Uberização provoca reflexão sobre mundo do trabalho

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De sexta a segunda, o físico Matheus Lara, de 30 anos, entra em seu carro para trabalhar como motorista de Uber, no Rio de Janeiro. Desde 2014, a Uber oferece serviços de transporte por meio de aplicativo de celular. Às segundas-feiras, Matheus sai de casa às 6h30 com retorno às 20 horas. 14 horas de trabalho em um só dia, utilizando carro próprio e arcando com todos os custos de combustível, seguro para o automóvel e o passageiro. “A empresa não me vê como trabalhador, mas como parceiro. É como se eu fosse um prestador de serviço, ou seja, não tenho direitos”, conta Matheus, que é motorista em tempo parcial, já que tem outros trabalhos informais. Ele ainda afirma que a Uber fica com 25% do valor bruto em corridas UberX (carros populares) e 20% para UberBlack (veículos de luxo).
 
Esta é uma realidade de muitos brasileiros, desde a chegada dos aplicativos prestadores de serviços. O cenário atual reflete a forma como a tecnologia tem aprofundado as transformações nas relações produtivas, caracterizando a chamada “uberização” do mundo do trabalho. De acordo com o advogado e assessor parlamentar da Fisenge, Maximiliano Garcez, este é o fenômeno pelo qual grandes empresas utilizam a força de trabalho de uma enorme quantidade de trabalhadores, por meio das tecnologias disruptivas*. “A relação de trabalho é precária, sem registro em carteira e sem garantias. O trabalhador fica, geralmente, muitas horas aguardando por chamadas em aplicativos, recebendo somente por parte das horas trabalhadas. Quem está rodando sem passageiro, trabalhando para o Uber, gera informações valiosas que são coletadas pela plataforma, mas nada ganham por isso. É uma forma preocupante de terceirização disfarçada”, explicou Maximiliano.

A instrumentalização dessas plataformas tem provocado a desregulamentação dos direitos trabalhistas. Em janeiro deste ano, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, uma das principais reflexões foi a instauração da Quarta Revolução Industrial, ou Indústria 4.0, que poderá implicar na perda de cinco milhões de empregos nos próximos cinco anos. Um documento da entidade que organiza o Fórum de Davos também aponta “grandes perturbações não só no modelo dos negócios, mas também no mercado de trabalho nos próximos cinco anos”.

De acordo com a pesquisadora industrial e mestranda em sociologia pelo IESP/UERJ, Camila Lamarão, esse é um processo diferente das demais Revoluções Industriais. “A primeira com o emprego de máquinas a vapor e hidráulicas; a segunda com produção em massa pelo advento da energia elétrica; e a terceira com automação da produção pelo emprego de tecnologias de informação e sistemas eletrônicos. A Quarta Revolução Industrial está sendo desenvolvida com um processo mais amplo de disseminação da tecnologia, aliada ao capital financeiro, combinando numerosos fatores como a internet dos objetos e ‘big data’* para transformar a economia”, pontuou Camila.

As projeções de desemprego estrutural em nível mundial alertam para a ruptura dos processos produtivos, fundando outros paradigmas culturais e sociais. “Hoje, grande parcela da população já possui um celular que opera transações econômicas, por exemplo. A nanotecnologia* está permitindo baratear e diminuir as escalas dos processos produtivos, aliada à internet das coisas*, o que impulsiona uma descentralização da produção e da comercialização. A robótica* e a inteligência artificial* extinguirão vários postos de trabalho. Todo esse processo já está em andamento e se estabelecerá de forma mais acelerada do que nas etapas anteriores da revolução industrial”, observou Camila. Ela ainda alerta: “Claro que tudo isto se inicia primeiro nos países centrais, e depois nos países periféricos, porém terá o mesmo impacto da introdução da energia elétrica nas nossas vidas, por exemplo. É uma mudança sem volta”.

Outros fatores são a perda real de postos de trabalho e as dificuldades de reinserção. “Os poucos novos trabalhos que serão criados pelas tecnologias exigirão um trabalhador cada vez mais multifuncional, ou seja, que saiba atuar em várias frentes de um mesmo processo, fazendo por vezes papel de designer, gestor, comercializador, entre outras funções. Viveremos um cenário em que teremos um trabalhador multifuncional, que não é mais identificado somente por uma profissão, e sim pela sua capacidade de dinamismo e adaptação. Também assistiremos a um grande número de pessoas desempregadas tentando viver por meio de um empreendedorismo “uberizante””, apontou Camila.

Aplicativos como Uber e AirBnb (hospedagens domiciliares), por exemplo, funcionam como centralizadores de informações e serviços, e também controladores de ferramentas avançadas de tecnologia. Camila Lamarão ainda destaca que a Uber não tem uma frota de táxi e o Airbnb não possui uma rede de hotéis, mas oferecem os serviços por meio de suas tecnologias e os trabalhadores que a eles se associam são os responsáveis diretos com os consumidores. “Esse tipo de trabalho, como é completamente novo, vem totalmente desregulamentado. Assim como ainda é desregulado o trabalho que é feito quando as pessoas se comunicam para o trabalho após seu horário regular, seja pelo celular ou aplicativos como WhatsApp. O cenário atual do mundo do trabalho é de uma acelerada transição para uma profunda informalidade, desemprego alto e profissões multitarefas desreguladas”, avalia a socióloga.

