Luiz Antonio Elias – Ex-Secretário do Ministério de Ciência e Tecnologia / Foto: Stéphanie Marchuk
Entrevista por Camila Marins com edição de Laura Ralola.
No contexto do boom da indústria 4.0, que promove grandes mudanças em nossas relações de trabalho, uma série de ferramentas vem constituindose instrumentos importantes para a profissionalização e automatização dos processos de gestão. Por isso, um olhar sobre as novas tecnologias é imprescindível e, de fato, assistimos ao crescimento mundial do mercado da Tecnologia da Informação.
Na contramão do resto do mundo, observamos no Brasil um intenso corte nos recursos federais, que afeta de forma alarmante o orçamento destinado à ciência e tecnologia nacionais — comprometendo o incentivo à pesquisa e o funcionamento de centros e laboratórios Brasil afora. Neste contexto, a Fisenge entrevistou o ex-secretário do extinto Ministério da Ciência e Tecnologia, Luiz Antonio Elias, para entender mais sobre os desafios do atual contexto político e tecnológico.
Quais são os impactos do fim do Ministério da Ciência e Tecnologia?
A extinção do Ministério da Ciência e Tecnologia é uma questão crítica para as sociedades científica e tecnológica em especial, tendo causado manifestações de entidades, da Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência (SBPC) e pessoas que pensam o futuro do país. Nas sociedades avançadas, ou existem ministérios para o tema ou uma estrutura de secretaria ligada à Presidência da República, porque entendem que o tema ciência e tecnologia é horizontal e, portanto, atinge todas as atividades econômicas e sociais. O encerramento do ministério é uma demonstração de retrocesso do atual governo. Nós voltamos ao regime de venda de patrimônio e rentista, vendendo ativos que nos custaram caro construir.
A sua junção com o Ministério da Comunicação levou também a uma perda drástica na área orçamentária. E nessa disputa o que prevalece é a comunicação, porque no Congresso Nacional existe uma posição de bancada muito mais forte para a radiodifusão e radiotelefonia. É preciso retomar o Ministério de Ciência e Tecnologia nas suas prerrogativas, para que, além de colocar um horizonte de desenvolvimento para o país, também determine um projeto de crescimento a longo prazo. Países centrais estão apostando especificamente na dimensão da sua estrutura de laboratórios para gerar conhecimento. No Brasil, entretanto, a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o CNPq vêm sofrendo cortes significativos em suas capacidades para investimentos. A efetividade de investimento, somente com recursos do MCTI Finep e CNPq que, nos anos 2012/2013, atingiram um patamar acima de 10 bilhões de reais, representa na fase atual menos de 2,5 bilhões de reais. Representa um decréscimo que compromete os grandes projetos na área e a nossa capacidade de reduzir as brechas tecnológicas em relação aos países desenvolvidos.
O ministro Lewandowski afirmou que “uma crescente tendência de desestatizações vem tomando o país sem a estrita observância da lei e que, por isso, qualquer privatização deveria passar pelo congresso”. O que você pensa sobre o fato?
Ao jogar para o Congresso Nacional, cria-se um debate nacional, ao menos politicamente, sobre o patrimônio brasileiro. A posição assumida pelo Supremo Tribunal e, em especial, pelo ministro Lewandowski é positiva e chama a atenção da população para discutir um tema que é central. O Brasil não é patrimonialista, nem rentista. É uma nação. E uma nação precisa preservar o seu patrimônio e o interesse público e social. A perda de capacidade da Petrobras com a argumentação de que está dando prejuízo não é verdadeira. A Petrobras é uma empresa sólida, que possui um grande ativo: sua capacidade tecnológica. E tal capacidade começa a ficar comprometida com a diminuição de investimentos no setor. O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes), por exemplo, tem diminuído de forma significativa a relação de cooperação, de estabelecimento de parceria e de contribuição para a área de ciência e tecnologia. Isso é grave, porque quem descobriu o pré- -sal foi justamente essa base sólida tecnológica que a Petrobras desenvolveu ao longo dos anos.
Como os outros países regulam seu protecionismo e de que forma a política de conteúdo local também está articulada com a indústria 4.0?
