“Falta ainda, ao Brasil, o estabelecimento de uma política industrial e de incentivo à indústria nacional”, afirmou o engenheiro Márcio Patusco

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Foi lançado, em maio, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGCD). O projeto teve custo de R$2,8 bilhões e seu objetivo inicial, em 2011 durante o governo Dilma Rousseff, era reforçar a segurança das comunicações do governo e das Forças Armadas. Também era promover a universalização da banda larga no Brasil e levar acesso à internet às escolas, hospitais e às mais longínquas regiões do país, por meio da Telebras. No entanto, o governo de Michel Temer anunciou a privatização de até 80% da capacidade do equipamento, entregando-o às multinacionais. Desde os anos 90, o setor de telecomunicações, no Brasil, sofre com uma onda de privatizações, principalmente em 1998, com o leilão das empresas que formavam o sistema Telebras. Com o objetivo de traçar um perfil histórico do setor de telecomunicações e também apontar desafios, entrevistamos o engenheiro, conselheiro do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e subchefe da Divisão Técnica de Eletrônica e Tecnologia da Informação (DETI), Márcio Patusco.

FISENGE: Foi lançado, no dia 4/5, o Satélite Geoestacionário de Defesa de Comunicações Estratégicas, que teria o objetivo de universalizar a banda larga no Brasil. Por que existe um processo de privatização?

PATUSCO: Hoje em dia, existem cerca de 50 satélites explorando serviços no território brasileiro. Todos pertencem a empresas estrangeiras ou multinacionais instaladas no Brasil, revelando uma vulnerabilidade nesse segmento no que se refere ao estabelecimento de políticas públicas e de manutenção da soberania nacional em regiões de difícil acesso, como é a nossa Amazônia. Quando Edward Snowden denunciou as espionagens em órgãos e empresas brasileiras, ficou evidente a necessidade de maior segurança com relação ao sigilo no tráfego, tanto dos órgãos públicos quanto das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, o satélite poderia ser uma ferramenta importante no atendimento do Plano Nacional de Banda Larga em curso, para regiões menos assistidas e remotas. Todo o planejamento do satélite foi feito com a premissa de o SGDC ser uma forma de implementação de políticas públicas de inclusão digital nestas regiões. No entanto, o novo governo, ao assumir, mudou as características inicialmente estabelecidas e está tencionando entregar, via leilão, a capacidade do satélite para empresas privadas, sem contrapartidas seguras de atendimento. Além disso, a operação também será terceirizada, e não mais executada por técnicos da Telebras e das Forças Armadas treinados para esta finalidade.

FISENGE: Quais as possibilidades desse satélite em melhorar o acesso à banda larga?

PATUSCO: Com as mudanças implementadas pelo governo, está fadado ao fracasso, já que todas as características de serviços explorados pelo mercado até hoje estão presentes. As operadoras nunca se interessaram no atendimento de locais de menor poder econômico e a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] também não teve empenho para estabelecer metas de atendimento e efetuar a devida fiscalização do atingimento dessas metas. O resultado disso é a nossa péssima penetração da banda larga nas classes de menor renda. Apenas 16% dos domicílios das classes D e E estão atendidos. Como as operadoras são as mesmas e a Anatel também, o cenário não tende a se alterar.

FISENGE: Que outros projetos públicos de telecomunicações seriam essenciais para a sociedade brasileira?

PATUSCO: Desde a privatização ocorrida em 1998, praticamente foram entregues às operadoras os destinos da exploração dos serviços de telecomunicações no Brasil. Não existe um planejamento integrado de longo prazo que estimule a indústria, que definhou no setor, e que possa estabelecer bases para a retomada da pesquisa e desenvolvimento, que universalize o acesso e aumente o atendimento.  As políticas públicas praticamente inexistiram. A nossa posição em relação ao provimento de facilidades à população se manteve e, em alguns casos, até piorou, comparado com outros países. A internet, base das aplicações mais importantes no mundo atual, no Brasil é cara, com velocidade abaixo da média mundial e sem penetração adequada. Portanto, há uma necessidade urgente de um projeto de universalização da banda larga em nosso país. 

FISENGE: Qual o processo histórico do setor de telecomunicações no Brasil?

PATUSCO: Antes de 1964, as comunicações no Brasil eram privadas e mais de 900 empresas exploravam o serviço, basicamente a telefonia fixa. Ligações interurbanas levavam horas para se completar, não havia DDD nem DDI, e ligações internacionais eram praticamente inviáveis. Com a criação da Embratel, e posteriormente da Telebras, nas décadas de 60 e 70, o território nacional foi integrado por voz, dados e televisão. Com a onda neoliberal do final da década de 80 e início da de 90, a privatização foi novamente considerada e, após modificações constitucionais, foi feito o leilão de todo o setor de telecomunicações em 1998. Novas tecnologias que vinham se afirmando acabaram por se viabilizar, como telefonia celular, internet e TV por assinatura, por exemplo. A indústria nacional que, em 1988, detinha 77% dos fornecimentos para as operadoras locais, caiu para menos do que 3% atualmente. Pesquisa e desenvolvimento foram abandonados e sofreram da mesma inexistência de estímulos. Apesar da privatização ocorrida, segundo a própria Anatel, a competição nos serviços não se estabeleceu. Na banda larga, em 94% do território nacional ou não há competição ou ela é incipiente. Os serviços de uma forma geral não têm boa qualidade e as operadoras são líderes de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor.  

FISENGE: Qual a importância estratégica de uma política pública de telecomunicações no que tange a soberania nacional?

PATUSCO: Pelos circuitos das telecomunicações passam informações vitais no comportamento das entidades públicas e privadas no cenário da geopolítica internacional e de disputas comerciais nos diversos segmentos, seja de petróleo, commodities ou manufaturados. Além disso, sobre as necessidades de atendimento a regiões que julgamos importantes, somos nós que devemos decidir como planejar e executar as devidas implementações para o cumprimento dos requisitos estabelecidos.  

FISENGE: Quais as principais medidas do governo de Michel Temer para destruir a política de telecomunicações?

PATUSCO: De forma geral, o que pretende o atual governo é, sem praticamente discussão efetiva com a sociedade, repassar toda a infraestrutura brasileira de telecomunicações, estabelecida durante décadas, para as atuais operadoras. Sob o pretexto de diminuir a regulamentação do setor acabando com as concessões, quer repassar prédios, equipamentos, fibras ópticas e cabos em todo o Brasil, por um compromisso discutível e pouco confiável em seu cumprimento, de ampliação da banda larga. Faz o mesmo tipo de benefício com relação às renovações do espectro de frequências e de posições orbitais, que passam a ter renovações automáticas, sem as devidas licitações. Para se ter uma ideia do quanto isso significa, só nas licitações da telefonia móvel até hoje, a União já arrecadou cerca de 30 bilhões de reais.

FISENGE: Poderia falar sobre o processo histórico da Telebras e da importância de retomá-la como estratégia?

PATUSCO: Na sua criação na década de 70, a Telebras atuava como holding das empresas telefônicas estaduais e da Embratel. Sua atuação básica era financeira na apuração e distribuição dos orçamentos de suas subsidiárias. Contrariamente às privatizações do setor de telecomunicações no mundo inteiro, onde se mantiveram sob condições as empresas operadoras estatais existentes, como foram os casos de Inglaterra, França, Alemanha, entre outros, no Brasil, a Telebras foi inteiramente dividida e vendida em leilões em 1998. No entanto, por não ter sido totalmente encerrada, quando o governo precisou lançar mão de políticas públicas para inclusão digital na banda larga, por volta de 2010, reativou a Telebras como prestadora de serviços e implementadora do Plano Nacional de Banda Larga, cujo objetivo era incluir a preços de tarifa subsidiados um contingente de 26 milhões de domicílios. Ao mesmo tempo, seria, nessa mesma linha de inclusão social, responsável pelo lançamento do SGDC, para atendimento de regiões mais remotas e carentes de recursos e de um novo cabo submarino para a Europa, para diminuir a dependência de nosso tráfego para esta região, sem ter que necessariamente passar pelos Estados Unidos. Todas estas iniciativas estavam alinhadas com uma estratégia de soberania e segurança nacionais e de independência em relação a recursos físicos externos.

