Raul Otávio da Silva Pereira (Secretário Geral do Senge-MG e diretor executivo Fisenge)O advento da globalização, facilitado e incentivado pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação, trouxe consigo mudanças significativas no mundo do trabalho. As técnicas de gestão, profundamente influenciadas pela rapidez com que as informações fluem, obrigam a uma maior agilidade operacional e funcional dos atores envolvidos (empregados e empregadores). Nesse contexto, as formas conhecidas de relacionamento entre as partes estão em constante mutação, fazendo com que o papel das entidades sindicais tenha que ser, se não revisto, adaptado à nova realidade do século XXI.É fato que todo esse quadro acarretou a mudança no perfil e na rotina diária dos empregados, e, no caso dos engenheiros, nem sempre existe correspondência entre o aumento da carga de trabalho propriamente dita e o aumento da valorização do profissional, conforme registra o trabalho inédito no país – Radiografia dos Engenheiros no Brasil, Unicamp – 2009, de Andriei Gutierrez, a partir da parceria do Laboratoire d’Economie et de Sociologie du Travail (LEST) com a Universidade Estadual de Campinas. Sob a responsabilidade de Gutierrez foi realizada, de julho a setembro de 2009, uma enquête em todo o território nacional apoiada nas experiências francesas de anos de pesquisa sobre a situação socioeconômica dos engenheiros naquele país.Percebe-se claramente que o engenheiro, dentro do novo modelo de trabalho, é utilizado como mão de obra tecnológica e de liderança, tendo, entretanto, pouca autonomia no que tange a decisões empresariais. Não há que se falar portanto, em uma primeira análise, da visão predominante em alguns setores (e mesmo entre profissionais) do engenheiro como gestor, ocupante de “cargo de confiança”. Até porque o conhecimento adquirido por estes profissionais permite que os mesmos sejam úteis para tratar de questões administrativas de ordem orçamentária, relação com fornecedores e clientes e qualidade de produtos.O espaço de não inserção dos engenheiros é justamente o ambiente decisório sobre o foco estratégico das empresas. Essas responsabilidades são somadas ao ônus do aumento indevido e muitas vezes não remunerado da carga de trabalho. Em nenhum momento é mencionada a participação na gestão da empresa propriamente dita. Causa espanto também os resultados apresentados na pesquisa (Gutierrez, 2009). O estudo constata que, em média, 60% dos engenheiros são acionados durante o período de descanso e se julgam como profissionais, líderes ou responsáveis de equipe com responsabilidades hierárquicas. No entanto, destes mesmos engenheiros, apenas 43% (em média) alegam ter poderes para influenciar nas decisões estratégias, econômicas, financeiras, tecnológicas e também nas decisões relativas a questões ecológicas e sociais das empresas. Não é à toa que, segundo a mesma pesquisa, o grau de insatisfação com o “poder” de influenciar é alto: 39%, na média.Geração silenciosa e individualistaA própria forma através da qual se materializa o trabalho do engenheiro mostra claramente o perfil de empregado, sujeito a condições trabalhistas – 66% dos profissionais estão hoje vinculados ao setor privado ou a empresas públicas.É fato também o aumento de escala do tele-trabalho, no qual a relação pessoal está sendo substituída pelo trabalho à distância, via Internet. Essa situação, se por um lado acarreta ganhos de escala empresariais, por outro lado diminui ou praticamente elimina o ambiente de reivindicação bem como o questionamento político sobre condições de trabalho e remuneração, que seriam em primeira instância os catalisadores da atuação sindical.É óbvio que esses questionamentos são indesejáveis sob o ponto de vista do capital.O advento da chegada ao mercado de trabalho das denominadas gerações Y e Z, já acostumadas ao convívio com a tecnologia existente, demonstra que o contato pessoal já está sendo velozmente substituído pela Internet e pela telefonia celular. Essas gerações, por muitos chamada de “geração silenciosa”, é individualista e enxerga no aprimoramento do desempenho pessoal e na meritocracia a forma predominante de gestão da carreira e de crescimento na vida profissional, descartando assim as ações e reivindicações coletivas. Aos olhos destes novos profissionais, essa realidade faz parecer excludente e supérflua a participação dos sindicatos no dia a dia das corporações.Todo esse contexto aponta para uma mudança significativa no padrão de gestão individual de carreiras, a partir do momento em que os engenheiros são obrigados a gerenciar suas carreiras independentemente das empresas, fragilizando-os enquanto dependentes da venda de