A Medida Provisória 998, que altera várias regras no setor elétrico, já provocou a paralisação generalizada de novas contratações para projetos de pesquisa e desenvolvimento nas empresas de geração, transmissão e distribuição. Entre outras providências, a MP confisca 30% do orçamento destinado por lei aos programas de P&D e de eficiência energética, além de deslocar os recursos remanescentes, ainda não aplicados, para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), do governo. Para muitas entidades e especialistas do setor, a medida vai trazer, além de desemprego, perda de conteúdo estratégico para o país.
“A medida, de 1º de setembro, já está promovendo uma parada geral nas novas contratações na área, ameaça projetos em curso e poderá resultar na perda de 15 mil empregos diretos, de mão de obra altamente qualificada”, afirma o engenheiro eletricista e consultor Flávio Luciano Alves de Souza (à esq.).
“Além de representar um retrocesso nos avanços tecnológicos conquistados pelo setor elétrico, o contingenciamento de recursos só vem a agravar e prolongar os efeitos negativos da atual crise, na medida em que coloca em risco milhares de empregos”, alerta manifesto assinado por cinco entidades do setor – Associação Brasileira de Instituições de Pesquisa Tecnológica e Inovação (Abipti), Associação dos Fabricantes Brasileiros de Eficiência Energética (Afabee), Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia (Abesco), Associação Brasileira de Nanotecnologia (BrasilNano), e Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec).
Considerando somente as ICTs (Instituições de Ciência e Tecnologia) públicas e privadas, as entidades estimam aproximadamente 600 mil profissionais, entre pesquisadores e técnicos de apoio. “Sabemos fazer tecnologia para ajudar o país a voltar a crescer, mas, para isso, precisamos manter nossas linhas de fomento e financiamento a projetos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação e Eficiência Energética“, escrevem.
Desvio de finalidade
De acordo com o texto da MP 998, entre 1º de setembro de 2020 e 31 de dezembro de 2025, a aplicação dos recursos em projetos de P&D e de eficiência energética (PEE) deverá observar o limite máximo de 70% do valor total disponível. E os 30% restantes (no mínimo) deverão ser transferidos para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) em favor da modicidade tarifária, ou seja, supostamente para baixar as tarifas. Além desse total, a medida também encaminha para a modicidade tarifária os recursos que destinados aos Programas P&D e PEE ‘represados’ nos caixas das empresas, isto é, reservados mas não comprometidos com projetos contratados até 1º de setembro de 2020 e aqueles relativos a projetos reprovados ou cuja execução não tenha sido comprovada.
A edição de outubro da Carta Abaque, da Associação Brasileira de Armazenamento e Qualidade de Energia (Abaque), cita uma estimativa feita pelo diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), André Pepitone da Nóbrega, de um total de R$ 7,37 bilhões capturados para modicidade tarifária (somando os R$ 4,6 bi já represados dos programas de P&D e PEE, mais 30% dos recursos nos próximos anos, avaliados em R$ 2,77 bilhões), para gerar uma redução de apenas 0,8% (ou R$ 0,50) nas contas de energia.
Para a Abaque, “a mudança da destinação destes recursos, ainda que com um objetivo nobre, configura um desvio de finalidade em uma Política de Estado, comprometendo a continuidade da P&D do setor elétrico no país, com resultados extremamente modestos sobre o valor final da tarifa de energia.” A publicação explica que “os recursos ditos ‘represados’ nos caixas das concessionárias foram arrecadados da sociedade com o objetivo específico de fomentar e desenvolver a pesquisa Nacional no Setor Elétrico e, com isto, gerar conhecimento e tecnologia nacionais, viabilizar Institutos de Ciência e Tecnologia e empresas de base tecnológica, além de gerar empregos de qualidade. Isto tudo, definido por um programa de Estado expresso pela Lei 9.991/2000.”
O governo alegar que os recursos destinam-se à modicidade tarifária trata-se de justificativa demagógica e populista, acredita Souza. A justificativa visa apenas mobilizar apoios à MP junto à população e ao Congresso. Mas, a médio e longo prazo, o esvaziamento da pesquisa e o aprofundamento da dependência tecnológica, adverte, trará maiores custos estruturais ao país, além da perda da autonomia em segmentos estratégicos.
Emendas em favor da pesquisa
A MP 998, publicada no Diário Oficial da União no dia 2 setembro, já está em vigor. Tem prazo de deliberação até 31 deste mês, em Regime de Urgência a partir do dia 17. Recebeu 205 emendas parlamentares, sendo 36 delas relacionadas à lei 9.991/2.000, ou seja, aos investimentos em P&D no setor. Destacam-se 10 emendas com defesa específica aos Centros de Pesquisas, 5 do PT e 5 do PSOL (uma destas subscrita por toda a bancada), que resultaram de um trabalho desenvolvido pela Base Rio do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), que inclui a representação do Cepel no Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ).
A argumentação das emendas parlamentares se fundamenta no fato de o setor elétrico ter uma base altamente tecnológica. Precisa de um conjunto de ferramentas computacionais para operação do Sistema Interligado Nacional, com especificidades locais que devem ser levadas em conta no desenvolvimento de soluções, gerando uma economia de cerca de 22%, quando comparada a uma alternativa não interligada. O modelo proporciona o uso ótimo e múltiplo dos recursos hídricos, segurança elétrica e energética, ao mesmo tempo em que minimiza impactos ambientais. Outras atividades específicas desenvolvidas em Centros de Pesquisas se refletem na redução dos custos da energia elétrica, como por exemplo a questão das perdas comerciais (‘gatos’, fraudes e irregularidades), estimadas em R$ 6,6 bilhões por relatório da Aneel (Ed.01/2019) e um dos maiores fatores de pressão sobre as tarifas. A redução do investimento em pesquisa poderá, assim, levar a resultado oposto à diminuição da tarifa pretendida pela medida provisória.
