“Essa concepção de que o sistema previdenciário é deficitário surge de uma visão financista e privatista da previdência”, afirma especialista

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O governo de Michel Temer sinalizou uma proposta para a reforma da previdência que representam retrocessos para o conjunto de trabalhadores, como a unificação das regras de aposentadoria e a equiparação de tempo de aposentadoria para homens e mulheres. Em entrevista à Fisenge, a economista, Maria de Fátima Lage desmonta a tese sobre o déficit do sistema previdenciário. Maria de Fátima também é doutoranda em demografia pelo CEDEPLAR-UFMG e técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).

Fisenge: Há muito se fala em déficit e “rombo” do sistema previdenciário. No entanto, há vários estudos que desmontam essa tese. De onde surge essa concepção e por quais motivos?
Essa concepção de que o sistema previdenciário é deficitário surge de uma visão financista e privatista da previdência, muito comum entre os interessados em um promissor mercado de seguros privados e entre governantes que almejam ter acesso a uma maior parcela dos recursos públicos para os seus projetos políticos. Mas essa concepção que, infelizmente, vem ganhando força na sociedade, está em desacordo com a nossa Constituição que, em seu artigo 194, define a Previdência como parte integrante do conceito de Seguridade Social, junto com os direitos relativos à Educação e à Saúde. Como tal, a Previdência deve ser financiada em base tripartite, na forma de contribuições provenientes dos trabalhadores, dos empregadores e tributos gerais, arcados por toda a sociedade. Considerando essa ampla e diversificada base de financiamento, o orçamento da Seguridade Social é e sempre foi superavitário, não havendo porque suprimir ou restringir nenhum direito previdenciário adquirido pelos trabalhadores.

Fisenge: Quais as fontes de financiamento da Seguridade Social?
Segundo o artigo 195 da CF, a Seguridade Social deve ser financiada mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; das contribuições sociais do empregador, incidentes sobre a folha de salários, a receita ou o faturamento; e o lucro; das contribuições do trabalhador e dos demais segurados da previdência social; das receitas de concursos de prognósticos; e das contribuições do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. O problema é que o orçamento concebido nessas bases constitucionais nunca foi cumprido pelo governo. Sempre houve muita renúncia fiscal, muita desoneração e muita desvinculação de receita próprias da Seguridade Social para uso em outros fins que não as políticas sociais. A maior de todas é a DRU – Desvinculação de Receitas da União que leva 20% das receitas da Seguridade e agora o governo quer aumentar para 30%, até 2023.

Fisenge: O governo interino anunciou uma possível reforma da previdência. Quais serão os impactos? E as mulheres?
Na realidade, o governo ainda não apresentou nenhuma proposta concreta para discussão e negociação com a sociedade e o Parlamento. Mas com certeza, dado o perfil ideológico da equipe econômica que está conduzindo esta discussão e os compromissos assumidos pelo governo interino com a agenda da estabilização e do ajuste fiscal, virão propostas no sentido de fixar uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, reduzir a diferença hoje existente entre homens e mulheres e entre trabalhadores rurais e urbanos para a contagem do tempo de contribuição; desvincular o piso de benefício da previdência do salário mínimo, revisar regras de acesso à pensão por morte, acúmulo de benefícios, entre outras. Os impactos desse tipo de medida, obviamente, são sempre muito negativos para os trabalhadores. O Brasil, em função de suas múltiplas desigualdades, não tem um mercado de trabalho e nem uma população homogênea. Os trabalhadores rurais, por exemplo, têm em média uma expectativa de vida menor do que os trabalhadores urbanos, começam a trabalhar mais cedo e em condições bem mais adversas, recebendo inclusive um salário menor pelo seu esforço. A inclusão desses trabalhadores no sistema, com as “vantagens” conhecidas foi, na verdade, uma tentativa dos constituintes de reparar parte dessas distorções que ainda persistem, apesar dos lentos avanços. Logo, tratá-los como os demais, não me parece justo. A mesma coisa acontece com as mulheres. O bônus de 5 anos para a contagem do tempo de aposentadoria foi dado pelo legislador por causa da discriminação em relação às mulheres no mercado de trabalho e pela dupla jornada de trabalho que as penaliza, impedindo-as, inclusive, de terem uma trajetória profissional mais sólida. Houve avanços nos últimos anos em relação à condição de inserção da mulher no mercado de trabalho, mas no que tange ao engajamento dos homens e demais membros da família na atividade doméstica a realidade pouco mudou. Mudou pouco também o envolvimento do Estado em políticas públicas que permitam a conciliação do trabalho fora de casa e as atividades domésticas. Desse modo, a mulher continua sendo a principal responsável pelos afazeres domésticos e os cuidados com os filhos, os doentes, os dependentes e os idosos. Subtrair delas esta vantagem” de poderem se aposentar mais cedo, além de injusto, me parece um tiro no pé, porque a resposta será, com certeza, uma queda ainda maior na fecundidade que vai resultar em pressões adicionais sobre o financiamento da previdência no futuro. Ou seja, exatamente o que se quer evitar. A experiência internacional mostra isto. A fecundidade é menor onde as condições de trabalho e as políticas de proteção às famílias e à indução da divisão sexual do trabalho doméstico são menos avançadas. Não está se pensando neste lado da demografia. É ele é muito importante, principalmente num contexto de envelhecimento populacional onde as mulheres serão cada vez mais pressionadas a trabalharem mais com o cuidado dos seus idosos.

Fisenge: Embora o atual governo interino defenda a reforma da previdência, podemos dizer que a reforma da previdência já acontece desde o fator previdenciário?
Sim, porque uma reforma não precisa ser uma mudança radical no modelo de previdência vigente, como fez o Chile, por exemplo, que acabou com a repartição simples e adotou uma previdência quase totalmente privada ou de capitalização. Qualquer mudança nas regras vigentes é uma reforma que a gente costuma chamar de paramétrica, ou seja, mudança de certos parâmetros. Além da criação do fator previdenciário, o Brasil mexeu também nas regras de funcionamento da previdência dos servidores públicos, acabando com a aposentadoria integral para os novos trabalhadores e criando um fundo complementar de capitalização. Este é outro exemplo de reforma paramétrica.

Fisenge: Como estão as negociações no atual grupo de trabalho que discute a previdência no âmbito federal?
No momento foi criado um novo grupo técnico de trabalho, composto por representantes do governo, do setor patronal e dos trabalhadores, por meio do DIEESE, para discussão e aprofundamento do debate. Mas há uma discordância de fundo que a meu ver impede avanços no sentido da construção de um consenso mais abrangente. As centrais sindicais que estão participando da mesa de discussão com o governo já anunciaram que não abrem mão da discussão da previdência no âmbito do conceito de Seguridade Social. Ou seja, elas não reconhecem o déficit e, por conseguinte, não concordam com propostas que signifiquem subtração de direitos para os atuais trabalhadores. As propostas apresentadas são todas no sentido de melhor a arrecadação e a gestão do sistema. Mas essa não é a visão do governo e do setor patronal, como sabemos.

Entrevista por Camila Marins