Que as mídias, inclua-se aí as chamadas redes sociais, converteram-se em vetor constitutivo das realidades sociais é fato incontornável; que são responsáveis por organizar e hierarquizar a agenda de debates, definindo as prioridades temáticas que incidem no espaço público ninguém mais duvida.Não é sem propósito que anotações de pesquisadores de diversos canteiros teóricos convergem para uma constatação inevitável: com o enfraquecimento de instituições e discursos antes ordenadores do tecido social, os sistemas de informação infundem-se como protagonistas na promoção de laços sociais, de partilha, porque agenciadores dos regimes de visibilidade em voga. Acentua essa tendência, o fluxo ininterrupto de recursos imagéticos a que somos submetidos pelos múltiplos canais de comunicação, onde artefatos diversos jorram nas telas (de TV, do computador, dos celulares) e em outros suportes. Decididamente, somos banhados nas imagens que se põem à nossa frente e com elas redefinimos as identidades fluidas que nos habitam. Lembremos: a etiqueta “civilização da imagem” já serviu para dar conta dessa realidade.
Tornou-se moeda corrente a afirmação que reza vivermos numa época marcada pelas tecnologias do visual com imagens de vários matizes hiperpovoando o mundo. Desde o traço mais antigo, desde os desenhos nas paredes de Lascaux até às efêmeras produções digitais, a imagem afigura-se como polo de atração para as trocas sociais. A superabundância de “dispositivos do olhar” torna o mundo legível porque visível; irrevogavelmente, jornais, revistas, outdoors, busdoors, telas eletrônicas e digitais tornaram-se parte indissociável e marca fundamental da paisagem cotidiana.
Lipovestsky diz que a era do vazio, essa em que vivemos, é a era da comunicação como forma de contato, expressão de desejos, emancipação do jugo utilitário, preponderância da forma. A profusão de imagens, insistem os teóricos da hipermodernidade, corresponde a uma época desregulada, saturada, protuberante, hiperbólica, transbordante.
Como era de se esperar, essa inelutável realidade confere novos atributos à dinâmica social, pondo em relevo dimensões-chave das mudanças de que somos testemunhas, tocando em cheio no coração daquilo do que é designado hoje como poder. Lançando mão da frase que encabeça este artigo, “toda imagem do poder funda-se sobre o poder da imagem”, inquirimos: de que modo podemos tomar o repertório de imagens que circulam cotidianamente como um manancial para examinarmos tópicos como representação, identidade/ identificação, poder e outras derivadas? Em que medida as imagens subscrevem e reforçam os portadores de poder e os que são dele destituídos? De que modo podemos reivindicar do jornalismo uma outra gestão da imagem de grupos historicamente discriminados, já que enseja processos discursivos que fundam os quadros de referência de que se alimentam as representações sociais?
Num mundo em que “ser é ser percebido” (esse est percipi), como afirmou Georges Berkeley, o poder que a imagem nos confere, ainda que volátil, é um poder que seleciona e recorta padrões, que institui ideais culturais, portanto, é um poder que ao tornar visível, hierarquiza o visível e invisibiliza. É um poder em conluio com a noção de ideal de eu, a instância psíquica que acompanha a cada um de nós ao longo da vida enquanto figura do que devemos ou desejamos ser; outorga primazia a seletivos campos cognitivos, a vetores que nos orientam na apreensão ou percepção do mundo.
Nessa sociedade hiper, protuberante, transbordante, tudo ou quase tudo parece se render à lógica das aparências e do espetáculo (o facebook que o diga). Sem muitas resistências, o jornalismo, atividade capital das mídias, já acedeu a essa lógica faz tempo. Porta-voz dos ideais de pluralidade e democracia, tece seus discursos conforme a tendência do mundo contemporâneo.
Mais do que zelar pela coisa pública, dever responsável pela sua fundação, o jornalismo manufatura suas notícias levando em conta a chamada sociedade da sensação, onde as imagens desempenham papel preponderante. Segundo Muniz Sodré, “o que conta aqui não é a opinião argumentada, mas a opinião emocional ou afetual” (o que justifica o fato de os selfies do presidente Barack Obama com o primeiro-ministro David Cameron e a premier dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt no velório de Nelson Mandela renderem mais comentários do que a imagem marcante que flagra Obama cumprimentando o líder cubano Raúl Castro – acontecimento que inegavelmente interessa à política mundial. Com o primeiro feito, o presidente americano entrou no trending topics mundial do Twitter.
Alguns lances de reflexão sobre o poder, à luz de sua visibilidade, talvez nos forneça alguns endereços de provisórias respostas para esses deslocamentos na esfera jornalística.