Sobre a evolução ou a nova onda de transformações a partir das tecnologias 4.0, as empresas terão que fazer grandes investimentos para se manterem competitivas e próximas à fronteira tecnológica, sendo que a geração de conhecimento endógeno é fundamental, com impacto nas cadeias nacionais. O olhar sob as novas tecnologias não entrará no país em cascata nos institutos de pesquisa e nos laboratórios. A Shell vai fazer no seu país de origem, a EXXON vai fazer no seu país de origem, a Texaco vai fazer no seu país de origem. A apropriação desse conhecimento pela via da propriedade industrial se dará na sede das empresas onde estão localizados os grandes laboratórios de pesquisa. Dessa forma, não podemos nos contentar em atualizar nosso parque industrial pela via do licenciamento de patentes ou contratos de assistência técnica e transferência de tecnologia, pois, se assim for, oneramos nosso balanço de pagamento tecnológico — já que as tecnologias são patenteadas, sendo inerente o pagamento de royalties sobre o licenciamento. As estratégias nacionais dos países desenvolvidos para enfrentar os desafios oriundos do emprego das tecnologias 4.0 forçam estes países a construírem políticas públicas em torno de prioridades e missões, a partir das competências existentes. Uma prioridade política é a concertação público privada e estabilidade na alocação de recursos. Os Estados Unidos, para manterem a liderança em C&TI e recuperarem a competitividade de sua manufatura avançada, deverão dispender nos próximos cinco anos cerca de US$ 500 bilhões. O orçamento público para 2018 será de US$ 177 bilhões, 12,8% maior que 2017, especialmente centrado em laboratórios, formação de recursos humanos e em tecnologias críticas para a área de defesa e de energia. A dimensão da Europa chega a quase 300 bilhões de dólares, especialmente na Alemanha – país carro-chefe desse processo. Mas há uma geografia internacional que se altera nesse patamar que é o olhar sobre a Ásia, em especial Coreia, Japão e China – que cresce exponencialmente emparelhando suas capacidades de investimento com os EUA.
O conteúdo local e a cláusula de P&D são fundamentais para esses países, no sentido de olhar o futuro e perceber a dimensão do progresso técnico, como fator de redução de custos da produção e competitividade. O Brasil precisa se posicionar dentro desse cenário internacional, quer na melhoria da concorrência de suas cadeias produtivas, quer nos temas críticos para a sociedade, como o complexo industrial da saúde. Baixar essas prerrogativas ou diminuir traz consequências danosas à rede de tecnologia estabelecida no país. De 1999 a 2017, foram 12 bilhões de reais aplicados pela cláusula de P&D, área de petróleo e gás, sendo que mais de 90% desse valor é oriundo da Petrobrás. Dessa quantia, 69% foi para infraestrutura científica e tecnológica e laboratórios.
A Petrobras estabeleceu um princípio de cooperação, de contribuição e de parceria que alavancou fortemente a ciência e a capacidade do conhecimento. Isso resultou em tecnologias avançadas e em conhecimento apropriado via propriedade industrial no Brasil. Uma das determinações da Petrobras é de que o avanço científico que gerar patentes será solicitado no escritório de PI local, ou seja, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para que o pagamento de royalties não comprometa o nosso balanço de pagamento tecnológico. Esse horizonte precisa ser preservado.
É necessário pensar na dimensão que essas tecnologias 4.0 terão — pois haverá forte impacto na produção, no consumo e na qualidade de vida das pessoas. Os motores dessa transformação se estabelecem também por demandas sociais, que forçam o emprego de novas tecnologias para melhorar a qualidade de vida, especialmente na saúde. Forçam também um olhar sobre mobilidade urbana, no sentido de que a população precisa de equipamentos, infraestrutura e melhor logística da cidade. Assim, a inteligência artificial e Big Data podem ajudar nesse processo.
Por fim, é necessário pensar que modelo de país queremos na implementação desse processo. Necessariamente, tem que ter conteúdo local — princípio empregado em diversos países do mundo. Basta entrar nas leis internacionais e verificar como eles se posicionam diante dessa questão. Há um olhar sobre a efetividade dessas tecnologias, não só para a população, como também para as áreas das empresas no princípio concorrencial, estabelecido sob o olhar da regulação. Este é um tripé necessário que deve ser compartilhado e sinérgico. Isso foi construído nos governos Lula e Dilma e está sendo desmontado agora.
