Engenheiro civil e sanitarista, pós-graduado em Políticas Públicas e Governo, Clovis Nascimento já foi subsecretário de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos do Rio de Janeiro e diretor nacional de Águas e Esgotos no Ministério das Cidades, no primeiro mandato do governo Lula, no período entre 2003 e 2005. Atualmente é presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros – Fisenge, e conversou com o MAB sobre os projetos que correm no Congresso sobre a privatização do saneamento básico e das águas no Brasil e os riscos que representam para o povo brasileiro.
Para Nascimento, o Projeto de Lei 4162/19 proposto como novo marco regulatório do setor, tratado agora no Senado, “rasga a constituição”. O engenheiro afirma que o primeiro passo para avançar na busca da universalização do acesso ao saneamento básico é a derrubada da PL 95, que congelou o investimento público, e acredita que a iniciativa privada “pode participar nas áreas de obras e nos grandes projetos, mas jamais na gestão do setor”.
Confira abaixo a entrevista completa:
MAB: O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, tem insistido no último período na aprovação do novo marco regulatório do saneamento básico no país. Na visão dele, é preciso dar “garantias para o investidor privado”. Bolsonaro se posiciona na mesma linha. Quais podem ser os efeitos de uma privatização no setor do saneamento?
Clovis Nascimento: No Brasil de hoje, temos cerca de 33 milhões de brasileiros e brasileiras que não tem acesso à rede de água potável. Essas pessoas vivem nos bolsões de pobreza, nas favelas, nas áreas periurbanas e na zona rural. Essas áreas são deficitárias do ponto de vista econômico-financeiro e sendo assim, a iniciativa privada não vai colocar recursos para atender a essa população. Por quê? Porque a iniciativa privada só visa o lucro. Se essas áreas não são rentáveis, eles não vão viabilizar recursos. Na verdade, se examinarmos a grande maioria das privatizações existentes no Brasil, em qualquer área, podemos constatar que não tem dinheiro privado, o que tem para fazer ampliações e para qualquer outro investimento é dinheiro público. Então, dizer que haverá dinheiro novo da iniciativa privada para a universalização do acesso à água e ao serviço de saneamento básico é uma cantilena: uma mentira. O Projeto de Lei que está mais avançado no Congresso, o PL 4162/19, foi elaborado e pensado no Ministério da Economia pelos assessores do Paulo Guedes, e responde à lógica privatista e do Estado mínimo. Eles não têm nenhum escrúpulo. Uma mostra disso é que, em um dos seus artigos, esse PL coloca que não haverá recursos para estados e municípios se não privatizarem seus serviços de saneamento.
Ou seja, uma imposição…
Sim, é uma imposição que está escrita no próprio texto do projeto. Um projeto que precisa ser derrubado porque não atende às necessidades do povo brasileiro. Na realidade, nós temos uma lei aprovada e sancionada que é a Lei Nº 11.445, de 2007, que estabelece diretrizes para o saneamento básico e que do ponto de vista histórico é uma lei novíssima. Temos o Plano Nacional do Saneamento Básico (Plansab), que é de 2013. O que realmente precisamos é dar celeridade à implementação do Plansab, porque ele define as diretrizes para atingir a universalização dos serviços de água e de esgotamento sanitário no Brasil. Mas o que eles querem é tirar a lei 11.445 e colocar no seu lugar uma lei que acaba com coisas muito importantes para o povo brasileiro como o subsídio cruzado, que rasga a constituição porque cassa a titularidade municipal.
O que significa “subsídio cruzado” e qual pode ser o impacto de acabar com ele, o que propõe o PL que tramita no Congresso?
O subsídio cruzado permite ao ente público gerar recursos nos municípios rentáveis e reaplicar esse superávit nos municípios deficitários. Como saneamento e água são serviços essenciais para a vida humana, é muito importante que eles estejam nas mãos de empresas públicas, porque isso permite que esse subsídio cruzado seja efetuado em toda a sua amplitude. O lucro que as empresas vierem auferir com os municípios rentáveis, jamais irão aplicar nos não rentáveis. Por isso, é que eles querem decretar o fim do subsídio cruzado.