“Na prática”, alerta o texto das emendas, “a MP representa o desmonte súbito de um ecossistema de inovação que se formou ao longo de duas décadas, que trará consequências previsíveis para o setor elétrico brasileiro. Haverá um aumento gradual da dependência tecnológica do exterior, perda gradual de eficiência, aumento de custos operacionais, refletindo-se em maiores tarifas para os consumidores e perda de competitividade do país.”
Para analisar a medida e produzir o relatório final que irá a plenário, está sendo formada uma Comissão Mista com 12 deputados e 12 senadores. A MP poderá ser aprovada na integridade, ou, mais provável, incorporar alterações e ser devolvida ao governo para consolidação das mudanças propostas pelos parlamentares.
Como era antes da MP
A Lei 9.991/2000, regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), estabeleceu que as concessionárias de distribuição de energia elétrica ficam obrigadas a aplicar, por ano, no mínimo 0,5% de sua receita operacional líquida (ROL) em P&D do setor elétrico e, 0,5% em PEE no uso final. As empresas geradoras e transmissoras não estão obrigadas a investir em PEE; devem direcionar, contudo, todo o 1% de sua ROL para a P&D do setor elétrico.
Esses recursos para P&D, segundo a mesma lei, devem ser distribuídos pelas empresas da seguinte maneira: 40% para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), administrado pela Finep; 20% para o Ministério das Minas e Energia, para custear estudos e pesquisas de planejamento da expansão do sistema energético, bem como os de inventário e de viabilidade para aproveitamento dos potenciais hidrelétricos realizados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE); e 40% para projetos de P&D regulados pela Aneel.
O programa P&D instituído pela Lei 9.991/2000, que a MP agora quer desmembrar, completou 20 anos. Ao longo desse tempo, destinou cerca de R$ 10 bilhões a cerca de 4,5 mil projetos regulados pela Aneel, a um custo médio de R$ 2,2 milhões, gerou 250 patentes, formou milhares de profissionais com especialização e pós-graduação, gerou receitas de impostos para estados e municípios, segundo dados da Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica e Inovação (Abipti) e a Abaque.
“Admitir um custo médio de R$ 3 milhões por projeto para os próximos seis anos não nos parece fora da realidade. Se pudermos admitir esta consideração como razoável, veremos que os recursos retirados do Programa P&D regulado seriam suficientes para a contratação de cerca de 2.500 projetos P&D. Considerando ainda que cada projeto dura, em média, 24 meses, e emprega (mesmo que em dedicação parcial) entre 5 e 10 pessoas, então, está-se falando de mais de 15 mil empregos de qualidade que deixarão de existir; profissionais com alto nível de formação e que executam tarefa sofisticadas; mão de obra estratégica para o desenvolvimento do pais”, adverte a Carta Abaque.
A entidade observa que boa parte dos resultados dos projetos P&D foi incorporada aos processos e rotinas das empresas do setor, promovendo mais eficiência operacional, qualidade e redução de custos para os clientes. Cita, ainda, “o desenvolvimento e/ou introdução de tecnologias disruptivas a seu tempo, como geração eólica, geração solar fotovoltaica, utilização de resíduos sólidos urbanos na produção de energia elétrica, sistemas de armazenamento de energia elétrica, desenvolvimento de tecnologia para suporte e integração de veículos elétricos, etc”. A Carta Abaque aponta, ainda, “expressivos os investimentos na área ambiental, permitindo uma maior integração dos sistemas elétricos com menor impacto ambiental, como o controle de espécies invasoras (como o mexilhão dourado), preservação de espécies nativas (de peixes e aves), redução do impacto socioambiental de reservatórios, redução de emissões de gases de efeito estufa, etc.”
Muitos novos projetos foram desenvolvidos pelo Cepel, o maior centro de pesquisa para setor elétrico da América Latina, assim como pelo CPqD, o Centro de Pesquisas que era vinculado à Telebras, e pelo Lactec, originalmente ligado à Copel. No primeiro ano da lei, 70% dos projetos de P&D da Light foram desenvolvidos pelo Cepel.
Segundo Antonio Carlos Neiva, representante do Cepel no Senge RJ, “a situação do Cepel fica particularmente fragilizada” com a MP. “Na Lei 9.991 consta que as empresas associadas ao Centro podem aplicar recursos de P&D no atendimento de sua obrigação estatutária de aporte de contribuições institucionais para suporte e desenvolvimento do Cepel”, explica. “Na comparação com as universidades, vale lembrar que estas têm seus custos básicos de operação e manutenção, pagamentos de salários, provenientes de outras fontes da área da educação, e os recursos dos projetos de P&D representam um adicional, importante. Mas, no caso dos Centros de Pesquisa, como o Cepel, as empresas mantenedoras faziam os aportes de recursos para manutenção e para suporte de projetos institucionais através deste mecanismo da Lei. Com a aplicação da MP 998 conforme apresentada, o Cepel corre sério risco de fechamento.”
Fonte: Veronica Couto/Senge-RJ