Qual é o impacto que essas novas tecnologias vão ter sobre o emprego?
O processo de utilização e introdução dessas tecnologias pode ser benéfica, desde que não gere redução de emprego. O perfil do emprego precisa permanecer. No entanto, com tecnologias como robotização, customização, aumento da manufatura e procedimentos mais efetivos na área de equipamentos, pode haver sérios problemas a um país com uma desigualdade tão grande como o Brasil. É preciso estabelecer o princípio da regulação. É muito importante que as entidades façam um trabalho não só de qualificação da mão de obra, mas, principalmente, de olhar a substituição daquele emprego formal estabelecido por outro.
A robótica vai entrar, a ordem das manufaturas vai se alterar, o processo de customização vai acontecer, inteligência artificial e Big Data vão entrar pesadamente. Há um impacto forte, que inclusive foi medido de forma inédita no Brasil pelo Instituto de Economia da UFRJ e pelo Instituto de Economia da UNICAMP, em estudo encomendado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com um olhar para 2027. O levantamento procurou mostrar como estará a indústria em 2027 e que procedimentos deveríamos adotar dentro desse chamado ecossistema de ciência e tecnologia e inovação para o Brasil enfrentar essa questão. Portanto, é importante dar a dimensão necessária, seja no processo regulatório, seja em um processo de políticas públicas voltadas para mais investimentos, como os programas dos países desenvolvidos que citei anteriormente.
O emprego é uma preocupação que deve estar no radar de todos. As tecnologias estão chegando e não dá para dizer que vamos substituir um engenheiro e resta a ele se tornar motorista de Uber. Sem diminuir a importância da pessoa que busca esse serviço para sobreviver, é necessário que a gente implique investimento de Estado em políticas de preservação e na regulação. Isso porque são anos de formação do engenheiro e, no final, ele não tem emprego e é levado a buscar sua renda em serviços alternativos.
Para tudo aquilo que não depende somente do governo, as entidades terão que fazer um esforço muito grande e pressionar para que as políticas públicas sejam efetivas. É necessário que o Estado olhe para o interesse público e social, senão teremos uma disruptiva maior do que a tecnologia, porque não teremos emprego. Vamos formar engenheiros e não teremos capacidade de emprego, inclusive nas estatais, porque o perfil da Petrobras vai mudar com inteligência artificial, Big Data, novas tecnologias e novas fontes energéticas, as quais vão alterar radicalmente a conjuntura. Precisamos preservar a soberania nacional, a inteligência, a ciência e a tecnologia brasileira.
Qual a atual situação e a importância do satélite geoestacionário?
Eu acompanhei o satélite muito de perto, enquanto estava no Ministério. Havia uma proposição, tanto no governo Dilma, quanto no governo Lula, de que deveríamos olhar o horizonte, pensando nos setores críticos e estratégicos para o desenvolvimento brasileiro. Evidentemente, a área espacial é central em qualquer país. Ela não só envolve colocar um satélite para gerar comunicação para uma TV a cabo ou para um sistema de operação básico. Envolve, necessariamente, segurança, porque há um tratamento nas fronteiras, onde se exige um olhar com mais determinação e precisão sobre a dimensão do nosso continente. O Brasil ocupava essa posição alugando pontos e espaços orbitais em outros satélites, às vezes até privados. Nesse ponto, as Forças Armadas tinham a clareza de que o país deveria ter um sistema espacial robusto e o satélite geoestacionário poderia dar informações precisas para que a área de soberania brasileira fosse preservada. Assim foi feito. Mas teve um ponto muito importante na dimensão desse acordo com os franceses, a centralidade da transferência de tecnologia. Só estabeleceremos um princípio básico de formação de recursos humanos se tivermos acesso ao conteúdo tecnológico e se pudermos desenvolver aqui posteriormente. Hoje temos um acordo bem estruturado. No entanto, ele está sendo redefinido, o que é um absurdo e há uma preocupação enorme por parte dos institutos que são parceiros, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e a AEB.
