Para resolver situação emergencial — a fila de pedidos de aposentadoria do INSS e do Bolsa Família —, o governo aproveitou a oportunidade para promover uma minirreforma administrativa, editando a MP (Medida Provisória) 922/20, que escancara a contratação temporária, permitindo que o Poder Executivo, bem como outros poderes e órgãos, possam fazer uso dessa para contatar pessoal sem concurso e sem estabilidade.
A MP altera a Lei 8.745, de 1993, que dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do artigo 37 da Constituição Federal, hipótese em que também se aplica à Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União. Embora se destine prioritariamente ao Poder Executivo, nada impede que outro Poder possa valer-se da lei para também contratar nas áreas mencionadas pela mesma modalidade de contrato.
Ampliação do escopo
A contratação temporária, que deveria ficar limitada às situações realmente de excepcional interesse público, teve seu escopo ampliado pela MP. De tal modo que alcança diferentes situações, sendo algumas dessas de caráter emergencial, e outras sem esse caráter, como as que estão associadas ao aumento temporário do volume de trabalho, como as atividades de tecnologia da informação, de comunicação e de revisão de processos de trabalho, incluindo a contratação de pesquisadores e técnicos para o desenvolvimento de produtos e serviços em projetos com prazo determinado, e até atividades relacionadas à redução de passivos processuais.
Se aprovada nos termos propostos, a ampliação da contratação temporária autorizada na MP 922, combinada com a terceirização irrestrita já em vigor desde a gestão Temer, dá ao governo Bolsonaro plenos poderes para contratar temporariamente em diversos setores, prescindindo da contratação permanente. E, em muitos casos, até mesmo dispensando-o da realização de processo seletivo.
O recrutamento, no âmbito da contratação temporária, que ficará limitado aos poucos casos em que não for classificado como emergência, será feito por processo seletivo simplificado, sem concurso público, e, dependendo da área, o contrato temporário poderá ter duração de 6 meses a 4 ou 5 anos, com possibilidade de prorrogação de 1 ano. Mas, em pelo menos 1 caso, os contratos poderão vigorar por até 8 anos!
Entretanto, quando se tratar de calamidade pública, emergências em saúde pública, em crime ambiental, em questão humanitária e situação de iminente risco à sociedade prescinde-se de processo seletivo, cabendo ao governo promover a imediata contratação, sem qualquer outra exigência de natureza legal.
Contratação de aposentados
Além disso, a MP prevê que poderão ser contratados servidores aposentados para exercer atividades temporárias de excepcional interesse público, nas alargadas hipóteses propostas pela própria MP.
Com isso, essa rompe não somente com o princípio do amplo e livre acesso a cargos, empregos e funções públicas, e que não se coaduna com a reserva de vagas para quem tenha sido servidor público, como gera uma situação de exploração de servidores que, ao reingressarem, passaram a receber apenas 30% da remuneração a que faria jus outra pessoa não detentora daquela condição.
A analogia com a situação dos militares, que têm na Lei 13.954, regulada pelo Decreto 10.210, a previsão de que poderão ser contratados para o desempenho de atividades de natureza civil em órgãos públicos em caráter voluntário e temporário, fazendo jus a adicional igual a 3/10 da remuneração que estiver percebendo na inatividade, não serve como base a tal solução, pois a Lei 13.954 é inconstitucional, à luz do artigo 37, II da CF.
Nesse sentido, o procurador do Ministério Público no TCU ingressou com representação para declaração de inconstitucionalidade da regra, que sequer atende ao artigo 37, IX da Constituição.
Em diversas ações de inconstitucionalidade, o STF decidiu que, para que se considere válida a contratação temporária, é preciso que:
1) os casos excepcionais estejam previstos em lei;
2) o prazo de contratação seja pré-determinado;
3) a necessidade seja temporária;
4) o interesse público seja excepcional; e
5) a necessidade de contratação seja indispensável, sendo vedada a contratação para os serviços ordinários permanentes do Estado, e que devam estar sob o espectro das contingências normais da Administração.
No caso de atividades permanentes, em que haja insuficiência de pessoal, ou mesmo no caso de criação de novos órgãos ou entidades, admite-se a contratação temporária, mas por prazo suficiente à formação de quadro de pessoal suficiente, mediante a realização de concurso público (ADI 3.068-DF, julgada em 2004).
No caso da MP 922, e sem respeitar os requisitos de validade para a contratação temporária, conforme definidos pelo STF, o que se tem é uma situação de discriminação em relação à situação de normalidade, em que quem é o contratado faz jus a remuneração integral, equivalente à de cargo efetivo similar ao cargo temporário ocupado.
O aposentado, ao ocupar a vaga, que deveria ser provida por concursado, ou mesmo aberta à livre competição entre os interessados, no caso de processo seletivo para contrato temporário, estará recebendo menos de 1/3 do que seria devido, pelo mesmo trabalho.
Sem concurso público
O governo, portanto, aproveitou a edição da MP para incluir todas as possibilidades de contratação de pessoal que necessite ao longo dos próximos anos, livrando-se do concurso público e da contratação permanente, e contratando pessoal sem estabilidade, o que aumenta a vulnerabilidade do servidor a pressões indevidas no exercício de suas atividades.
Deste modo, promove uma Minirreforma Administrativa na medida em que fica autorizado a contratar temporariamente em diversas áreas, incluindo pesquisadores, professores, profissionais de saúde, nacional ou estrangeiro, e pessoal da área de tecnológica (leia-se automação e digitalização de serviços públicos) ao longo de todo o mandato, e que contraria princípios elementares da Administração Pública.
Antônio Augusto de Queiroz e
Luiz Alberto dos Santos*
(*) Jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Púbicas”.
E doutor em Ciências Sociais, mestre em Administração Pública, advogado e consultor legislativo do Senado Federal. É professor da Ebape-FGV e da Enap. Ex-subchefe da Casa Civil da Presidência da República.
Foto: Jonas Pereira/Agência Senado
Fonte: DIAP