O poder e sua encarnação midiática
O pluralismo ideológico-politico e a abertura da mídia certamente relativizam o poder. Graças à imprensa em geral, a interlocução entre poder e opinião pública se torna maior e leva os representantes políticos a se expor mais, posto que desejam ser ouvidos/vistos e são forçados a se mostrar. A representação por imagens (fotos, paginação de jornal impresso, imagens jornalísticas na televisão e na internet) se torna absolutamente central: o que a mídia irradia não é apenas o que ela representa, dá a ver e a entender; é a própria luz, aquilo que permite ver: fora das mídias, o mundo em torno de nós cessa de existir. Assim como o sol é a energia do visível, o que dá a ver, dele vem a luz, a condição/causa incontornável da visibilidade, as mídias permitem ver o poder, vetorizam seu sentido, seu valor e sua força, ao mesmo tempo em que são o emissor, o holofote sem o que não há, hoje, o que enxergar. Mais do que o poder absolutista, cuja luz provinha de outro poder maior, dela emana o próprio poder. Inegavelmente, o poder de visibilidade se deslocou e muito: o que dependia em primeiro lugar da encarnação do poder, da afixação de si, é hoje sujeito a outras leis, a serviço de redes e órgãos, em grande parte privados, que dispõem do visível, determinam a cota do visível que darão ao poder, o encaixam e organizam conforme padrões próprios, dentro de paradigmas de mercado que tendem globalmente a privilegiar o status quo social.
Mas toda essa engrenagem é posta em funcionamento sob o verniz do pluralismo de vozes. Parte significativa do espaço/tempo que a imprensa dá aos assuntos que nos concernem (família, religião, trabalho, moradia, transporte, lazer, relações pessoais de todo tipo), seja em formas jornalísticas, seja em formas ficcionais ou em outras modalidades de narrativas verbo-visuais, nos leva a acreditar, a título de ilustração, que pobres e ricos coexistem tranquilamente, que falas entre grupos sociais distintos hierarquicamente fluem sem que escondam injustiças. Normalmente, tais narrativas não põem em discussão a convivência, como que normalizada, de categorias sociais frontalmente subalternizadas com camadas privilegiadas.
Embora a civilização do poder “naturalmente encarnado” e ostensivo nos seus aparatos (dinastias, elites de privilégios) tenha sido esquecida, o poder de apresentação das mídias, em termos bem genéricos, não expõe nem torna visível o poder que deveria – em conformidade à ordem democrática – ser das maiorias, transformando o convívio social. Certos deslocamentos do poder de tornar visível abrem espaços mais do que apreciáveis à critica, à revolta e à oposição, todavia normalizam e banalizam tanto o mundo do dinheiro e do interesse, o fosso entre trabalho manual e intelectual que o tornam invisível. Mazelas do nosso mundo são evidenciadas, mas parece, se formos realistas, que servem mais, de modo extremamente equívoco, a servir de biombo, enquanto denúncias, à lógica da venalidade e do lucro, de disparidades sociais generalizadas. A luz cria sombras e não parece exagerado dizer que as sombras continuam imensas, indevassáveis. Nestas sombras, corpos de homens e mulheres negros reivindicam outra visibilidade, a visibilidade que empodera e humaniza.
As novas mediações e o estatuto do poder
Essas mudanças, verdadeiras transfigurações, não são evidentemente pensáveis sem o papel fundamental que as mídias desempenham na visibilidade do poder, em que a imprensa escrita teve durante “longo século” papel primordial. O modo pluralista (jornais de várias tendências), que se pode dizer sistêmico, os conteúdos críticos da imprensa, a interpelação junto ao poder público de que a mídia é fonte ou mediação (representando grupos sociais) serviram ao longo do tempo para consolidar e tensionar a democracia.
Pensando na corporalidade desse poder, não é difícil detectarmos que ele aparece diretamente visível, em pessoa, nas imagens das coberturas televisivas e online quando, por exemplo, uma personagem pública faz uma declaração, participa de um evento e de campanhas eleitorais, dá entrevista ou, por fim, dá oportunidade à assunção de um fait-divers (caso amoroso ou algo assim) não fosse pública a função exercida.
A face, o jogo corporal, a voz, tudo se torna familiar. Uma relação quase íntima pode se estabelecer: a presidenta pode chorar na nossa frente, sua voz pode-se embargar. Surpreendemos sorrisos, confabulações com o ministro que está ao lado, olhares de admiração para formas femininas, amuos entre cônjuges em cerimônias oficiais, caretas de desconforto entre presidentes rivais. De um lado, a pessoa pública permite-se ser mais “humana”, do outro, ela não pode escapar sempre às câmaras onipresentes e escrutadoras. O poder se aproxima: assistimos a representantes parlamentares trocando injúrias e socos e, no mesmo lance, o poder se confirma, se reafirma: a imagem da autoridade em questão realça sua importância. O cargo e a função exigem realce, a fotografia ou a cena fílmica podem mostrar um poder pungente ou hilário. A instituição encarnada existe, mas sua visão cotidiana – sua visibilidade vulnerável – tende a desconstruir o caráter sagrado do poder.
