O capital financeiro não precisa do Estado e vai desmontar as estruturas produtivas do país

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O projeto das forças que afastaram a presidenta Dilma Rousseff não é apenas um ataque do capital sobre os direitos do trabalho e das camadas populares, mas uma ação comandada por um tipo específico de capital – o financeiro –, que precisa reordenar as estruturas produtivas do país, entre elas as da indústria e dos direitos trabalhistas, de acordo com os seus interesses. Nesse cenário, os Estados nacionais perdem importância e passam a ser controlados por grupos estrangeiros que visam maximizar o lucro, no menor tempo possível. O alerta foi feito pelo sociólogo Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), e também por João Pedro Stédile, liderança nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), durante o III Simpósio SOS Brasil Soberano, realizado no dia 8 de junho em Belo Horizonte (MG).

“Não há mais soberania no país”, afirmou Clemente Ganz. “Estamos vivendo uma etapa acelerada, vertiginosa, de desmobilização das instituições que sustentaram o desenvolvimento nacional. Nesse ritmo, teremos nos próximos meses um país com estruturas produtivas e recursos naturais sob controle do capital internacional.”

Na opinião de Stédile, o Estado clássico, gestado no século 18 pela burguesia industrial com o propósito de organizar as relações sociais de produção, estabilizar e garantir legitimidade para que a acumulação de capital acontecesse sem guerra civil, esse Estado a que estamos acostumados, chegou ao fim. “Acabou, porque quem domina as sociedades é o capital financeiro, que acumula sem necessidade do Estado”, diz. Nesse contexto, o Estado tem como único papel transferir a mais valia social para o capital financeiro e, para isso, “basta contar com um gestor financeiro, como são o Meirelles [Henrique Meirelles, ministro da Fazenda] ou o Goldfajn [Ilan Goldfajn, presidente do Banco Central]”.

Há uma mudança importante na estratégia econômica do capitalismo, explica o diretor do Dieese. Os Estados nacionais tinham grandes empresas que operavam em diferentes lugares do planeta; agora, são as empresas multinacionais que controlam o Estado para atuar segundo seus objetivos. “Este capitalismo passa a ser articulado, organizado e mobilizado pelo capital financeiro, que trabalha buscando maior lucro no menor tempo, com uma taxa de retorno estupidamente alta.”

Por exemplo, ele cita o caso da interferência do governo de Beto Richa (PSDB-PR) na gestão da Companhia Paranaense de Energia (Copel). Em maio, o diretor de Finanças e Relações com Investidores, Luiz Eduardo Sebastiani, foi afastado após se opor à proposta do governo do Estado, maior acionista da empresa, de dobrar – de 25% para 50% – a parcela dos lucros de 2016 a ser distribuída aos sócios como dividendos. A diretoria da Copel defendia a distribuição de 25% dos lucros, reservando os 75% restantes para reinvestimentos e redução dos riscos de endividamento, decisão revertida pelo Executivo, em uma nova Assembleia Geral.

“Com essa lógica [de priorizar a apropriação do lucro], não há desenvolvimento”, diz Clemente Ganz. “Desaparece a ideia de organizar a base produtiva com um arranjo institucional e um determinado Estado indutor, porque a lógica do capital é comandada pelos gestores dos fundos de investimentos.” Ou seja, energia, terra, minério, água, tudo passa a ser considerado sob o ponto de vista desses investidores. Até o espaço aéreo, observa o diretor do Dieese, em referência ao Projeto de Lei 7425/17, que tramita na Câmara, aguardando deliberação em Plenário, para permitir que empresas estrangeiras detenham o controle de companhias aéreas no país. Atualmente, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86) limita a 20% a participação do capital externo em empresa aérea nacional.

Com o estouro da bolha em 2008 e a difusão da crise pelos continentes, as grandes corporações passaram a mirar as economias periféricas, como as do Brasil, e governos subalternos, diz Stédile. “Elas impõem aos países condições ainda mais draconianas, tanto para exploração do trabalho, quanto das riquezas naturais, aumentando a pressão sobre a periferia, com uma sanha incontrolável para se apropriar de bens como energia elétrica, minério, petróleo, as terras e a sua biodiversidade.” No Brasil, esse processo teria começado com as mudanças pela exploração do petróleo na camada pré-sal: “o Aloysio Nunes [do PSDB-SP, atual ministro das Relações Exteriores] correu aos EUA no dia seguinte do golpe”, lembra.