Os dados que possuo de 2017 devem ter se agravado este ano pela Emenda Constitucional 95, a chamada “PEC do fim do mundo”. Houve uma queda de 67% nos recursos do INPE e algo significativo também na AEB, o que subentende o fechamento de laboratórios, o fim de parcerias especialmente na área espacial e diminuição de capacidade. A Agência Espacial Brasileira, responsável por coordenar o processo do acordo, teve um retrocesso de quase 50% na capacidade orçamentária e, portanto, no impulsionamento também das cadeias que ela assim determina. A diminuição ocorreu tanto na FINEP, quanto no CNPQ. Nós temos a dimensão do atraso no exemplo da área espacial, ou seja, há um compromisso em formar recursos humanos dentro do programa de transferência de tecnologia, mas está prejudicado. Há também um comprometimento com o avanço nas cadeias brasileiras em imageamento. O Brasil tem excelência na parte ótica do setor espacial e há um olhar sobre a construção de laboratórios e assimilar essa transferência de tecnologia, que é bastante robusta.
Além dessa questão da defesa, de um mapa das fronteiras e um satélite brasileiro, havia a preocupação com a inclusão social por meio do avanço da banda larga no Brasil. Era a inclusão de um processo que não chega na fronteira e dificilmente chega no interior. Quando chega, chega caro. Não chegam telefones fixos e, se chega a telefonia celular, o preço é muito mais elevado. Portanto, nesses locais, a diminuição do custo da operadora é muito mais efetiva, pois isso impacta direto no bolso da população. A ideia do satélite era fazer a inclusão pela via da banda larga, o que será muito diminuído com a proposta de privatização do satélite geoestacionário. Será um retrocesso e uma perda muito grande para população.
Como está a situação da base de Alcântara?
O governo brasileiro negociou durante muitos anos um acordo internacional que pudesse estabelecer uma base de lançamentos de foguetes. E foi escolhida Alcântara por uma razão. Como economista, eu aprendi com engenheiros que há uma diminuição enorme da perda de combustíveis e há uma precisão maior no lançamento do foguete, sem maiores oscilações, ou seja, não há ventos significativos que possam oscilar o foguete e muito menos a possibilidade de perda, porque, eventualmente, ele sai em ziguezague e na longitude. E, nesse sentido, estabeleceu-se um acordo com quem tem capacidade tecnológica, a Ucrânia, que tem um grande centro de desenvolvimento na área espacial da antiga União Soviética. Na pretensão que se tinha em Alcântara, eles têm uma tecnologia bastante avançada, similar ou até em alguns pontos mais avançada do que a Rússia hoje. O acordo não foi à frente por uma série de razões: por uma questão de recursos, de continuidade do projeto, por atrasos e porque, pela primeira vez, um país do Leste Europeu estaria trazendo essa tecnologia para a dimensão brasileira, com problemas de aquecimento do solo, de temperatura, de dimensão de toda parte física dos instrumentos, que deveriam ser customizados, indo de uma temperatura abaixo de zero para quase 50 graus. Por esses motivos, o acordo foi encerrado. Não sei o resultado dessa questão, porque é um acordo bilateral, que envolve dois países. Já havia mais da metade do processo construído, ou seja, a base do foguete estava estruturada, os alicerces gerais estavam sendo montados e um acordo com a Aeronáutica havia sido firmado. Agora há novamente uma negociação com os EUA. Talvez o olhar seja para implementar algo como na INVAP, na Argentina, que é um acordo de longo prazo, estabelecido com a NASA, para o lançamento de foguetes de uma dimensão maior do que se pretendia em Alcântara.
Uma importante questão é que se preserve o acúmulo tecnológico alcançado até hoje e que, de fato, o Brasil tenha a excelência nessa dimensão, porque a Aeronáutica determina para colocar em órbita satélites com a realidade nacional e isso não é só um desejo. Existem tecnologia e capacitação dentro de setores específicos, quer na área privada espacial, quer na área pública ou nas Forças Armadas. A perda de Alcântara é também um retrocesso para o Brasil.
Originalmente publicada na revista da Fisenge.