Novas tecnologias e seus paradigmas

Quando pensamos em tecnologia, logo nos remetemos aos aplicativos de celulares. Mas tecnologia e ciência envolvem muitos processos como a descoberta da energia elétrica, a máquina a vapor, entre outros inventos. E, muitas vezes, a tecnologia é vista no maniqueísmo entre as possibilidades de libertação ou escravização da humanidade. Afinal, por um lado, a máquina de lavar roupas, por exemplo, facilitou o trabalho doméstico. Mas, com o sistema capitalista, em vez de criarmos lavanderias comunitárias e coletivas e usarmos o tempo economizado para lazer e momentos de criatividade, acumulamos em nossas casas cada vez mais máquinas em processo de individualismo e também liberamos horas para a exploração da força de trabalho. A principal questão envolve a apropriação da tecnologia em seus cenários e os interesses envolvidos.

“O que está por vir acontecerá com pouca resistência pela sociedade, porque a tecnologia parece ser um campo de benesses. As pessoas acreditam acriticamente que toda tecnologia é feita para a melhoria da vida humana e, nesse sentido, até é. O problema reside em quem gerencia e distribui essa tecnologia que, cada vez mais, ficará a cargo de um grupo restrito de corporações”, analisou a socióloga.

Papel do movimento sindical

Se caminhamos para um processo sem volta, qual será o papel do movimento sindical? O assessor parlamentar da Fisenge, Maximiliano Garcez, acredita que, para aumentar a efetividade dos direitos trabalhistas, as soluções precisam vir de modo sistêmico, pelo atacado. “Os sindicatos devem utilizar mais as ações coletivas. Em 2011, o TST [Tribunal Superior do Trabalho] modificou sua jurisprudência, passando a admitir a condenação do empregador em honorários advocatícios, em caso de ação coletiva julgada procedente. No entanto, um grande número de entidades sindicais ainda não faz uso adequado deste poderoso instrumento de atuação coletiva. Ações coletivas na Califórnia, visando tratar como trabalhadores quem trabalha para o Uber (como efetivamente são), estão avançando”, citou Max. Ele ainda ressalta a importância da comunicação com a sociedade, por meio de audiências públicas e campanhas e de ações de dano moral coletivo por dumping social. “Não podemos tratar o trabalhador uberizado como uma peça sujeita a preço de mercado, descartável quando não se presta mais à sua finalidade. A luta pelo respeito à integridade do trabalhador visa também lembrar à sociedade os princípios fundamentais de solidariedade e valorização humana, que ela própria fez constar do documento jurídico/político que é a Constituição”, concluiu Max.

Já Camila salienta a importância da formação das lideranças para a compreensão da Quarta Revolução Industrial. “Os sindicatos e movimentos sociais têm que fazer seminários, financiar estudos, promover debates com a sociedade, principalmente com os jovens, que vêm crescendo profundamente socializados com as novas tecnologias, e são bombardeados constantemente com a cultura da informalidade aliada a um desconhecimento profundo dos direitos. É preciso aliar o ensino da história da luta por direitos trabalhistas com exercícios de estratégias para soluções dos problemas laborais atuais e futuros”, analisa. 

Diante do cenário de desregulamentação, ainda podemos pensar o lado positivo das novas tecnologias, que é a capacidade de conectar pessoas e mobilizar esforços para ações concretas. “É preciso que este trabalho colaborativo seja de fato um ganho coletivo, e não que camufle a exploração do trabalho para um ‘bem maior’. Não podemos temer o futuro, até porque é inevitável. Temos, sim, que nos apropriar desses elementos, que já fazem parte do nosso futuro, e direcioná-los para os interesses realmente coletivos. Com toda a nossa capacidade organizativa e com a capacidade dessa juventude de viver essa nova era, devemos afirmar que este futuro não é de poucos. É de todos’”, finalizou a socióloga.

* Entenda os termos sobre a Quarta Revolução Industrial
(Fonte: CanalTech e Wikipédia)

Nanotecnologia
Nanotecnologia é o entendimento e controle da matéria em nanoescala, em escala atômica e molecular. Ela atua no desenvolvimento de materiais e componentes para diversas áreas de pesquisa como medicina, eletrônica, ciências, ciência da computação e engenharia dos materiais.

Big Data
Em tecnologia da informação, o termo Big Data (“megadados” em português) refere-se a um grande conjunto de dados armazenados. Diz-se que o Big Data se baseia em 5 V’s : velocidade, volume, variedade, veracidade e valor. Big Data é um termo amplamente utilizado na atualidade para nomear conjuntos de dados muito grandes ou complexos, que os aplicativos de processamento de dados tradicionais ainda não conseguem lidar.

Tecnologia disruptiva
“Tecnologia disruptiva” ou “inovação disruptiva” é um termo que descreve a inovação tecnológica, produto, ou serviço, que utiliza uma estratégia “disruptiva”, em vez de “revolucionário” ou “evolucionário”, para derrubar uma tecnologia existente dominante no mercado.

Internet das coisas
A Internet das Coisas (do inglês, Internet of Things) é uma revolução tecnológica a fim de conectar aparelhos eletrônicos do dia a dia, como aparelhos eletrodomésticos a máquinas industriais e meios de transporte à Internet, cujo desenvolvimento depende da inovação técnica dinâmica em campos tão importantes, como os sensores wireless e a nanotecnologia.

Robótica
Robótica é um ramo educacional e tecnológico que engloba computadores, robôs e computação, que trata de sistemas compostos por partes mecânicas automáticas e controladas por circuitos integrados, tornando sistemas mecânicos motorizados, controlados manualmente ou automaticamente por circuitos elétricos.

Inteligência artificial
Inteligência artificial (por vezes, mencionada pela sigla em inglês AI – artificial intelligence) é a inteligência similar à humana exibida por mecanismos ou software. Também é um campo de estudo acadêmico.

Matéria: Camila Marins (Jornalista Fisenge)

Crédito Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas