Sistema de fornecimento de energia elétrica das usinas do Rio Madeira é leiloado e consórcio vencedor favorece mercado externo. José Ezequiel Ramos, engenheiro eletricista, secretário-geral do SENGE-RO e diretor da FISENGE, destaca, em entrevista concedida ao Jornal do Engenheiro, do Senge-RJ, outros erros cometidos no leilão do Linhão Porto Velho-Araraquara.
Por Julia Affonso*
Os dois mil e quatrocentos quilômetros que atravessarão o Brasil, de Porto Velho à Araraquara, por meio das linhas de transmissão de energia elétrica das usinas do Rio Madeira foram a leilão no último dia 26 de novembro de 2008. Cortando os estados de Rondônia, Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo, o Linhão será um dos maiores e mais modernos sistemas de fornecimento de energia elétrica do mundo e permitirá o gerenciamento da eletricidade excedente e dos picos de demanda do país. Esse sistema, que deverá ser construído até 2013, foi posto em leilão pela ANEEL, na época, com duas alternativas de transmissão: a corrente alternada e a corrente contínua. O consórcio que adquirisse a licitação construiria o linhão baseado em uma das duas tecnologias.
O processo de estudo dos sistemas, feito pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), procurava detalhar as alternativas de ambas as tecnologias. No entanto, de acordo com José Ezequiel Ramos, isso não aconteceu. A EPE estudou e detalhou somente a transmissão em Corrente Contínua, deixando as alternativas em Corrente Alternada e Corrente Híbrida (uma transmissão que usa os dois tipos de alternativa: um trecho em transmissão Alternada e outro em Contínua) de lado, renegadas a análises superficiais. Em entrevista ao Jornal do
Engenheiro (do Senge-RJ), ele explica, além dos problemas do leilão, o lado antinacionalista e antidesenvolvimentista do uso da Corrente Contínua, fazendo um paralelo com o modelo concentrador de renda.
– Quais são os principais problemas desse leilão?
Esse leilão foi , no mínimo, estranho, pois todos já sabiam que a alternativa em Corrente Contínua (CC) seria a de menor custo. Para transmissões acima de 800 km, devido as suas particularidades, a Corrente Contínua é a alternativa mais barata. Os conversores CA/CC e CC/CA são muito mais caros do que uma subestação convencional de Corrente Alternada (CA). No entanto, a linha de transmissão, por usar somente dois pólos, ao invés de 3 fases como é a CA, torna-se mais barata para longas distâncias. Como se tem dito no setor, se não desse CC nesse leilão, poder-se-ia enterrar a transmissão em corrente CC, já que a transmissão do Madeira será a maior do mundo, com cerca de 2400 km de extensão. Então, se ela não fosse a de menor custo, nunca mais um sistema em CC seria utilizado para transmissão de energia. Quem estabelece as diretrizes para o setor elétrico é o Ministério de Minas e Energia (MME) e como a energia elétrica é um vetor fundamental para desenvolvimento de uma nação, o MME já deveria ter definido, a priori, a melhor alternativa para o país, considerando todos os aspectos envolvidos, quais sejam:
a) alternativa mais econômica (e não a mais barata);
b) a inserção regional, como aquela que pode reduzir as desigualdades entre as Regiões do país;
c) a alternativa que melhor se adequa às incertezas do planejamento do setor elétrico, etc.
A alternativa CC é a mais barata, mas a alternativa CA, além de ser a mais adequada, considerando os argumentos mencionados anteriormente é, também, a mais econômica, pois o preço da CC foi de cerca de R$ 7,2 bilhões e transmite cerca de 6.000 MW, enquanto que o preço orçado da CA seria de R$ 9 bilhões, mas transmitiria cerca de 9.000 MW. Portanto, o preço da CA é cerca de 20% mais barata, considerando as capacidades de transmissão dessas duas alternativas. Esses aspectos o MME não considerou.
– Por que o consórcio sobre a Corrente Contínua ganhou o leilão?
Como foi mencionado anteriormente, a alternativa CC é a de menor preço e, como os leilões só consideram esse critério, deu o que tinha que dar. Para agravar ainda mais esse processo, os estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) detalharam somente a alternativa CC, dispensando pouco tempo para as alternativas em CA. Por exemplo, a alternativa híbrida, um bipolo em CC e um sistema CA de 500 kV em paralelo, não foi otimizada. Como praticamente somente as empresas do Grupo Eletrobrás concorreram ao leilão, na fase de escolha de tecnologia, sequer houve lance para um dos trechos de 500Kv. Sendo assim, a alternativa CA não foi considerada na segunda parte do leilão. Portanto, fez-se o que no setor estamos chamando de um ‘leilão autorizativo’, ou seja, como o modelo só permite uma nova concessão através de leilão, e como houve somente um grupo interessado, legalizou-se uma autorização a este grupo, praticamente sem concorrência. Outro aspecto bastante importante é que as empresas do Grupo Eletrobrás participam efetivamente dos estudos elaborados pela EPE e, portanto, têm informações privilegiadas do empreendimento.