FISENGE: Qual a importância e as principais diretrizes do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL)? Qual seria um modelo ideal de política de telecomunicações comprometida com a soberania e o desenvolvimento?

PATUSCO: O Plano Nacional de Banda Larga, em sua concepção, era uma solução viável para inclusão digital de uma parcela considerável dos domicílios aos aplicativos que a internet proporciona. No entanto, nem a Anatel e nem as operadoras se comprometeram integralmente com sua implementação e fiscalização de suas metas, que acabaram não sendo atingidas. Quando o PNBL já patinava no seu fracasso, uma proposta apresentada por entidades da sociedade civil ao governo em 2013, era de tornar o acesso a internet um serviço prestado também em regime público, o que poderia carrear a arrecadação do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações] para sua implementação e permitir estabelecer regras de universalização pelo Estado, com a adequada modicidade tarifária.

Paralelamente, o Marco Civil da Internet veio estabelecer como essencial ao exercício da cidadania o acesso da população aos recursos da rede. Além disso, a Constituição Federal diz que serviços essenciais não podem ser prestados apenas no regime privado. Dessa maneira, depreende-se que, na visão dos legisladores, o que se pretendia era dar robustez para que a União pudesse estabelecer as políticas públicas de forma a manter a soberania nacional e o compromisso social. Falta ainda, ao Brasil, o estabelecimento de uma política industrial e de incentivo à indústria nacional envolvendo Ministérios, Legislativo, Anatel, Academia, Entidades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e sociedade civil que a tornasse mais participativa e competitiva no desenvolvimento nacional do setor.

FISENGE: Quais as consequências do PLC 79/2016, que altera as normas no setor de telecomunicações e anistia empresas de multas aplicadas?

Primeiro, devemos dizer que o PLC 79/2016 é uma solução oportunista que surgiu no Legislativo sem nenhuma discussão séria com a sociedade. Apesar de alardeada como se já estivesse sendo discutida há anos, esta alegação é uma falácia. O projeto, tal como surgiu, foi sendo aprovado às carreiras após a mudança do atual governo, por meio de acordos nas comissões até ser travado pelo Supremo por inadequação de procedimentos.  Como já dissemos, este projeto entrega toda infraestrutura, espectro de frequências e posições orbitais, sem licitação, aos atuais detentores dessas facilidades, um patrimônio de cerca de dezenas de bilhões de reais. Pior, toda a atual infraestrutura de prédios, equipamentos, instalações e cabos passarão para estas operadoras dificultando a prerrogativa do Estado de estabelecer regras para universalização dos serviços, suas tarifas e demais políticas públicas. Caso realmente fosse implementado, as consequências se dariam na manutenção das grandes diferenças regionais de atendimento, na impossibilidade do acesso das classes sociais mais pobres à internet, em aumento das tarifas, e na dificuldade de realização de políticas públicas. Esses reflexos perdurarão por décadas e será a sociedade que irá pagar pela irresponsabilidade de poucos.

FISENGE: E os recursos do FUST?

PATUSCO: Não só o Fust (universalização de serviços), mas o Fistel (fiscalização) e o Funttel (desenvolvimento) são recursos setoriais que arrecadam cerca de 10 bilhões de reais por ano. No entanto, apenas cerca de 6% desse total é efetivamente aplicado no setor, um desvio de finalidade que os governos têm feito sem parcimônia. Além disso, todo o setor arrecada cerca de 230 bilhões reais por ano por meio dos prestadores de serviços. Ou seja, recursos para investir em banda larga não parecem que venham a ser problema para o setor. O que falta efetivamente é vontade política para a solução da conexão da metade dos domicílios brasileiros ainda sem internet.

Por Camila Marins