Desenvolvimento e a nova propriedade

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Antes da existência da propriedade social, o trabalho comprometia dois terços do tempo de vida de cada cidadão

 

Por Marcio Pochmann

 

O Brasil que emergiu da Revolução de 30 caminhou no sentido da modificação importante do conceito tradicional da propriedade. Em vez do clássico entendimento que separa o proprietário do não-proprietário imobiliário (posse da terra) e de demais detentores das fontes de geração de renda e riqueza, passou a ganhar maior relevância a interpretação a respeito da propriedade social mediada pelo trabalho e diversos mecanismos de proteção e segurança social.

 

Justamente em torno dos riscos relacionados ao pleno exercício do trabalho (acidente, doença, invalidez e morte, desemprego e instabilidade contratual, precocidade e envelhecimento, variabilidade e sub-remuneração, despreparo formativo, entre outros) conformou-se a propriedade social, operada, na maioria das vezes, por fundos públicos absorvedores de parcela do excedente econômico nacionalmente gerado pelo conjunto do país. Nesse sentido, deve-se reconhecer o papel pioneiro das ações estabelecidas em 1923, com a Lei Eloy Chaves (base da Previdência Social), e, em 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho, que fundamentaram a propriedade social no Brasil.

 

O financiamento da propriedade social ocorre de forma tanto contributiva (previdência social) como impositiva (tributos e taxas). O resultado final disso tem sido a geração de uma massa expressiva de recursos comprometida originalmente com a promoção e defesa do bem-estar social geral dos detentores da propriedade social.

 

O brasileiro ampliou o tempo de vida para além do exercício exclusivo do trabalho na medida em que avançou a titularidade da propriedade social. Antes da existência da propriedade social, por exemplo, o trabalho comprometia dois terços do tempo de vida de cada cidadão.

 

Por conta disso, o ingresso na vida laboral iniciava-se aos cinco ou aos seis anos de idade e se encerrava somente com a morte, geralmente próxima dos 35 anos, que representava a expectativa média de vida dos brasileiros do início do século 20. Ao se acrescentar ainda a ausência da regulação do tempo de trabalho (48 horas semanais, férias, descanso semanal, feriados) e de medidas de aposentadoria e pensão, o tempo de trabalho podia equivaler a mais de 5.500 horas de trabalho por ano.

 

Com o desenvolvimento urbano e industrial protagonizado desde a década de 1930, parte dos ganhos de produtividade foi carreada para a nova propriedade social. Em conseqüência da difusão da titularidade dos novos proprietários, tornou-se possível reduzir o peso do trabalho heterônomo (realizado em troca de uma remuneração pela sobrevivência) para um quinto do tempo de vida.

 

Isso porque o ingresso no mercado de trabalho foi postergado para os 15 anos de idade, após o acesso ao ensino básico, enquanto a saída para a inatividade se deu a partir da contribuição por 35 anos ao fundo previdenciário. Contando com a duplicação da longevidade da vida ao longo do século 20 (de 35 para 70 anos), percebe-se que o desenvolvimento nacional permitiu à propriedade social alargar o tempo de vida, bem como direcioná-lo à sociabilidade moderna, com mais educação, saúde, consumo e investimento humano.

 

No limiar do século 21, com a perspectiva de elevação da longevidade de vida para acima dos cem anos de idade e a profunda ampliação da produtividade do trabalho, especialmente do trabalho imaterial, abrem-se oportunidades inéditas de o desenvolvimento fortalecer ainda mais a nova propriedade social. Seus detentores possuem cada vez maior influência sobre as decisões públicas e privadas nacionais, como no caso dos fundos de aposentadoria e pensão, FGTS, FAT, entre outros.

 

Tudo isso motiva preparar, em novas bases, as ações estratégicas para o desenvolvimento brasileiro de longo prazo. Para quem vai viver cem anos, com a intensificação da produtividade, ampliam-se as possibilidades de ingresso no mercado de trabalho após os 25 anos de idade -conforme já ocorre para os filhos dos ricos no país-, assim como o tempo de trabalho em menor escala, contando com o seu exercício em diversas modalidades e cada vez mais distante do local de trabalho tradicional.

 

Se, tecnicamente, já é possível, por que não convergir para as condições estruturais necessárias para que isso realmente venha a ocorrer? Somente com a promoção do desenvolvimento nacional os brasileiros universalizarão as possibilidades de acesso à nova propriedade social.

 

MARCIO POCHMANN, 45, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy).

Fonte: Folha de São Paulo