sua força de trabalho.Também é necessário observar a constante evolução das condições trabalhistas no Brasil. Em que pese ainda haver demandas históricas não atendidas (o Salário Mínimo Profissional do engenheiro é uma delas), não se pode negar que a redemocratização do país trouxe em seu bojo a eliminação ou diminuição de intensidade de várias demandas que pautavam as entidades sindicais na década de 70 e de 80, fato que veio de certa forma a esvaziar a atuação dos sindicatos.Para completar o quadro, a profunda transformação do capitalismo brasileiro a partir da década de 1990 paradoxalmente fez um contraponto a essa conquista política, à medida em que rompeu com a intervenção estatal, reduzindo investimentos em infraestrutura, privatizando empresas produtivas e inserindo a lógica da financeirização do sistema produtivo. Essa lógica foi parcialmente reforçada após a eleição de Lula em 2002 que, indiretamente, também contribuiu para diminuir as mobilizações sindicais. Isto aconteceu em parte porque o atual governo sempre se portou de forma mais democrática e receptiva que os anteriores e também pela perda de muitas lideranças sindicais, convocadas para assumir postos no executivo federal.A arte de reinventar o conflito Todo esse quadro político de “desnacionalização” e “desindustrialização” da economia brasileira (Boito, 1998; Cano, 2000; Carneiro, 2002; Biondi, 2003) pode ser facilmente observado no seguinte dado: o desaparecimento de 50 mil postos de trabalho para engenheiros nas últimas duas décadas (Lombardi, 2004).Um olhar crítico sobre a crise sistêmica que se abateu sobre o mundo nos anos de 2008 e 2009 também pode oferecer algumas alternativas para análise e reflexão. A soberba do capitalismo (travestido de novidade sob a alcunha de “neoliberalismo”) tentou inculcar nos corações e mentes a crença de que a autoregulação dos mercados era suficiente para se alcançar o “paraíso’ na terra. A essa soberba se somaram (e ainda se somam) medidas de práticas antisindicais e de precarização das relações de trabalho, que buscam substituir o Estado na regulação das relações e dos conflitos.Ao fim e ao cabo, depois de observada a bancarrota mundial, fica claro que o Estado mais do que nunca deve se responsabilizar em buscar, no que tange essas relações, a proteção dos trabalhadores contra medidas arbitrárias das empresas. São corporações que, na ânsia do lucro desmedido (e sob a falsa justificativa da produtividade), buscam cortar e diminuir toda e qualquer forma de conquista trabalhista, agindo portanto na contra-mão da história e do histórico da luta sindical.Aos detentores do capital – e nesse momento não se faz juízo de valor sobre a questão do lucro, resultado essencial e necessário a um sistema capitalista – é necessário também um olhar para o futuro, das relações com a sociedade que devem ser reconstruídas, remodeladas ou, se for o caso, refeitas sob o viés da responsabilidade social e zelo pelo ambiente. Essas iniciativas (que na realidade se configuram muito mais como marketing empresarial, sem uma correspondente conscientização real dos gestores) não podem e não devem ser utilizadas apenas como fator propagandístico e comercial, como está se configurando, mas sim, de forma efetiva, buscando uma nova relação não só com o meio ambiente, com a sociedade, como também com os trabalhadores.Quanto ao sindicalismo, seu papel permanece idêntico ao que se propôs desde o seu surgimento. A mediação dos conflitos, a busca pela melhoria das remunerações e condições de trabalho e claro, a contribuição para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O desafio que se coloca na realidade é “reinventar o conflito”, buscando dessa forma a sensibilização da massa de trabalhadores hoje excluídos culturalmente do ambiente político-sindical.Em que pese a mídia alardear como “fora de moda” o conflito capital-trabalho, este ainda existe, embora em estado latente. Talvez tenha mudado de forma, talvez tenha mudado de foco, mas cada vez mais os trabalhadores do mundo necessitam se cacifar junto ao capital para conquistar as reivindicações de suas categorias. Aos sindicatos cabe mais do que nunca catalisar, reunir, agrupar, organizar e incentivar essas iniciativas.Apesar disso, no que diz respeito às organizações sindicais e representativas do coletivo de engenheiros, todas essas mudanças conjugadas incutiram complicadores de novo tipo para sua atuação. Figuram entre elas a dificuldade para recrutar novos militantes, renovar o quadro de dirigentes e manter tradicionais estratégias de ação, principalmente de ordem reivindicativa (Simões, 2000). Não é difícil entender esse fenômeno à medida que se observam altos graus de