Força militar não resolve a criminalidade; é preciso inteligência e política, diz coronel do Exército

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Por Verônica Couto (SOS Brasil Soberano)

A ocupação da Rocinha pelas Forças Armadas não vai acabar com a violência na comunidade, nem na cidade, alerta o coronel do Exército Ivan Fialho, professor e pesquisador da Escola Superior de Guerra (ESG). “É um problema cultural e social; só será resolvido com políticas públicas e apoio da sociedade”, afirmou, durante o Soberania em Debate, evento promovido nesta terça-feira (26), pelo movimento SOS Brasil Soberano, e transmitido online, com o tema “Violência e Criminalidade no Brasil – o caso do Rio de Janeiro”. O combate ao crime e ao narcotráfico só poderá ser bem-sucedido se incluir, além do enfrentamento direto, investimento em políticas públicas e sociais nas regiões pobres das cidades, medidas de inteligência e articulação entre os países sul-americanos, ações que, na opinião dos participantes do debate, não têm sido realizadas.

O coronel Fialho lembrou que as Forças Armadas ficaram 20 meses no Alemão, em 2010, e 18 meses na Maré, em 2014. “Em curtíssimo prazo, a situação parecia estar resolvida, porque os bandidos se evadiram. Mas depois eles voltam.”

Isso acontece, em grande medida, devido à desigualdade na gestão dos territórios e ao déficit do Estado em determinadas regiões, como na Rocinha, afirmou o sociólogo e cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Falta educação, saúde, saneamento, transporte público. (…) Você anda pelas cidades, no Rio ou em São Paulo, e enxerga claramente onde existe e onde não existe Estado, o que é uma facilidade para o surgimento desses grupos paramilitares.”

30 chamados às Forças Armadas
O artigo 142 da Constituição estabelece para as FFAA o dever de Garantia da Lei e da Ordem (mecanismo conhecido como GLO), a ser acionado por solicitação de algum dos Poderes Constitucionais. E, desde a regulamentação de junho de 1999, inclusive por iniciativa de governadores. Foram mais de 30 decretos de GLO no Rio de Janeiro, desde o ano 2000, calcula o sociólogo Paulo Baía.

Segundo o chefe da Divisão de Inteligência Estratégica da ESG, coronel do Exército Paulo Roberto Costa e Silva, “há uma preocupação do alto comando” para que a GLO seja acionada apenas como exceção, em situações de crise extrema, e não como regra. “Ao se utilizar a GLO, é preciso tomar cuidado; as Forças Armadas não são vocacionadas para ação urbana. Elas são muito letais e violentas”, disse.

O sociólogo Paulo Baia também é favorável à aplicação da GLO apenas topicamente, em emergências, mas alerta para o fato de que “a militarização, pelas FFAA ou pela PM, não é solução para a nova criminalidade.” Ele defende a adoção de formas específicas de enfrentamento que deem conta da assimetria no conflito – em que o crime ganhou maior letalidade e violência, estabelecendo relações mais opressoras com as populações, usando os moradores como reféns e escudo humano. “É um conflito assimétrico porque esses grupos não precisam seguir a lei, mas as Forças Armadas e a Polícia Militar, sim.”

Do ponto de vista tático, o coronel Fialho concorda com a GLO. “A missão é bélica, tem que haver enfrentamento, tirar os bandidos da comunidade”, disse. Mas não a aprova como saída no aspecto político e estratégico, de longo prazo. “O principal é a sociedade civil se mobilizar e exigir do Estado que ataque esse problema para valer: Ministério Público, OAB, Poder Judiciário, é preciso envolver a todos.” Por exemplo, ele ponderou se não seria necessário o Congresso alterar a legislação, para reduzir os benefícios de progressão de pena.

Estratégia e mais inteligência
Trabalho de inteligência, inclusive nos presídios, também é fundamental para avançar em soluções mais duradouras, na opinião do historiador Francisco Teixeira, um dos coordenadores do movimento SOS Brasil Soberano e professor do CPDA/UFRRJ. Por exemplo, para impedir que os criminosos continuem com liberdade de ação mesmo dentro das prisões. “O Ministério da Justiça deveria explicar como a ordem para o conflito na Rocinha saiu de uma penitenciária de segurança máxima [referência ao traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, preso no presídio federal de Porto Velho]. Por que o diretor da penitenciária não está afastado e todo o seu pessoal sob investigação? As penitenciárias de Manaus, do Rio, entre outras, tornaram-se encubadeiras do crime – e isso é um problema do Ministério da Justiça”.