– A tecnologia da Corrente Contínua favorece o modelo concentrador de renda? Por quê?
A questão macro que envolve o assunto é: que país queremos para os próximos anos e décadas? Uma região com índices de qualidade de vida de primeiro mundo e outras regiões periféricas fornecedoras de infra-estrutura e marcadas para o subdesenvolvimento perene? A transmissão em CC, por ser do tipo ponto-a-ponto, não permite correções no rumo do planejamento. A CC cortará as Regiões que mais crescem no país [Norte e Centro-Oeste] e não irá contribuir para sua infra-estrutura. Outro ponto importantíssimo é que o ICMS da energia elétrica é cobrado no centro consumidor e a linha vai de Porto Velho a Araraquara. Somente o Estado de São Paulo ficará com esta arrecadação. Esse é apenas mais um aspecto que prova que, com a alternativa CC, o ônus ficará para Rondônia e o bônus para a Região mais rica do país [Sudeste], concentrando ainda mais a renda.
– Quais as vantagens que o país poderia obter caso o consórcio da Corrente Alternada tivesse ganhado o leilão?
A questão que envolve o planejamento elétrico de um país é muito mais abrangente do que se fazer um leilão considerando somente o ‘custo mínimo’ de uma transmissão. Ao se considerar esse modelo, nem seria necessária uma empresa para o planejamento de longas transmissões, pois já se sabe de antemão que transmissão será esta. Muitas coisas têm que ser analisadas: a inserção regional, possibilidades de alterar o planejamento devido às incertezas do crescimento das regiões, a participação da indústria e empreiteiras nacionais e locais, a alternativa mais econômica, etc. Como os conversores CA/CC/CA da CC serão importados, estaremos transferindo emprego para outros países. Logo nesse momento em que existem grandes aflições quanto a esse aspecto. Além do mais, o BNDES financiará grande parte desse empreendimento e, portanto, também financiaremos empregos em países como Suécia, Inglaterra e Alemanha. Ressalta-se que o ‘financiamento brasileiro’ para o emprego no exterior deverá girar em torno de 2 a 3 bilhões de Reais.
– O país ficará dependente da tecnologia estrangeira, uma vez que utilizará equipamentos fabricados fora do país?
A parte de eletrônica de potência dos conversores CA/CC/CA serão totalmente importados, visto que a indústria brasileira não fabrica e tudo indica que nunca fabricará tais componentes. Como em média, a cada 5 anos um componente desses tem que ser substituído, cremos que ficaremos dependente da ‘boa vontade’ alheia para sermos eficiente na transmissão do Madeira. Isso o MME também não levou em consideração ao permitir a transmissão em CC.
– Quais são os danos que o Linhão pode causar ao meio ambiente?
Em condições normais de operação da transmissão, não se pode afirmar que existem diferenças devido a tensão para a CA ou para a CC. Entretanto, um problema preocupante para a CC é a modalidade de retorno pela terra. Esta situação ocorrerá quando um dos pólos da linha de transmissão falhar, acarretando corrosão eletrolítica em partes metálicas de gasodutos, oleodutos, tanques de postos de gasolina, interferência telefônica, ao longo da rota, e deterioração do terreno onde serão instalados os eletrodos de terra (dois próximos a Porto Velho e dois a Araraquara). Quando a corrente CC estiver circulando pelos eletrodos, também poderá ocorrer a ‘vitrificação’ do solo e o aparecimento de tensões de passo e toque elevados que podem causar morte nessa localidade. Para evitar isso, a respectiva área é cercada e a circulação de pessoas proibida nesses locais. O problema é que Rondônia não irá se beneficiar dessa transmissão e ficará com mais esse ônus, pois cada área para o eletrodo será de cerca de 200 campos de futebol, e deverá ser próxima a Porto Velho, ou seja, numa área relativamente nobre considerando a evolução da cidade. Portanto, essa área deverá ser muito bem escolhida pelo consórcio ganhador do leilão e a comunidade, pois ela poderá trazer problemas no futuro.
* Julia Affonso é estudante de Jornalismo e estagiária do Senge-RJ.
Imagem: Coordenadoria de Assistência Técnica Integral/ SP