Em entrevista exclusiva, engenheiro chileno afirma: “hoje, o Chile é resistência”

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Desde o início de outubro, o Chile vive uma onda nacional de manifestações. O estopim foi o aumento da tarifa de metrô em horários de pico. Por recomendação de um painel de especialistas em transporte público, o governo decidiu aumentar o preço das passagens de metrô em 30 pesos, atingindo um valor máximo de 830 pesos (R$ 4,73, na cotação atual). Estudantes secundaristas iniciaram as mobilizações pulando as catracas e, em seguida, a população tomou as ruas reivindicando qualidade dos serviços e fim dos abusos como o aumento de 9,2% nas contas de eletricidade. Outro ponto nevrálgico é o sistema de previdência chileno que fora privatizado durante a ditadura militar e, hoje, representa um colapso social com mortes de pessoas mais velhas e empobrecimento.

Na quarta-feira (23/10), a maior central sindical do país iniciou dois dias de greve geral. O presidente Sebástian Piñera colocou as Forças Armadas para reprimir os protestos, o que culminou na morte de manifestantes e em uma série de violações de direitos humanos que repercutiram em todo o mundo. Alvo de críticas, Piñera anunciou, então, uma “Agenda Social” que, supostamente, irá implementar um aumento imediato de 20% da Pensão Básica Solidária, contemplando pessoas com 65 anos ou mais que não recebam aposentadoria e façam parte dos 60% mais pobres da população; além de aumento de 20% no Aporte Solidário e a criação de um seguro para cobrir gastos com medicamentos, uma vez que os serviços são todos privatizados.

Com o objetivo de compreender o cenário político no Chile, a Fisenge (Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros) entrevistou o engenheiro de minas e presidente da FESUMIN (Federação de Supervisores de Mineração Privada), Miguel Fernández. Confira.

Como está a situação política e econômica no Chile?

A situação política no Chile – desde o suposto retorno à democracia – tem sido dominada por dois grupos principais, denominados duopólio, que são de esquerda e de direita. Eles tiveram o poder político absoluto, alternando mandatos presidenciais que pouco e nada avançaram na solução dos problemas da cidadania. E isso porque a Constituição Política do Chile foi escrita em 1980, em plena ditadura. Desde então, nosso país está sob um modelo político e econômico neoliberal que levou à mais profunda desigualdade social e econômica.

Foram anos em que as pessoas tiveram que viver com baixos salários, mesmo com o aumento do custo de vida. E este é um grande problema, porque não se refere apenas a um problema político, mas a um sistema estrutural desigual desde a base. O mais básico é a educação, por onde começam os problemas. Durante anos, o movimento estudantil lutou para tirar a lógica do lucro da educação e Piñera, em seus primeiros 100 dias de governo, o restabeleceu. Portanto, temos um contexto social em que jovens com habilidades não podem acessar a universidade e, portanto, não podem ser profissionais, o que aumenta, cada vez mais, a mão de obra barata e precarizada no Chile. A partir desta base, todos os problemas sociais começam. Se não temos educação, há uma população com baixos salários, que não tem como acessar serviços essenciais que foram privatizados.

Uma das principais motivações para as manifestações foi o aumento do valor das passagens de metrô nos horários de pico, justamente o mais utilizado pelos trabalhadores. De que forma a privatização dos serviços afetam a população?

Na semana passada, o custo do bilhete de metrô voltou a subir, de acordo com uma política de transporte público, implementada em 2006, que só causou caos e não houve uma solução concreta por mais de uma década. O metrô chileno é privado, sendo um dos sistemas de transporte mais indignos da América Latina. O preço da passagem subiu pela quarta vez consecutiva em 2 anos, o que motivou o início das manifestações, principalmente a partir da evasão do metrô pelos secundaristas. E, em algumas horas, a escalada de descontentamento social tomou todo o Chile.

A saúde, que também foi privatizada, é uma das questões mais importantes, fruto de reivindicações nas manifestações nas ruas. A saúde pública funciona por meio da FONASA e a saúde privada que funciona pelo ISAPRES. Como você pode imaginar, a saúde também é indigna no país. As pessoas esperam anos em eternas listas de espera , não há os cuidados médicos necessários e acabam morrendo. Mas se você tiver dinheiro, poderá procurar atendimento particular com os recursos e mecanismos para resolver todos os tipos de doenças. O que significa literalmente que pessoas pobres morrem.

Como funciona o sistema de previdência?