Para o historiador, o decreto da GLO deveria ter sido precedido de um levantamento dos esforços de investigação e pesquisa existentes no Rio, feitos por vários profissionais especializados em violência e criminalidade, tanto nas universidades, em empresas, na ESG, na própria polícia, ou no Ministério da Justiça. “Poderiam ter formado uma sala de crise, antes de deslanchar a operação. Ignorou-se a inteligência nessa área instalada há mais de 20 anos no Rio”. Essa ausência de articulação é o que o sociólogo Paulo Baía chamou de “política do não diálogo”.

Segundo Costa e Silva, da ESG, o país tem 38 órgãos vocacionados para trabalhos de inteligência no sistema federal, que permitiria ao Estado ser mais pró-ativo e não reativo na questão do crime organizado. Mas o coronel Fialho apontou o que chama de “falta de vontade política para resolver” o problema.
Outro erro grave na abordagem da crise do Rio, na avaliação do historiador Francisco Teixeira, foi o ministro da Defesa, Raul Jungmann, ter chamado de “Estado paralelo” o crime organizado da Rocinha (confirma aqui artigo sobre o tema). “Deus criou o mundo pelo verbo, a palavra tem uma força muito grande. E dar ao crime o status de um Estado é um erro muito grave e perigoso”. Para Paulo Baía, não se trata de uma guerra: “é um conflito, um combate, mas não se pode chamar de Estado o que não é Estado.”

Cone Sul
Qualquer solução para combater essas forças organizadas do crime também terá que considerar um plano para as fronteiras nacionais e os aspectos regionais da América do Sul, especialmente da Bolívia, Colômbia Peru e Paraguai, na avaliação do coronel Fialho. “Sem ação dos países vizinhos, o problema do narcotráfico não será resolvido em nenhum lugar.”

Não só a Rocinha, como outras comunidades em São Paulo, Belo Horizonte, ou outras cidades, tornaram-se plataformas de distribuição internacional de drogas, explicou o sociólogo Paulo Baía. “Temos que ter uma pespectiva geopolítica regional. É uma questão do Cone Sul, com conexões para Europa e para a África. E essa questão foi descuidada pelos governos”.

Por que a Rocinha?
Mas por que, agora, a Rocinha? É um ponto central entre a Zona Sul e a Zona Oeste, com 70 mil habitantes, segundo o IBGE, ou 120 mil, nas contas dos líderes comunitários da comunidade. A violência, naquele ponto, atinge muita gente e afeta um corredor de passagem com potencial de paralisar a cidade, observou Baía.

A comunidade também ganhou maior visibilidade e projeção internacional devido aos eventos realizados na Barra – os Jogos Olímpicos de 2016 ou, este mês, o Rock in Rio –, acrescentou o coronel Costa e Silva. “Os grandes eventos tornaram a Rocinha conhecida mundialmente. E nesse vazio de poder, encontraram campo fértil para o palco de operações. Como já foi a Maré, o Alemão, hoje é a Rocinha.”

Em comum, nestes lugares, a ausência do Estado. “Não dá para glamourizar o crime organizado”, advertiu Teixeira. “As primeiras vítimas são os mais pobres. As casas sendo expropriadas pelo crime. E os dados mostram que são pretos e pobres, de 15 a 25 anos, além das mulheres, as maiores vítimas do crime organizado.” O historiador acredita, nesse contexto de tantas mortes e violência, que a própria qualidade da República está em xeque.

Entre outras razões, porque a desigualdade no trato das políticas públicas se consolidou em um processo de descaso de muitos governantes. “Não temos esse sentido republicano que o termo traz”, afirmou Baía. “As questão centrais de fato não são centrais. O Estado é chamado porque alguma coisa incomodou a paz e o sossego de alguns. Aí vem uma ação tópica, que resolve aparentemente o problema, e volta-se ao estado de descaso.” Nesse sentido, ele acredita que deve ser reforçada a ideia de direitos humanos definidos como aqueles em um contexto em que a lei é para todos, sem privilégios.

“Com todos os problemas, os maus exemplos de políticos, a política é necessária, o Congresso é necessário”, afirmou o coronel Fialho. “E para a política existir, temos que usar o voto, temos que fazer manifestações pacíficas, defender ideais nacionais. Porque a questão da segurança pública pode ser vista como reflexo de uma situação de crime institucionalizado, pela qual passa o país, envolvendo muitas pessoas de colarinho branco, mas que não vai se resolver com intervenção militar”. Sem investimentos e políticas consistentes, ele alertou que o Brasil “corre o risco de ser um país gigante, sem poder militar compatível”. E que um dos mais relevantes investimentos, na sua opinião, para a segurança pública, deve ser feito em educação.