Por Celso Carvalho*
O Rio de Janeiro começou a semana com bairros inundados (principalmente nos bairros populares das zonas oeste e norte, mas também na zona sul e na Barra), túneis alagados, enxurradas nas avenidas e morros, inundações generalizadas, deslizamentos de encostas, ciclovia interrompida, escolas fechadas e mortes – 10 pessoas mortas na periferia e nas favelas. Em fevereiro deste ano, outras 7 pessoas já tinham morrido na cidade por conta das chuvas. Já a Região Metropolitana de São Paulo, por sua vez, acordou do carnaval de 2019 lamentando mais um desastre causado pelas chuvas, com bairros inundados, avenidas alagadas, linhas de trens interrompidas e mortes – 13 mortes de trabalhadores e moradores pobres das periferias.
Todo ano é o mesmo cenário, com as cidades sofrendo com os desastres denominados naturais. Nada mais falso. Nesses desastres, quase nada é natural: nem a chuva intensa, influenciada pelas ilhas de calor que se formam nos bairros sem arborização, pelo desmatamento da Amazônia e pelo aquecimento global devido a uma economia que se apoia no consumo de combustíveis fósseis; nem o escoamento das águas pela superfície impermeabilizada da cidade; nem o sistema de drenagem de águas pluviais que faz com que a água chegue rapidamente aos rios; nem a canalização dos cursos d’água para implantação de avenidas de fundos de vale; nem a ocupação das várzeas dos rios, por moradias e pelo sistema viário.
São desastres construídos, resultado do processo privado de construção da cidade. Na lógica da empresa privada – maximização dos lucros – interessa produzir o maior número de lotes; transformar as áreas rurais em urbanas, pois isso significa um aumento significativo do preço do m2 de terreno; direcionar os empreendimentos para a população de maior renda, pois os preços são mais atrativos; e repassar para a Prefeitura os custos da infraestrutura urbana.
Para que o interesse da sociedade seja levado em conta, esse processo privado de produção da cidade deve ser controlado pelo poder público. É ele que, estabelecendo regras para a produção dos novos loteamentos e dos empreendimentos imobiliários, pode garantir que os novos bairros atendam a todas as funções da cidade e não apenas ao lucro do setor empresarial.
Já existe legislação que dá conta dessa tarefa. Mas essas leis não têm sido aplicadas pelo poder executivo, não têm sido devidamente consideradas pelo poder judiciário e estão sob constante ataque por parte do setor imobiliário.
Para evitar a produção de novas áreas de risco é necessário inicialmente controlar a expansão urbana, preservando as áreas rurais. De acordo com o Art. 42-B do Estatuto da Cidade, o município só pode expandir o perímetro urbano se tiver um projeto urbanístico, aprovado por lei municipal, definindo entre outros aspectos relevantes, quais as áreas que não podem ser ocupadas devido ao risco de inundações ou deslizamentos de encostas. A nova cidade resultado da expansão urbana deve ser projetada pelo poder público e debatido pela sociedade, e não ser simplesmente a somatória de loteamentos privados.
Apesar da lei, a pressão dos empreendedores privados pela ocupação das áreas rurais é incessante. Em São Paulo, por exemplo, encontra-se em tramitação o licenciamento de um aeroporto privado na área rural de Parelheiros (última área rural da cidade), que será um vetor de pressão para ocupação urbana da região. O processo em si não vai contra a legislação federal, mas cria condições para que, num próximo momento, haja uma forte pressão para expansão do perímetro urbano para essa região que, além de frágil do ponto de vista das ameaças de desastres naturais, constitui-se em uma das principais áreas de manancial para o abastecimento de água da cidade.
Evita-se também a produção de novas áreas de risco impedindo que, nas áreas urbanas, sejam produzidos lotes localizados em áreas sujeitas a inundações e a deslizamentos de encostas. A Lei Federal no 12.340, de 1o de dezembro de 2010, estabeleceu em seu Art. 3o – A que o governo federal deve instituir um cadastro dos municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos e inundações e que esses municípios, por meio de uma carta geotécnica de aptidão à urbanização, definir diretrizes urbanísticas voltadas para a segurança dos novos parcelamentos do solo.