O sistema de pensões no Chile é extremamente indigno. As AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão) – que regulam esse sistema – são privadas. A pensão básica solidária gira em torno de 107 mil pesos chilenos, quase 140 dólares. As pessoas estão pagando cada vez mais caro por serviços básicos e os aposentados mal conseguem comer com esse valor. De acordo com o sistema de poupança obrigatória para todos aqueles regidos pelo Código do Trabalho, os aposentados que trabalham há mais de 30 anos têm renda de aproximadamente 50% de seus salários.

Como está a atuação do movimento sindical frente aos protestos?

Em geral, o movimento sindical se uniu e deixou para trás sua individualidade, contribuindo para a luta de um povo inteiro que se cansou dos constantes abusos do Estado. Como setor de mineração, estamos paralisando as operações do setor em todo o país, organizando como coordenador de trabalhadores de mineração que reúne a Federação de Supervisores de Mineração Privada (FESUMIN), Federação de Supervisores de Papéis e Profissionais dos Sindicatos de Supervisores e Profissionais da Codelco Chile (FESUC), Federação de Mineração do FMC do Chile, Confederação Minera de Chile (CONFEMIN), Federação dos Sindicatos dos Minerais Antofagasta (FESAM) e Confederação dos Trabalhadores em Cobre (CTC).

Estas organizações – que representam mais de 80% dos trabalhadores de mineração do país – estão em greve geral e não interromperemos as manifestações até que o governo retire as forças públicas das ruas e termine com os estados de emergência e o toque de recolher no país.

De que forma, a política neoliberal implantada na década de 70 no Chile, inspirada pelas teorias dos Chicago Boys, influenciaram no atual cenário social do país?

O grupo Chicago Boys teve uma profunda influência na ditadura militar de Pinochet, impulsionando o modelo privado sobre o público. Hoje, todos os recursos – que são legitimamente do povo chileno – são privatizados, como a água e o cobre. O Chile é o único país no mundo que privatizou a água. O cobre também foi privatizado, com grandes consórcios estrangeiros obtendo as receitas que poderiam estabelecer políticas públicas justas para a sociedade chilena. Os Chicago Boys, finalmente, são os culpados pelo fato de que, hoje, no Chile a desigualdade seja tão profunda. Os empresários são os donos do país. As pessoas estão mergulhadas em uma pseudo escravidão trabalhista, trabalhando mais de 12 horas por dia, com longas horas de deslocamento no trânsito, um salário em torno de 550 dólares, o que não é suficiente neste país.

Como você avalia o anúncio da “agenda social” do presidente Piñera?

As medidas deste presidente são uma provocação. As pessoas estão nas ruas hoje porque cansaram dos abusos que sofreram por anos. Abusos de um sistema privado que deixa sobras para o sistema público, no qual a maioria da população é atendida. Temos problemas graves no acesso à educação e à saúde, no aumento excessivo do custo de serviços básicos, como água, eletricidade e transporte público. Além disso, para quem possui um veículo também não é tão bom, já que as estradas do Chile pertencem à “Vías Chile” e fazem parte de um consórcio espanhol, que cobra uma taxa excessiva por transitar alguns quilômetros da região metropolitana. Além de pagar pedágio em cada entrada e saída de distritos e zonas rurais, ainda há taxas para transitar por Santiago em seu próprio carro. Na ditadura, um imposto específico sobre combustíveis foi instituído para que as estradas do país pudessem ser construídas. 30 anos depois e este imposto nunca foi retirado.

As medidas não dão o foco ao que realmente acontece em nossa sociedade. A agitação social é legítima e possui argumentos sólidos, que não foram respondidos pelas migalhas apresentadas por Piñera em sua agenda social.

Diante do avanço da extrema-direita e do conservadorismo, as manifestações no Chile podem conduzir um processo de resistência na América Latina?

Não sei se trata de liderar um processo de resistência na América Latina. O que sabemos é que é hora dos governantes do mundo começarem a governar para o povo. Eles não devem esquecer que em uma democracia o poder pertence ao povo e que quando amplia sua voz ocorrem mudanças profundas. Toda a nossa história como civilização humana é marcada por isso. Esperamos que esse movimento não desista e possa resistir a toda repressão. Não devemos esquecer que, em menos de uma semana de mobilizações, 18 pessoas já morreram. 5 deles morreram por intervenção direta de militares ou policiais do Chile, o que significa que o Estado, mais uma vez, está matando seu povo. Mas, desta vez, as pessoas não têm medo. Somos uma geração que cresceu à sombra da ditadura, mas perdeu o medo da repressão.  Hoje, o governo do Chile não será capaz de derrotar o povo. Hoje, o Chile é resistência.

Entrevista e tradução do espanhol para o português: Camila Marins/Fisenge

 

Foto STRINGER – via Agência Brasil