“Não existem ciências ditas exatas. Todas as ciências são construções históricas”, afirma professor aposentado da UFRJ

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O presidente da República causou polêmica ao publicar em seu Twitter a seguinte mensagem: “O Ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”. Tanto o presidente como o ministro da Educação sinalizam o descaso com o ensino de filosofia e sociologia nos currículos.

Em nota, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANFOP) afirmou que “o ministro e o presidente ignoram a natureza dos conhecimentos da área de humanidades e exibem uma visão tacanha de formação ao supor que enfermeiros, médicos veterinários, engenheiros e médicos não tenham de aprender sobre seu próprio contexto social nem sobre ética, por exemplo, para tomar decisões adequadas e moralmente justificadas em seu campo de atuação. Ignoram que os estudantes das universidades públicas, e principalmente na área de humanidades, são predominantemente provenientes das camadas de mais baixa renda da população. Ignoram, por fim, a autonomia universitária, garantida constitucionalmente, quando sugerem o fechamento arbitrário de cursos de graduação”. E ainda acrescenta: “Uma das maiores contribuições dos cursos de humanidades é justamente o combate sistemático a visões tacanhas da realidade, provocando para a reflexão e para a pluralidade de perspectivas, indispensáveis ao desenvolvimento cultural e social e à construção de sociedades mais justas e criativas”.

Esta falsa polarização estabelecida entre áreas de humanas e exatas pelo governo federal levantou questões de ambos os lados. Isso porque de acordo com o engenheiro e pesquisador, Agamenon Oliveira, a rigor, não existem ciências ditas exatas. “Todas as ciências tanto as ditas humanas e exatas são construções históricas do ser humano, ou seja, toda ciência é humana no sentido de sua construção lógica no processo de conhecimento. Essa divisão é arbitrária”, ressaltou. Agamenon é pesquisador IV do Cepel (Centro de Pesquisas de Energia Elétrica) e professor aposentado da Escola Politécnica da UFRJ. Possui 90 artigos científicos publicados, 2 livros publicados, 2 livros editados e 1 livro traduzido do francês.  Foi presidente do Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e presidente da Associação dos Empregados do Cepel (ASEC).

Confira abaixo a entrevista completa.

Que relações a engenharia pode estabelecer com a filosofia e vice-versa?

A filosofia é uma forma de conhecimento que indaga sobre as questões mais gerais que afligem o ser humano. Suas origens, sua trajetória como ser vivente na terra e pertencendo a um universo ainda em grande parte desconhecido e, principalmente, para onde vamos. Entre essas questões gerais estão também a moral, a ética e as formas de convivência entre os seres humanos imersos em um meio que os cercam (natural e social). Dito isto, fica difícil desvincular a engenharia da filosofia, porque a engenharia é uma atividade que está no centro do processo de transformação do conhecimento e da configuração do meio em que vivemos, atuando de forma decisiva para obter deste meio (natural) uma melhor qualidade de vida para os seres humanos. Este meio natural, por sua vez, serve de base, arcabouço e fonte de suprimentos sem o qual o outro meio, o social, entraria em colapso.

Qual a importância do ensino de filosofia e sociologia em cursos de ciências exatas?

A rigor, não existem ciências ditas exatas, em dois sentidos. Todas as ciências, tanto as ditas humanas e exatas, são construções históricas do ser humano, ou seja, toda ciência é humana no sentido de sua construção lógica no processo de conhecimento. Essa divisão é arbitrária. Como classificar a ecologia? É uma ciência humana ou exata se ela mobiliza conhecimentos de biologia, química, física etc, mas tem que dar conta da interação com o meio social. Esta divisão cria dificuldades em muitos campos do conhecimento. Em segundo lugar, no sentido epistemológico, o processo de conhecimento se faz por aproximações sucessivas. O ser humano vai construindo, ao longo de sua história, os mecanismos e instrumentos que permitem um maior grau de conhecimento, não necessariamente de forma linear. Isso significa que o conhecimento é construído historicamente. Neste sentido, as teorias científicas têm um caráter provisório e os novos avanços na construção desses instrumentos obrigam a ajustes nas teorias ou sua total substituição. Não existe, portanto conhecimento definitivo.

Em um livro publicado, você assinou o artigo “Leibniz e as Ciências da Engenharia”, que é filósofo e engenheiro. Poderia falar um pouco sobre a importância do trabalho de Leibniz e citar outros exemplos de trabalho sobre filosofia e engenharia?

Leibniz é um dos filósofos e cientistas mais importantes da história da humanidade. Ele estava no centro da Revolução científica do século XVII, ao criar juntamente com Newton e de forma independente o cálculo diferencial e integral. Foi, ainda, um grande cientista em vários outros campos do conhecimento, sendo um dos criadores da lógica binária e, portanto, um dos precursores das linguagens computacionais. Foi engenheiro em Harz na Alemanha trabalhando com moinhos de vento como sistemas energéticos. Outros grandes cientistas também foram filósofos, como Galileu, Newton e Descartes que criou a geometria analítica e foi um crítico eficaz da filosofia escolástica da Idade Média e um dos responsáveis pela corrente filosófica que a substituiu: o mecanicismo. Outro exemplo é Einstein, cientista maior do século XX e também filósofo.

Quais os impactos desses cortes para a Universidade pública e gratuita e para a formulação de ciência, tecnologia e pesquisa?

Os prejuízos serão incomensuráveis. Não somente no longo prazo seus efeitos se farão sentir, mas também no curto prazo. Muitas pesquisas nas áreas médicas poderão parar completamente, pois necessitam constantemente de suprimentos. Isto pode acarretar perdas de vidas em casos de vacinas ou outros medicamentos, além da perda de oportunidade de que eles sejam feitos no Brasil. Em outras palavras, perda de soberania e perda de janelas de oportunidade no desenvolvimento científico e tecnológico. Algumas universidades já estão falando que o dinheiro acaba em setembro e correm o risco de fecharem as portas. Tem também o corte de bolsas de pesquisa no Brasil e no exterior interrompendo muitas carreiras promissoras na área de C&T. 

Você acha que poderia ser o caminho para a privatização do ensino?

O ensino universitário já é privado em sua maioria. O que está havendo há algum tempo é a sua oligopolização. Grandes grupos internacionais ou em associação com grupos privados brasileiros já estão comprando universidades e formando cartéis de ensino subsidiado e financiado pelo governo a juros muito baixos (FIES). Com o governo Bolsonaro e sua política ultraliberal na economia, esses cartéis do ensino devem ganhar peso e o ensino universitário deixará de ser uma forma de ganhar dinheiro em pequena escala para se transformar em uma forma ampliada de acumulação de capital. Este é um fator dos mais poderosos para ampliar as desigualdades sociais e garantir uma casta dominante, rica e letrada, mas também insensível às transformações sociais.   

 

Entrevista por Camila Marins/Fisenge

Foto: Pablo Vergara

 

Texto por Camila Marins