Pois bem, decorridos mais de oito anos da aprovação da lei federal, nem o governo federal instituiu esse cadastro, nem a maioria dos municípios incluiu na sua legislação urbanística a carta geotécnica como condição para aprovação de novos loteamentos.
Finalmente, é consenso no meio técnico que se pode evitar inundações nas áreas urbanas já consolidadas por meio de intervenções que diminuam a velocidade com que as águas pluviais chegam na calha do rio, o que pode ser feito por meio de um grande reservatório (piscinão) ou por pequenos reservatórios distribuídos pelo bairro no interior dos lotes.
A primeira alternativa é uma obra de engenharia de grande porte, que produz impacto no tecido urbano e problemas de saúde pública quando a manutenção falha. Seu alto custo é arcado pelo poder público, enquanto o benefício (maior preço do lote por não estar sujeito a inundações) é capturado pelos incorporadores imobiliários. É a alternativa preferida pelos empreiteiros e empreendedores imobiliários.
A segunda alternativa é de longe a mais racional: favorece a infiltração das águas da chuva no solo e retém parte do excesso em cada lote, antes do lançamento no sistema de galerias de águas pluviais. Não exige gasto público, apenas uma lei tornando obrigatório que cada nova construção tenha uma porcentagem de área não impermeabilizada e um reservatório de águas pluviais, dimensionado de acordo com o tamanho do terreno.
Também neste caso já existe legislação. No Rio de Janeiro, o Decreto no 23.940, de 30 de janeiro de 2004, “torna obrigatória a adoção de reservatórios que permitam o retardo do escoamento das águas pluviais para a rede de drenagem” em todos os empreendimentos com área impermeabilizada superior a 500 m2. Em São Paulo, a Lei no 16.402, de 22 de março de 2016 (Lei de Uso e Ocupação do Solo), instituiu em seu artigo 74 a quota ambiental, um conjunto de regras para incentivar a implantação de reservatórios de água de chuva, pisos permeáveis e vegetação em lotes maiores que 500 m2 .
O custo para implantação desses sistemas, face aos prejuízos causados pelas inundações ou ao custo de novos piscinões, é irrisório. Mas o setor imobiliário não cede facilmente. Em São Paulo, por exemplo, além dos ataques na mídia a esse dispositivo (sempre com os mesmos argumentos, o custo inviabiliza o negócio, a fórmula é de difícil aplicação, os órgãos de licenciamento são morosos, etc.), o setor conseguiu na Justiça manter o denominado “direito de protocolo”, que lhe permite aprovar empreendimentos de acordo com a legislação vigente na época em que o protocolo de licenciamento entrou na prefeitura, antes, portanto, da vigência da lei atual.
Não bastasse a dificuldade na efetivação das leis já existentes, as notícias dão conta que a prefeitura do Rio de Janeiro tem diminuído sistematicamente as atividades de prevenção de desastres, reduzindo o orçamento municipal e até mesmo deixando de utilizar, por incompetência, os recursos federais.
O resultado se vê mais uma vez. Quando o estado não garante o cumprimento das leis, o interesse público fragiliza-se e a cidade torna-se uma grande área de risco. Quando, além disso, e como é o caso das duas maiores cidades do Brasil, os prefeitos mostram-se incompetentes para tratar dos problemas que atingem os cidadãos e, sob o argumento do equilíbrio fiscal, contingenciam os recursos para as obras de prevenção (apesar de não tocarem nos recursos para publicidade ou para as parcerias público privadas), esse risco torna-se insuportável.
*CELSO CARVALHO é engenheiro civil, doutor em engenharia, ex-diretor do Ministério das Cidades (2005 a 2014) e colaborador da rede BrCidades.
Artigo publicado originalmente na Carta Capital
Foto: Tania Rêgo/Agência Brasil (EBC)