Alguns lances históricos
Poder e visibilidade é binômio que remonta ao século XVII e lembra a figura do rei sol, Louis XIV, e outras cortes absolutistas onde a figura do poder se mostra, onde ser visto, contemplado e reverenciado evidencia e exalta a supremacia de “quem manda e de quem pode”; onde os cerimoniais existem para projetar a figura do poder em torno de algumas eminências (incluindo alto clero, que falta em modéstia e humildade). Quanto mais próximos dos poderosos, mais podemos ver junto a ele senhores, prelados etc., participando da áurea desse sistema estelar.
Nobres sempre escoltados, sempre vestidos em roupas que os marcam, a distribuição dos bancos nas igrejas e nas procissões, andar a pé, de carruagem, a cavalo, o poder dos estamentos se mostra, se desprega em público e os populares fazem da ostentação dos seus superiores privilegiados uma fonte de alegria, deleite e até de deboche. É uma ordem “natural”, mas ostentada para se firmar. Não é, porém, apenas a figura e a figuração dos expoentes que expressa o poder, que se expõe ao olhar, mas toda sociedade acede a esses trejeitos, que lentamente se deslocam da ordem estamental de cerimônias e rituais, da norma das preeminências e da hierarquia.
A outra marca do poder visível, além das grandes festas, celebrações e cerimônias são evidentemente os monumentos erigidos para manifestarem o desejo de glória (Versailles, é exemplo adequado). São evidências da preeminência, da soberania que demonstram, justamente, grandeza e força. As cerimônias celebrativas e comemorativas das festas nacionais se arrastam até hoje, no papel de ostentar, oficializar e legitimar o poder pela sua estética visual e sonora.
Imagens do poder e homens públicos
Vários fatores históricos e socioeconômicos (a democratização das sociedades ocidentais, essencialmente, a formação de uma opinião pública e de uma sociedade civil baseada no direito e no mercado) fizeram com que a tradução visível do poder se modificasse totalmente. Pensemos em figuras como o presidente Barack Obama, François Hollande ou mesmo de Lula, ilustrações expressivas, sem dúvida. O exercício “visível” do seu poder atua em conformidade com um novo padrão: tudo o que havia de hierárquico nas posturas dos dominantes não simplesmente desapareceu, mas está na lógica atual contrariar as antigas marcas da “eleição privilegiada”. Obama aparece nas tribunas leve e solto; o presidente norte-americano se mostra, por meio de gestos e falas calculadas, simples, direto, coloquial nos gestos e na postura. O presidente francês, por sua vez, fez profissão de fé pública de despojamento, quase que de humildade, um homem cujo poder não afeta a simplicidade ostensiva estampada no esgar e nas atitudes. Poderíamos fazer comentários semelhantes a propósito do ex-presidente Lula: seu tom e estilo nos palanques e nas entrevistas refletem e representam geralmente o homem do povo, falando de igual para igual; Lula tem, aliás, uma irresistível pulsão em se aproximar fisicamente dos que o cercam, em tocar os seus interlocutores, quando não em abraçá-los (o homem de poder tradicional marca a distância que simboliza a distinção e facilita com isso o mando).
O homem de Estado democrático, os representantes eleitos, tendem, já há tempo, a apagar mediante ao público, às plateias, os traços que outrora significavam, não o podemos esquecer, a sacralidade do poder. O poder se aproxima do povo constitucionalmente soberano, e arrisca se banalizar ao tornar expressiva essa soberania representada (nos dois sentidos, de delegação de poder e de encenação) de que se torna simbolicamente o mero porta-voz. O que essa mudança de estatuto do poder, em face nos regimes de visibilidade, tem a nos instruir quando pensamos na pedagogia dos signos que circulam infatigavelmente? O mero registro aparências dos nossos tempos, que perdeu a força transcendente que haviam possuído, tem caráter pedagógico para a visibilidade do poder.
Imagem, poder e jornalismo
Ora, as substantivas mudanças de produção e propagação de imagens do poder, as estratégias para ganhar visibilidade (em excesso), o incessante investimento nas aparências e no capital afetivo/subjetivo – efetivadas em função dos novos/outros estatutos que redefinem os códigos sociais – não atingem somente as raias do poder político stricto sensu. Por extensão, agem prodigiosamente entre nós, cidadãos comuns, “pobres mortais”, impelidos que somos a nos mostrar cada vez mais e mais, a falar, sem cerimônias, da vida privada, de revelar intimidades (um gigantesco banco de imagens de pessoas anônimas desfila em nossa frente nas redes sociais, a manifestação dos estados de espírito/emocionais banalizou-se em alto grau [o tal do “se sentindo isso ou aquilo” no facebook]). Tudo isso joga com os novos padrões relacionais emergentes e se alojam nas máquinas de discurso da atualidade de modo a provocar rearranjos monumentais naquilo que outrora chamávamos de interesse público. O jornalismo é um exemplo bem acabado desse processo.
