Por Verônica Couto (SOS Brasil Soberano)
Foto: Vanessa Abreu (Senge-RJ)
Qual o papel das Forças Armadas na crise brasileira? Elas devem reagir aos ataques à soberania nacional promovidos pelo governo federal (ao cortar investimentos em programas estratégicos e preparar a venda de empresas públicas importantes para a autonomia do Estado)? Por que há jovens na rua pedindo a volta da ditadura? Estas foram algumas das perguntas respondidas aos internautas que acompanharam ao vivo a transmissão pelo Facebook do Soberania em Debate – Política e militares no Brasil, evento que o Movimento SOS Brasil Soberano realizou no último dia 20, na sede da Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ).
“[As Forças Armadas] não podem se rebelar, não devem e não vão”, afirmou o coronel da reserva do Exército Paulo Roberto Costa e Silva, chefe da Divisão de Assuntos de Inteligência Estratégica da Escola Superior de Guerra (ESG). “Não podem, porque não é seu papel constitucional; não devem, porque não é sua missão; e não vão, porque é crime. A intervenção precisa ter outro nome: intervenção cívica – na saúde, na educação.” Ou seja, a responsabilidade pela mudança do cenário político, na avaliação do oficial, é da sociedade civil. “Temos uma eleição no que vem. Vamos fazer mudar. Pode ser que não seja dessa vez; vamos tentar na outra.”
Quem está na rua pedindo a volta da ditadura não sabe o que faz, acreditam Costa e Silva e o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ), também presente ao debate, do qual participaram ainda o oficial reformado da Marinha e doutor em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) Sergio Murillo Pinto, e o advogado e cientista político Jorge Folena.
“Quando vemos tanta gente levantando cartazes e essas bandeiras… eles não sabem direito o que é intervenção militar”, disse o coronel Costa e Silva. Segundo ele, as FFAA tem um entendimento sólido de que devem “manter a estabilidade, entendida como o pleno funcionamento das instituições”. Isso significa, explicou, respeitá-las, mesmo reconhecendo que “estão decadentes” e governo e Congresso, “contaminados”. “Posso não ter o Congresso que eu quero, mas está funcionando; não ter o Supremo [Tribunal Federal] que eu quero, mas está funcionando. A sociedade é que vai se transformando e promovendo as mudanças a seu tempo.”
Para o deputado Wadih Damous, o sistema político vem sendo deliberadamente desmoralizado e criminalizado, o que estimula as manifestações a favor da ditadura que se amparam também na ignorância de quem não a viveu. “Para o jovem de hoje, política é sinônimo de mal feito, de crime. E isso é em parte compreensível, porque o fenômeno do mal feito é real, acontece. Mas ele é maximizado, tratado de maneira estratégica para desqualificar a política.”
A ilusão de que na ditadura militar – de 1964 a 1985 – não havia corrupção, diz o parlamentar, é uma “falácia” que se incute na cabeça sobretudo da juventude, aproveitando o fato de que a censura impedia que se tomasse conhecimento dos desvios ocorridos na época. “Essas pessoas são presas fáceis desse sistema de desinformação que conforma a vida política brasileira”, acredita o deputado. Ele também apontou a indignação seletiva que não questiona, por exemplo, os abusos cometidos pelo Poder Judiciário. “Se temos corrupção – e temos – em todos os Poderes, o que significa juízes e procuradores ganharem muito acima do teto constitucional? E as distorções da administração pública brasileira? O que significa um general, almirante, brigadeiro, um professor universitário, que passou a vida se sacrificando, se aposentar com R$ 10 mil, enquanto um ‘fedelho’ desse que diz que vai corrigir a República já entra ganhando acima do teto de R$ 30 mil?”
Damous observa que as tentativas de atenuar as distorções do sistema político têm sido sistematicamente frustradas pelas forças que são suas beneficiárias, como se viu na recente votação de reforma política na Câmara Federal – cujos pontos relevantes, embora aprovados, foram vetados pelo presidente Michel Temer. “Semana retrasada aprovamos um arremedo de reforma política, mas que estabeleceu teto para o gasto com campanhas eleitorais; teto para autofinanciamento de campanhas eleitorais; teto de R$ 10 mil para doações de pessoa física. Quando tentamos corrigir, aqueles que querem o dinheiro no processo político e eleitoral vetam as modificações importantes.”