descolamento pessoal dos engenheiros com o mundo político de um modo geral – 77% destes jamais aderiu a um partido político; 60% idem a um movimento social e 47% dos profissionais nunca se filiou a um sindicato – destes, 18% por indiferença à organização, 16% por sentimento de não representação e 20% por suposta baixa influência do sindicato nas empresas onde trabalham.Na face invertida desse quadro, é fácil também observar pela pesquisa que as pessoas que se filiam a sindicatos estão apoiadas em argumentos que, a princípio, demonstram a fragilidade (ou pouca visibilidade) do movimento – 30% dos que se associam o fazem por “defesa dos interesses dos engenheiros” e por “proteção jurídico-associativa”.Mais luz no mundo político. Têm relevância as iniciativas observadas, no Brasil e no mundo, no que diz respeito à redução das jornadas de trabalho. O tema suscita polêmicas, por uma suposta condição absurda da proposta, mas nunca é demais lembrar que o movimento sindical surgiu justamente em contraposição às jornadas de 12, 14 horas – que eram normais no século XIX. Portanto, o que se discute tem fundamentação a partir da constatação de já terem sido reivindicações dessa ordem “absurdos” em várias épocas e, nem por isso, deixaram de ser objeto de e conquista sindical.A constante melhoria das condições de vida da população do planeta pode sim estar sinalizando uma possibilidade de se avançar na redução da jornada como fator não só de bem estar social como também de desenvolvimento, na medida em que incentiva o consumo e são abertos mais postos de trabalho.No campo da engenharia, muitas são as questões em pauta:– Qual o impacto da inserção de novas tecnologias de informação, comunicação e novos instrumentos de gestão sobre o grupo profissional e também sobre seus comportamentos?- Para qual horizonte aponta o cenário de ampliação das atividades do engenheiro além da esfera técnica, tais como as áreas de administração e finanças ? Como compatibilizar essa evolução com a efetiva participação dos engenheiros nos ambientes decisórios ?- Até que ponto a individualização das carreiras altera a correlação de forças entre os engenheiros e as direções das empresas? Nessa perspectiva, qual é a perspectiva de evolução do profissional ?- Quais são os limites éticos entre as diretivas das empresas e dos engenheiros? Estariam os engenheiros efetivamente mais sensíveis aos problemas relativos ao meio ambiente, precarização das condições de trabalho, saúde e preconceitos (gênero, étnicos e sociais)?- Como as mudanças do capitalismo brasileiro e mundial afetaram os modos de organização e representação coletivos? O perfil político do profissional é causa ou efeito da nova ordem vigente ?São questões da maior importância, devem ser objeto de avaliação e discussão, especialmente em um momento que tem o modelo capitalista no centro do debate. Alternativas objetivas e concretas devem ser analisadas sob a luz de fatos que permitam a adoção de uma correta diretriz de comportamento, tanto por parte dos profissionais de engenharia quanto das entidades sindicais. Longe de esgotar o debate, esse artigo busca justamente lançar interrogações sobre o mundo político, para que se possa efetivamente buscar luzes que orientem e direcionem a atuação dos sindicatos nesse início de século.(*) Raul Otávio da Silva Pereira é engenheiro eletricista e Secretário Geral do Senge – Minas GeraisBIBLIOGRAFIA Gutierrez, A. (2009), Radiografia dos Engenheiros no Brasil. São Paulo, Unicamp.Biondi, A. (2003), O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo, Perseu Abramo.Boito, A. (1998), Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo, Xamã.Cano, W. (2000), « O ajuste da década de 1990: neoliberalismo e crise ». In: Soberania e política econômica na América Latina. São Paulo, Ed. Unesp.Carneiro, R. (2002), Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo/Campinas, Ed. Unicamp/Ed. Unesp.Laudares, J. (2000), « A qualificação/requalificação do engenheiro na fábrica globalizada: a necessidade de novos processos de trabalho ». In: Bruno, L. et Laudares, J., Trabalho e formação do engenheiro. Belo Horizonte, Fumarc.Lombardi, M. (2004), Perseverança e resistência: a engenharia como profissão feminina. Campinas, tese de doutorado, Unicamp, Faculdade de Educação.Nassif, A. (2008), « Há evidências de desindustrialização no Brasil? », In: Revista de Economia Política, n. 28 (1).Simões, S. D. (2000). « Os engenheiros e a trajetória do sindicalismo de classe média: dos projetos de transformações da sociedade brasileira nos anos 80 ao ‘fim das certezas’ nos anos 90 ». In: Laudares, J. B. et Bruno, L. (Dir.), Trabalho e formação do engenheiro. Belo Horizonte, Fumarc.