Segundo o Instituto Trata Brasil, 48% da população do país não tem coleta de esgoto. Por fora da proposta de privatização, quais podem ser então os caminhos para avançar na universalização do acesso?
O primeiro passo é derrubar a emenda constitucional 95, que congelou os investimentos públicos no Brasil. Tem que ter disponibilidade de recursos públicos para as empresas públicas, para que estas possam acessar os recursos e possam transformá-los em desenvolvimento. Porque saneamento vai vai mexer com a cadeia produtiva, gerando emprego direto e indireto. Portanto, é preciso disponibilizar recursos públicos para o setor de saneamento brasileiro para que possamos avançar na busca pela universalização desse serviço. É verdade, 48% não tem acesso às redes públicas de esgotamento sanitário, o que é muito representativo, dá quase 100 milhões de brasileiros. Mas precisamos ter disponibilidade de recursos para que o setor público faça as obras e os investimentos, com vistas ao atendimento à toda a população brasileira.
Por que lutar contra a privatização da CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) no Rio de Janeiro?
A CEDAE é uma empresa pública que vem dando superávit nos últimos dez anos. Ela precisa melhorar? Claro que precisa. Precisa universalizar o atendimento no Rio de Janeiro, ainda temos muita coisa pra fazer nas favelas, na Baixada Fluminense, em municípios carentes, em municípios do interior. Agora, esses problemas não vão se resolver privatizando. Como disse anteriormente, a privatização tem a variável do lucro, e a população que habita essas comunidades não tem condições de pagar tarifas majorada pela variável do lucro. Por isso, somos contra a privatização do saneamento, seja ele aqui no Rio de Janeiro, ou seja ela em qualquer lugar do Brasil. Vou citar dois exemplos. Na cidade de Manaus, os serviços foram privatizados há 20 anos, e lá tem um déficit muito grande. Apenas 50% da população da cidade tem acesso a água potável e só 12% é atendida pelo esgotamento sanitário, sendo que a iniciativa privada está lá há tanto tempo. Por que não se resolveu isso, por que não colocaram dinheiro privado para melhorar essas condições? Simplesmente porque eles não colocam nunca. A mesma coisa no Tocantins. Privatizaram a Saneatins, porém, não conseguiram resolver o problema, e mais do que isso, a empresa devolveu para o Estado cerca de 78 municípios que eram deficitários, e ficou apenas com 47 municípios que são os mais rentáveis. Isso é na prática o que acontece quando a iniciativa privada entra. E por isso não dá para privatizar o setor do saneamento.
Isso já aconteceu em muitos outros países…
Sim, claro. O mundo inteiro está recuando da privatização dos serviços de saneamento. Temos exemplos de grandes cidades pelo mundo como Buenos Aires, Berlim, Paris, Kuala Lumpur, Budapest, que tinham seus serviços privatizados e que foram reestatizados. No total, são umas 300 cidades no mundo que retomaram o controle sobre seus serviços de saneamento. Portanto, serviço de saneamento tem que ser público. A iniciativa privada pode participar nas áreas de obras, nos grandes projetos, mas jamais na gestão. A gestão tem que ser pública.
Diante deste cenário, como fortalecer a luta para conter a estratégia de privatização da água que está em curso no Brasil?
Temos que pressionar os senadores em cada um de nossos estados. O PL 4162 está aguardando pauta na Comissão de Meio Ambiente no Senado, e precisamos pressioná-los para que não o aprovem. Temos que estar todos juntos, e utilizar todas as forças democráticas possíveis para barrar essa loucura, pois se esse PL for aprovado, vai ser um desastre para o povo brasileiro. Rodrigo Maia é um neoliberal de plantão, velho conhecido, e por isso ele defende a privatização. O partido dele é o DEM, um partido conservador e neoliberal, alinhado com o Estado mínimo defendido pelo Paulo Guedes. Temos que ir pra cima deles para barrar mais esse retrocesso.
por Marcelo Aguilar / Comunicação MAB
Foto: Adriana Medeiros