícia e pelo exército, mas os atingidos não se intimidaram. Até garfo e faca eles foram impedidos de carregar, mas nas manifestações a enxada sempre esteve presente. “Não é por menos que nossa ferramenta de trabalho é uma ferramenta de luta.”

Foram diversos anos de luta até a conquista, em 1987, do acordo, entre os atingidos e a estatal Eletrosul, que propiciou o reassentamento de duas mil famílias e contribuiu para a reconstrução das cidades e vilas a partir de um processo de participação da população na tomada de decisão.

Apesar disso, para Dona Claides, hoje residente em Marmeleiro, no Paraná, a questão da energia no Brasil continua a mesma: “sabemos que a energia não foi construída pra nós, a energia foi construída para as empresas” e, além disso, “o progresso não veio pra nós, atingidos. E para o povo brasileiro, com certeza, o progresso também não veio”.

Ao final da entrevista, Claides, uma das homenageadas durante o Encontro Nacional do MAB, que aconteceu entre os dias 2 e 5 de setembro em São Paulo, ainda fez questão de apontar que “mesmo que eles indenizem muito bem, os sentimentos eles nunca vão indenizar”.

Confira:

A senhora poderia dizer um pouco da sua história, qual o seu nome, a barragem que foi atingida?

Claides Helga Kowahld – Meu nome é Claides, eu sou afogada pela barragem que foi construída pela hidrelétrica de Itá, no rio Uruguai. Nós fomos atingidos no município de Marcelino Ramos, na comunidade de Água Verde, onde a gente morava há 38 anos. A gente gostava muito de morar lá, ninguém tinha a intenção de sair. Por isso, quando veio a notícia da barragem foi um dia de luto em toda a comunidade.

Como chegou a notícia da barragem?

A notícia chegou através de professores da universidade, que descobriram que existia aquele projeto de 25 barragens no rio Uruguai. Isso era assustador! Geralmente, as pessoas da nossa geração compravam terras do pai ou do sogro, ou muitos até nem terra tinham. De repente, a gente ia perder essa terra que não foi fácil de conseguir e que a gente gostava tanto. E, além disso, naquela época principalmente, a gente tirava todo o sustento da terra. Então a gente se perguntava: pra onde nós vamos?

Como foi a organização? Como se construiu?

O sindicato puxou a frente, até hoje a gente vê que é uma ferramenta de luta para a agricultura familiar, e na época também foi para os atingidos por barragens. E logo também se criou a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens, a CRAB, que veio fazer reuniões nas comunidades e conscientizar as pessoas de que precisavam se organizar, porque o bicho era feio e a gente tava correndo o risco de perder tudo.

Nesse sentido, foi muito importante a participação da mulher, porque geralmente ela já constrói a partir de pequenas coisas, valoriza as pequenas coisas. A mulher lembrou tudo, desde o forno que ela tinha lá no pátio até a gaiola que ela tinha pra engordar um frango, porque isso tudo um dia não existia e foi construído. No início, eu estava muito sozinha como mulher, mas eu fui uma liderança na minha comunidade. Brincavam que eu tinha um banheiro feminino só pra mim, porque eu fui a única mulher entre os 120 homens na comissão dos atingidos. E então a comunidade viu que tinha que se organizar e isso foi muito importante.

E como eram organizadas as mobilizações?

Quando a gente começou a chamar as primeiras reuniões, enchia a carroceria de um caminhão pra ir até Erechim, que era nosso polo na época. Mas pra nossa surpresa, chegando lá o quartel de Santo Ângelo estava nos esperando. A polícia esteve sempre presente. Mas a gente também esteve sempre consciente que a nossa luta era um direito. Que mal a gente tinha cometido pra ter medo da polícia, do quartel?! Nós fomos desarmados diversas vezes, até garfo e faca proibiram de levar. Mas nossas enxadas a gente sempre levava, nunca tiraram nossas enxadas. Não é por menos que nossa ferramenta de trabalho é uma ferramenta de luta. Ela assusta, mas é uma ferramenta de trabalho. A gente ia com qualquer clima, com qualquer tempo, sempre pronta pra tudo. Pra que ficar em casa se você pode perder tudo? Se você não está dormindo bem, não tá se alimentando bem, se está com desconforto, você está pronto pra qualquer coisa, pra matar e pra morrer. Agora se você fica no seu conforto, o seu sangue não ferve.

E como eram o diálogo e as negociações com a empresa?

Isso eu também digo hoje, o que foi muito importante foi ter um documento com a empresa. E mesmo nesse documento você tem que cuidar de toda a vírgula, porque você pode interpretar de um jeito, mas eles interpretam de outra maneira. Não foi fácil. Com a empresa, para discutir como seriam as casas no

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reassentamento, foram apenas cinco reuniões. Se não entrava num acordo, voltava em outro dia. O que também foi muito importante foi ter um cronograma, pelo qual a gente controlava o trabalho na barragem e o trabalho na questão social. No momento em que isso estava em desequilíbrio, nós tomávamos o escritório, prendíamos um funcionário, trancávamos o asfalto. Raspava a enxada, fazia barulho.

Certa vez, a gente tombou uma Toyota e ameaçou botar fogo no escritório. A gente também prendeu um funcionário, mas não fez mau nenhum para a pessoa. A gente levou ele pra nossa casa, pra posar. Ele só dizia assim pra gente: “nossa, meu pai também é atingido, não sei porque vocês estão preocupados, porque ele está tranquilo”. Depois veio alguém até a comunidade, assinou um documento e levou o funcionário junto.

E como se deu o debate entre a indenização por carta de crédito e o reassentamento?

Os que foram para os reassentamentos se saíram bem. Claro que não veio de graça, porque foi uma luta fervorosa. Mas quem foi indenizado e comprou em outro lugar, na maioria das vezes está com dívida até hoje, patinando. Nós somos da terra, precisamos dar valor pra ela.

Como a senhora enxerga hoje, depois de vários anos, a questão das energia?

Pra nós não mudou nada. Nós ainda temos que racionar energia em alguns lugares, economizar energia e pagar pela energia. Sabemos que a energia não foi construída pra nós, a energia foi construída para as empresas. A energia é exportada e por isso essas empresas se empenham tanto, porque comprar e vender energia são um alto negócio. O progresso não veio pra nós, atingidos. E para o povo brasileiro, com certeza, o progresso também não veio.

A senhora gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Mesmo que eles indenizem muito bem, os sentimentos eles nunca vão indenizar. Tanto que acontece uma festa anual que nós vamos de caravana até a nossa antiga comunidade. E quando a festa é aqui, são eles que vêm pra cá. A gente faz esse intercâmbio pra não perder o vínculo entre as comunidades. Por isso eu repito, mesmo que eles indenizem muito bem, os sentimentos eles nunca vão indenizar.