Da fundação da cidade
Salvador foi a primeira cidade do Brasil e sua fundação se deu no lugar hoje chamado de Centro Histórico (ou Centro Antigo), que começa no São Bento, passando pela Praça Municipal, pelo Terreiro de Jesus, Pelourinho, Carmo, e terminando no Santo Antônio Além do Carmo, onde, aliás, por muito tempo existiu uma muralha que protegia toda essa área de invasões estrangeiras. Por muito tempo (até final do século XIX), essa era a área nobre da cidade, onde vivam os ricos, mas também seus escravos, dentro da casa dos comerciantes e proprietários de terra da época.
Por conta de sua importante localização, na área central da cidade, onde se concentravam os órgãos dos governos estadual e municipal, o comércio começou a se desenvolver no local, atraindo pessoas de toda a cidade, o que não agradou aos moradores ricos, que começaram a migrar para bairros um pouco mais distantes, como Campo Grande, Vitória, com serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto, onde já passava o bonde e havia mais espaço para suas belas e grandiosas casas. No Centro Histórico, ficaram os comerciantes e os moradores de menor renda e muitos imóveis vazios. Outros motivos para esse esvaziamento, já nos anos de 1970, foram: a saída da administração estadual para o Centro Administrativo da Bahia (CAB) e o surgimento de um novo centro para Salvador, o Iguatemi. Durante muito tempo, o Centro Histórico foi um lugar de moradia dos pobres, que ali permaneciam em função das atividades econômicas que exerciam no local e de sua identidade construída no local.
Salvador, capital do turismo e do lazer
A necessidade de se revitalizar o Centro Histórico de Salvador surge a partir da década de 1960, dentro de um discurso para a cidade de Salvador como um centro de turismo e de lazer, na tentativa de dinamizar a economia do estado, em baixa desde a crise agroindustrial que assolava o país. Desde esse momento, começam a ser elaboradas propostas pelo governo para revitalização do Centro, com seu primeiro plano datado de 1969, que teve apenas parte executado, com a recuperação de alguns casarões, constituindo uma espécie de corredor turístico[1], de pequenas proporções. O referido projeto tinha como mote central a transformação do Pelourinho em um cenário turístico atrativo para o mercado, reposicionando o Estado no ranking de competição mundial entre cidades[2].
No ano de 1992, começou a ser executado pela CONDER[3] o Plano de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, que previa sete etapas, seis das quais foram cumpridas entre 1991 e 1999, ocasionando a saída de cerca de 1900 famílias e custando, aos cofres públicos a soma de R$ 92 milhões. O projeto da 7ª etapa já realizou 1.674 indenizações e ainda faltam pelo menos mais R$ 33,5 milhões para sua conclusão[4].
O plano de recuperação tinha a proposta de habilitação do centro como um shopping a céu aberto, que acabou por expulsar os moradores populares do lugar, com a desapropriação dos imóveis através de baixas indenizações, negando o direito à moradia aos residentes em habitações precárias e em cortiços, enviando-os às periferias ou condenando-os a viverem nas ruas. Esses espaços, antes de moradia e de comércio popular, foram ocupados por novos empreendimentos comerciais, visando o consumo de uma classe média, média alta, que seria futura freqüentadora e geradora de renda para o Centro.
A concepção que estava presente na constituição de uma pequena fatia do Centro Histórico em shopping a céu aberto, era a da transformação deste espaço em um local de consumo e lazer turístico não integrado à vida econômica e social da cidade e totalmente dependente do fluxo de turistas. Dentro dessa proposta, o centro passou a estar condicionado as oscilações do fluxo turístico. Apenas para exemplificar era notória a degradação dos serviços de limpeza urbana, segurança publica e infra – estrutura urbana nos períodos de baixa estação turística.
Este modelo implementado no Centro se mostrou insustentável do ponto vista social e econômico, mantendo uma sobrevida apenas devido aos massivos investimentos públicos realizados pelos governos estaduais carlistas que transformaram o Centro Histórico de Salvador, e em particular o Pelourinho na vitrine das suas administrações. Este modelo que já agonizava na gestão do governador Paulo Souto, teve os seus dias finais no inicio do Governo Jacques Wagner, deixando porém muitos adeptos e defensores da sua viabilidade na atual administração.
Mesmo com toda a opressão do governo do estado, parte da população moradora do Centro resistiu àquela remoção forçada e exigiu, junto ao Ministério Público, o cumprimento do seu direito à moradia digna. Assim, a sétima e última etapa do projeto, agora pautada por um Termo de Acordo e Compromisso (TAC) que assegura os direitos dos seus moradores históricos, representados pela Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico (AMACH). Esta abre espaço para a possibilidade de retorno dos moradores por hora usurpados do seu direito à moradia digna.
