ARTIGO: O mercado das águas do Brasil, por Bete Santos e Renata Rossi

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O Mercado das Águas do Brasil*

Bete Santos, professora da Escola de Administração da UFBA
betesantos@ufba.br
Renata Rossi, doutora em Administração pela UFBA
renatarossi2011@gmail.com

A escassez das águas tem ocupado a agenda nacional e internacional nas últimas décadas. Cada vez mais, alerta-se para o fato de que o principal motivo de guerra no século XXI será a água e não mais o petróleo. No Brasil, historicamente, a falta d´água nos remete ao Semiárido, à indústria da seca, à pobreza. A escassez das águas tem determinações naturais; porém, cada vez mais, passa a ser associada ao uso predatório.

A falta d´água está se generalizando e passa a ser considerada um fator limitante do desenvolvimento. O Rio São Francisco tem enfrentado uma seca histórica e, ainda assim, empresas de irrigação seguem utilizando técnicas arcaicas e predatórias. São Paulo assustou-se quando Cantareira secou. Entretanto, assim que começou a chover na região, deixou-se de falar em crise, e pouco se fala da relação entre escassez e modelo de desenvolvimento.

No segundo domingo de novembro passado, o jornal Folha de São Paulo publicou matéria na qual a Agência Nacional de Águas-ANA propõe a criação de um mercado das águas no país. São várias as possibilidades de constituição desse mercado, nesse caso específico, isso significa que um ente privado pode comprar de outro a licença para captação de água. Atualmente, é o Estado que concede a outorga ou o direito de uso da água, e ela é intransferível. O pressuposto da proposta é o de que o mercado seria capaz de regular o seu uso. Com isso, pretende-se trazer para o Brasil a experiência de mercado das águas já existente em vários países, a exemplo da Espanha e Austrália.

Não é a primeira vez que se tenta instituir um mercado de outorgas das águas no Brasil. Em 2002, o deputado Paulo Magalhães, do então PFL, apresentou o PL 6.979, que, em seu artigo 20, instituía a possibilidade de transação de “direitos de uso dos recursos hídricos”, em corpos d´água de dominialidade da União. Na época, o PL foi arquivado por pressão do movimento ambientalista.

Agora, é a ANA que propõe um mercado de outorga. Essa seria a melhor alternativa para enfrentar à escassez no País? A quem interessa a criação de um mercado das águas? Esse é um debate antigo e envolve exatamente o velho conflito entre a água como direito e a água como mercadoria. Há quem considere que esses princípios são complementares. Afinal, no Brasil, a água é um bem comum, de uso do povo (e não um patrimônio público ou bem privado), o que impediria a criação de um mercado “perfeito” e nos protegeria de externalidades.

Não estamos discutindo aqui o quão social e ambientalmente justo é a cobrança da água como insumo produtivo. Entretanto, o que a experiência internacional tem mostrado é que o mercado pode não ser a melhor alternativa de regulação, haja vista os conflitos na Bolívia, Argentina, Chile, Canadá, Índia e países da África. A troca ou venda de títulos de direito sobre o uso da água tem resultado, em muitas situações, na constituição de reservas de “direitos”, em especulação em torno de mananciais estrategicamente localizados, além de não coibir o consumo nem reduzir a poluição.

No contexto das sociedades produtoras de mercadorias, quando falamos em água, estamos nos referindo ao hidronegócio e isso em um mercado comandado pelos interesses das “gigantes da água”, devidamente representadas pela OMC, FMI e Banco Mundial.

O que resta, então, ao Brasil (que exporta grãos e carne, ou seja, água), dono da maior reserva de água doce do mundo? Talvez afirmar o princípio de que a escassez das águas não pode ser compreendida como uma oportunidade de negócio e que precisamos romper com o paradigma de que a água é uma mercadoria. Existe sim, conflito, contradição, entre a água como direito e como mercadoria, afinal, o mercado é o locus do mais forte e não exatamente do mais justo.

*Esse texto contou com a contribuição do Prof. Luiz Roberto Santos Moraes, professor titular da UFBA.