Reforma trabalhista
“O que há é um processo de desmonte dessa estrutura institucional construída ao longo de 50, 60 anos, e que deram ao Estado brasileiro, por meio das empresas públicas, bancos, da Petrobras, uma possibilidade de orientar o desenvolvimento”, avalia o diretor técnico do Dieese. Para essa transformação do Brasil em plataforma de exploração, Clemente Ganz avalia que a realização das reformas seja imprescindível – a da Previdência, de modo acessório, e a trabalhista, essencial ao projeto em curso.

“A reforma trabalhista altera 300 aspectos da CLT, a maior reforma desde que a lei foi criada”, diz o sociólogo, que acusa 80% dos integrantes do Congresso, que vão votá-la, de não a terem lido. “Em três semanas, votaram nas comissões um projeto que altera quase cem anos de história.”

Em síntese, ele explica que o projeto do governo implode o movimento sindical, ao retirar dos sindicatos o poder de conduzir as negociações entre patrões e empregados, que poderão ser feitas individualmentes. Também cria uma comissão com força para quitar acordos; institui diferentes tipos de contrato de trabalho, permite ao indivíduo quitar débitos trabalhistas; e reduz de cinco anos para 12 meses o prazo para recursos na Justiça em ações trabalhistas.

A Justiça deixa de ser gratuita: se o o trabalhador atrasar na primeira audiência, terá que pagar metade das despesas da ação; se não o fizer, não poderá mais voltar a recorrer à Justiça do Trabalho. “E é bom lembrar: cerca de 25% dos trabalhadores não encontram a sala da audiência e perdem a causa”, estima Clemente Ganz. “Sem que se perceba nenhuma perda imediata, o Brasil terá legalizado um ajuste no custo do trabalho. E as empresas terão a garantia de que não acumularam passivo trabalhista.”

Na prática, dentre as empresas que estão sendo compradas pelo capital internacional, uma parte é fechada e os produtos que elas forneciam passam a ser importados, como o diretor do Dieese diz que já acontece, por exemplo, em Caixas do Sul (RS). A outra parcela sofre adequações de médio e longo prazo, como no caso do setor da soja, para que a aquisição de máquinas, peças, equipamentos, desloque-se para o exterior. Dos cerca de 18 mil fornecedores que integravam a cadeia de exploração e produção de petróleo e gás da Petrobras, 6 mil já foram demobilizados, segundo Clemente Ganz. E 30 mil postos de trabalho de engenheiros foram fechados e não serão repostos.

Propostas
Para superar a crise e retomar o desenvolvimento em um modelo que assegure direitos aos trabalhadores e soberania sobre as riquezas nacionais, ele aponta algumas frentes, entre elas, em especial, a reorganização da base urbana do país. “O espaço urbano é uma oportunidade importante de desenvolvimento industrial. Se agregarmos também o espaço rural, os transportes, de forma compatível com ações sustentáveis do ponto de vista do clima e ambientais, teremos um projeto de desenvolvimento nacional.” Mas o sociólogo do Dieese ressalta que essas questões precisam ser induzidas e coordenadas pelo Estado. O capital atraído pelo projeto do atual governo, ressalta, não vai abordar os problemas do país com essa lógica, porque seu compromisso é apenas a buscar o máximo de lucro financeiro.

Na última reunião do Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, em janeiro deste ano, Stédile lembra que o economista Joseph Stiglitz, ganhador de um prêmio Nobel, declarou que a única maneira de sair da crise seria “estatizar os bancos”. Ou seja, “recuperar o capital acumulado, que atualmente só gira em de si próprio pela especulação, e reinvestí-lo na indústria, na construção e em outras soluções concretas”.

Outra proposta envolve a chamada quarta Revolução Industrial (ou indústria 4.0), resultado da convergência das tecnologias da informação e das telecomunicações, com alto nível de automação, observa o líder do MST. “Os ideólogos dessa forma de produção, contudo, já avisaram aos empresários que ela é viável do ponto de vista do capital mas vai jogar 70 milhões de operações industriais nas calçadas. Estão dispostos? Estão pensando até agora.”

Por: Verônica Couto/ SOS Brasil Soberano