Sobre a administração do Centro Histórico
Apesar da proposta de implementação de um shopping center a céu aberto, diferente desse tipo de empreendimento, onde é cobrada aos lojistas uma taxa de condomínio, que contempla, além do lucro da administração, o pagamento dos serviços de limpeza, energia elétrica, segurança, entre outros serviços, é o Governo do Estado que assume integralmente a responsabilidade pela manutenção das fachadas (que é de responsabilidade dos inquilinos) e ainda arca com gastos com iluminação pública, coleta de lixo e outros serviços. Avalia-se que o Centro Histórico de Salvador custe aos cofres do estado uma quantia de R$ 1,2 milhão ao ano.
Outro indicador do insucesso do projeto refere-se à gestão patrimonial realizada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) que atualmente é proprietário de 181 imóveis dos 226 existentes no centro e administra a concessão de 403 unidades imobiliárias que deveriam gerar renda para a sua sustentabilidade, mas pelo contrário, contribui para onerar os cofres públicos, já que cerca de 70% dos concessionários comerciais estão inadimplentes[5].
Os compromissos firmados
Em 2005, em razão da luta da AMACH pela permanência dos moradores na sétima etapa e pela garantia do direito à moradia digna, foi firmado junto ao Ministério Público um compromisso de ajustamento de conduta que, entre outras coisas, obriga a discussão do projeto para definições quanto à compatibilização das unidades habitacionais à composição das famílias, equipamentos coletivos e programa de ação, além de contratação de mão-de-obra local. Hoje a AMACH luta pela implantação de uma creche, de uma cozinha comunitária e uma sede para a associação e contra a construção de estacionamento de três pavimentos na mesma área, dentro de uma quadra residencial.
Já na atual gestão do Estadual, foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica entre diversos ministérios do Governo Federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Governo do Estado da Bahia e a Prefeitura Municipal de Salvador, com vistas à elaboração e implementação do Plano de Reabilitação Integrado e Participativo do Centro Antigo de Salvador.
Apesar de este acordo ter como objetivo central a promoção de um processo de planejamento participativo, indicando para tanto a criação de um Grupo Executivo, paritário, com representantes do Governo Federal, do Governo do Estado da Bahia, e da prefeitura, nota-se, contudo, ausência da participação da sociedade civil organizada. Entre as atribuições do grupo executivo, está a garantia da participação da sociedade civil, através de fóruns e conselhos nas diversas etapas do plano, prevendo ainda a criação de Escritório de Referência para viabilização do Plano.
Ainda no ano de 2007, foi criado, por decreto estadual o Escritório de Referência do Centro Histórico e não foram criados, até o presente momento, os fóruns de discussão previstos no acordo nem os conselhos para elaboração e acompanhamento de sua implementação.
Por que moradia de interesse social no centro?
O Centro Antigo de Salvador possui diversos imóveis vazios, dentro de uma das áreas da cidade com maior oferta de serviços (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, segurança pública, educação, iluminação pública, transporte coletivo, etc.) de Salvador.
Logo não há razão para que o Estado da Bahia reproduza a velha política habitacional de implantar os projetos de habitação de interesse social em áreas distantes do Centro da cidade, aumentando os gastos públicos devido a necessidade de implantação e melhoramento da infra-estrutura urbana e social: transporte publico, construção de escolas, creches, postos de saúde, áreas de lazer e etc.
A solução para o Centro Antigo de Salvador e em particular para o Pelourinho passa pela implantação de projeto com sustentabilidade econômica e social, que possibilite a implantação de habitação para classe média e de interesse social, atividades comercias para atender a população fixa e os visitantes, programas de inclusão social e geração de renda para a população residente.
É importante que o Governo Wagner inaugure uma nova postura em relação ao Centro Histórico e a inclusão da população de baixa renda na cidade formal, de modo que seja garantido o cumprimento da função social da propriedade no Centro Histórico de Salvador.
Engenheiro Civil Ubiratan Félix
Presidente do SENGE–BA e Professor do CEFET-BA
Diretor da FISENGE
Conselheiro Nacional das Cidades e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
[1] SANT’ANNA, Márcia. A cidade-atração: a norma de preservação dos centros urbanos no Brasil dos anos 90. Tese (doutourado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2004.
[2] ARANTES, Otília “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas” in ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando Consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
[3] Na época chamada Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador.
[4] SANT’ANNA, 2004.
Este artigo foi publicado em 11/03/2008 às 15:22 na seção Notícias.