Romper com os maniqueísmos é fundamental para aprofundar a discussão
Por Camila Marins
Você sabe o que está comendo? A indústria alimentícia desperta uma série de dúvidas e questões a serem problematizadas em diversos campos, como saúde, educação, meio ambiente. O Instituto de Defesa do Cosumidor (Idec) lançou no final do ano passado a campanha “De onde vem?”, com o objetivo de promover a rastreabilidade dos alimentos, uma questão que ainda não foi regulada no Brasil. A prática já existe em diversos países, sobretudo na Europa, que divulga, inclusive, o nome do produtor dos alimentos. Segundo o Idec, o ideial é que as gôndolas dos supermercado indiquem o produto, a variedade, o produtor e o centro de distribuição – quando houver, CPF/CNPJ, endereço, data de produção, lote e se houve uso ou não de agrotóxicos. A engenheira de alimentos e diretora da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), Silvana Palmeira alerta para os maniqueísmos e dicotomias acerca da indústria alimentícia e aprofunda o debate sobre o despertar da autonomia e do empoderamento do cidadão e da cidadã. Com informações de rotulagem e origem dos alimentos pela rastreabilidade, o consumidor pode ter alguma segurança do alimento e também decidir, pelas informações fornecidas, o consumo ou não do produto.
Muitos brasileiros vêm adotando a erradicação de alimentos processados e industrializados. Realmente, estes alimentos prejudicam a saúde?
O radicalismo sempre é um fator que se baseia muito na falta de compreensão de alguma questão em sua totalidade. A indústria de alimentos não é uma vilã. Ela é necessária para o aproveitamento e conservação de alimentos fora de sua estação de safra. Além de contribuir, na oferta de alimento, também aumenta a vida de prateleira, por vezes em anos. Um exemplo é o processo de esterilização de enlatados, que permite a conservação de um alimento em média por três anos e neste processo não são adicionados conservantes. Trata-se apenas de um processo térmico para controle microbiológico. Não há nada de prejudicial à saúde neste produto. Talvez uma diminuição no teor de algumas vitaminas. O que deve ser questionado é a adição de substâncias conservadoras que, em alguns casos, de acordo com a literatura, apresentam propriedades carcinogênicas [que podem provocar ou estimular o aparecimento de carcinomas ou câncer em um organismo]. Neste caso, devemos cobrar a fiscalização da rotulagem, que não deve escamotear os ingredientes e aditivos utilizados. Cabe ao consumidor verificar a rotulagem e decidir se deseja consumir um produto orgânico, um produto com conservantes e outros aditivos químicos, realçadores de sabor, cor e aroma ou um mais próximo ao natural.
O que significa rastreabilidade dos alimentos?
Em termos mais simples, trata do rastro do produto, ou seja, uma identificação que leva do consumidor final ao lote de produto industrializado; e do produto final à matéria-prima. Quando digo rastro, refiro-me a registros que permitam acompanhar todas as etapas de fabricação e distribuição, desde o manuseio da matéria-prima na produção primária, durante as etapas de processamento na produção e etapas de distribuição, armazenamento e comercialização do produto até que chegue ao consumidor final.
De que forma garantir alimentos seguros sem o risco de contaminações?
No que diz respeito ao uso de agrotóxicos ou drogas veterinárias, permitidas pela legislação, são impostos limites quantitativos ao seu uso, para que seja respeitado o limite de Ingestão Diária (IDA) para o consumidor. Este índice se baseia numa perspectiva: para que o alimento não seja nocivo, no caso de a pessoa ingerir as substâncias por muitos anos e estas forem cumulativas no organismo. Ou seja, ela somente irá adoecer depois de praticamente 100 anos consumindo aquele alimento. Não é considerada a sinergia das drogas, a interação entre as drogas utilizadas em outros alimentos. A analise é feita de forma isolada. Seguindo o trajeto, as matérias-primas já vêm para a indústria com estas drogas permitidas e usadas pelo fornecedor. A indústria, praticamente, não pode fazer nenhuma mudança para diminuir seu quantitativo. Normalmente, não se faz uma análise em todo lote de matéria-prima que adentra o processo, mas sim um plano de amostragem. Na perspectiva da rastreabilidade, caso o produto final ultrapasse os índices permitidos, será possível rastrear a matéria-prima e saber identificar qual(is) fornecedor(es) contribuíram para a formação daquele lote do produto.
Existem contaminações não propositais, ou seja, na origem do alimento?
Ainda em relação à segurança do alimento, existe a possibilidade de contaminação microbiana que, neste caso, não é proposital. O processo deve estar preparado para eliminá-la ou minimizá-la a níveis toleráveis. Acontece que o processo está programado para agir sobre um nível máximo de micro-organismos que vêm da origem. Mas a matéria-prima pode chegar do campo com níveis acima do permitido, por causa de condições insalubres na produção primária. Sendo assim, caso o produto final apresente níveis de contaminação não aceitáveis, também será possível rastrear quais fornecedores contribuíram para a formação do lote. A importância da rastreabilidade é evidente. Imagine que o produto final foi testado, aprovado e liberado. Mas, durante a sua distribuição, por condições climáticas adversas, ou por abuso das condições de temperatura no transporte ou armazenamento em pontos posteriores da cadeia, o produto pode se apresentar fora dos padrões de aceitabilidade. Havendo rastreabilidade, será possível identificar se houve falha na elaboração ou forma de distribuição. Isso porque os registros são provas materiais para investigação do lote envolvido, além das contra-amostras que devem ser armazenadas durante todo o período da validade do produto.
É muito comum as pessoas desenvolverem intolerância a determinados alimentos. De que forma a rastreabilidade pode atuar?
Há ainda uma questão que não é muito debatida aqui no Brasil, que são os alergênicos. Muitas pessoas têm desenvolvido intolerâncias a alimentos ou mesmo processos alergênicos mais complexos. Nestes casos, basta que traços do componente desencadeante do processo alérgico estejam presente no alimento. Intolerância [incapacidade de digerir determinados alimentos] e alergia [resposta exagerada do sistema imunológico a uma substância estranha ao organismo] são diferentes; sendo a alergia o processo mais complexo. É muito importante a rastreabilidade para identificar se a linha de produção é dedicada ao produto ou compartilhada com outros produtos constantes do portfólio da empresa. Os registros são capazes de evidenciar o processo o efetuado anteriormente, se houve a devida limpeza e higienização da linha entre os processos, entre outros métodos.
O consumo de alimentos também está ligado a demandas ambientais?
Em último caso, existem atualmente as demandas ambientais. A questão do consumo e liberação de carbono. Na Europa, por exemplo, alguns consumidores se preocupam se a logística de fornecimento de matéria-prima leva a um consumo e liberação de carbono maior ou menor. Levam em conta a proximidade da região de fornecimento, em relação ao parque industrial. São questões de sustentabilidade. Aqui, ainda não há essa preocupação. Neste caso, o consumidor pode decidir se vai comprar aquele produto ou boicotá-lo por questões de consciência ecológica.
Entrevista: Camila Marins (Ascom/Fisenge)
Crédito foto: Adriana Medeiros