Numa sociedade em que o princípio da transparência, herdado da ideologia das Luzes, tornou-se condição sine qua non para a construção da democracia, o jornalismo converteu-se termômetro para medir os valores modernos. A especificidade do relato jornalístico é da ordem do, digamos, “compromisso social”. É o ato de fundação da atividade jornalística que confere a ela singularidade: filho legítimo de duas Revoluções, a Industrial e a Francesa, o jornalismo institui-se como prática ligada aos ideais de emancipação, transparência, pluralismo e modernidade.
Quer nos parecer que desses ideias da atividade noticiosa restou apenas o desejo por transparência, mas não aquela que é indispensável para o espírito republicano; trata-se de um tipo de transparência bisbilhoteira e superficial. Ainda no encalço de Muniz Sodré: “Com os desdobramentos tecnológicos da mídia massiva, deu-se um alargamento da esfera pública, mas apenas em suas dimensões materiais ou funcionais, sem real correspondência histórica com o que antes significavam política e cultura para a consolidação da república burguesa. O funcionamento do que se chamou “indústria cultural” não exigia mais do que a eficácia dos fluxos informacionais e a mobilização da atenção pública pela retórica diversificada do entretenimento”.
Sem a musculatura que lhe deu força inicial para a formação da esfera pública, o jornalismo ganha sobrevida no cenário contemporâneo pela via da sensação, emitindo uma torrente de estímulos com imagens que não cessam, que não se esgotam, que não param de brilhar à nossa frente. Uma plataforma que se retroalimenta do hipernarcisimso, do gosto pelas novidades, da promoção do fútil e do frívolo (lembremos novamente do selfie do presidente Barack Obama no velório de Nelson Mandela) e da supremacia da ideologia hedonista dá sentido à avalanche de notícias que nos são ofertadas como importantes. Depomos nos olhares nessas imagens, que anunciam os acontecimentos ordinários e tecemos nova visão recortada do mundo. A transparência do mundo é correlata, nos dias de hoje, ao acesso a imagens que primam pelas aparências.
Retomando os nossos questionamentos iniciais: em que isso estabelece laços de vizinhança com as identidades e representações sociais? No estoque infinito de imagens, homens e mulheres negros ainda são desprovidos de poder, porque ainda fixados a padrões imagéticos que os aprisionam em lugares plenos de destituição de sua humanidade. O ideal do eu, a instância psíquica que acompanha a cada um de nós ao longo da vida enquanto figura do que devemos ou desejamos ser, conforme já assinalamos, se forma e cristaliza via imagens, distribuindo poder a quem é portador de signos capazes de representá-lo (de beleza, de felicidade, de austeridade, de inteligência…). Corpos de Claudia Silva Ferreira, de crianças vendidas como escravas no site de vendas Mercado Livre, de jovens, em sua maioria negra, acorrentados a postes nas grandes cidades do país nem remotamente carregam os índices desses ideais culturais de que a imprensa se nutre para a visibilidade do mundo. Ao pluralismo de vozes no jornalismo deve corresponder o pluralismo de imagens, para que os regimes de visibilidade que orientam a publicidade de homens e mulheres negros não sejam regimes de exceção. Afora jogadores de futebol e artistas, a visibilidade do poder ainda se encarna em corpos que, mesmo desapegados do poder sagrado de outrora, tem a inscrição de signos que reafirmam o humano; signos esses sistematicamente subtraídos da população negra nos dispositivos imagéticos que chegam até nós (pautas sobre comportamento, política, ciência flagram insistentemente a ausência de negros). Portanto, pensar num jornalismo democrático é pensar, antecipadamente, nos pactos estabelecidos para a visibilidade e transparência do mundo.
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[i] Este artigo foi apresentado no I Enjira (Encontro Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial), no 36 Congresso Nacional de Jornalistas, promovido pela Fenaj de 2 a 6 de abril, em Maceió (AL).
[ii] Professora doutora do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), jornalista, pesquisadora em comunicação, educação e relações raciais. Integrante do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), pesquisadora em comunicação, educação e relações raciais na Escola de Comunicações e Artes da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial)e do grupo de Comunicadoras Negras.
Acesse no site de origem: Jornalismo, imagem e poder: repertório para as representações raciais