Atentados contra a soberania
Embora todos os participantes do debate condenem a hipótese de uma volta ao regime militar, tanto o deputado Damous quanto o cientista político Jorge Folena apontaram a necessidade de as Forças Armadas se pronunciarem em relação a questões relativas à soberania nacional, como a abertura do controle de exploração do pré-sal a empresas estrangeiras, a venda de ativos da Petrobras, a proposta de privatização de empresas do sistema Eletrobras, entre outras medidas do atual governo.
“Vemos atentados à soberania nacional na energia elétrica, no pré-sal, e não vemos um pronunciamento, uma tomada de posição mais incisiva por parte das autoridades militares em relação a isso”, salientou Damous, lembrando que circularam recentemente nas redes sociais manifestações de setores das Forças Armadas pregando abertamente uma a possibilidade de intervenção militar e atribuindo aos militares legitimidade moral para “limpar o país”. Ao mesmo tempo, comparou, “em temas diretamente ligados à organização das FFAA e à defesa da pátria, ouvimos um silêncio ensurdecedor.” O deputado ressalvou que não espera dos militares que eles convoquem ”amanhã uma cadeia de rádio e TV para dizerem que não podemos privatizar a Eletrobras; mas se eles se sentem à vontade para aquelas manifestações, por que não sobre essas outras questões?”
Para Jorge Folena, é importante saber a posição das Forças Armadas sobre as ações do governo – por exemplo, os cortes de recursos para educação das crianças e dos jovens, para saúde, ciência e tecnologia e em programas como o ProSub, de desenvolvimento de um submarino nacional com propulsão nuclear para proteger a costa brasileira, especialmente as áreas da reserva do pré-sal. Ou ainda sobre a iminência de venda de empresas públicas criadas pelos próprios militares, como a BR Distribuidora, da Petrobras. “A manifestação militar é política sim, não significa uma intervenção. Temos que saber a posição dessa instituição forte.”
O coronel Costa e Silva considera “essa preocupação justa”, mas entende que “não é papel das Forças Armadas tutelar a sociedade”. E destaca que, com as redes sociais tão ativas e a mídia com seus “interesses inconfessáveis”, qualquer manifestação “interpretada de maneira dúbia produz consequências muito fortes”. Este é um terreno que o oficial considera “pantanoso” e reconhece, assim, que “fica difícil para o comandante militar se posicionar. (…) A postura de que o deputado sente falta, um pronunciamento mais forte dos líderes, dos generais, extramuros, é meio complicado de fazer.”
Captura internacional
“A campanha ‘O petróleo é nosso’ uniu civis e militares, sem quebrar a Constituição; não é um exemplo?”, perguntou pelo Facebook um internauta que acompanhava o debate. Para Sergio Murillo Pinto, representa de fato um bom exemplo, mas a diferença entre o momento atual e aquele é que uma parcela significativa das Forças Armadas teria sido capturada na Guerra Fria pelos interesses norte-americanos.
Segundo ele, na primeira metade dos anos 50, o Exército estava dividido: uma ala de centro e centro–esquerda apoiava o nacionalismo, inclusive as reformas que o então presidente Getúlio Vargas no seu governo constitucional tentava fazer; de outro lado, um grupo que voltou da II Guerra Mundial profundamente influenciado pela política e cultura norte-americanas.
“Cabe lembrar que, quando a FEB [Força Expedicionária Brasileira] foi para a Itália e se incorporou ao 5º Exército norte-americano, as condições dos militares brasileiros eram extremamente precárias”, explicou. “Os EUA forneceram armamento, roupas para o inverno, sapatos, até cigarro. Como os aliados venceram e foram recebidos festivamente, uma parte do Exército brasileiro voltou entusiasmada, até deslumbrada, com tal magnificência, e tendeu a fazer com que o Brasil se inclinasse no sentido de ‘o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’. E a Guerra Fria fez com que se encaminhasse mais na mesma direção. (…) Foi pena que a parcela nacionalista e desenvolvimentista do Exército dos anos 50 não tenha conseguido se manter hegemônica.”
Golpismo, capital financeiro e tráfico
Atualmente, na avaliação de Folena, se o país tem um “inimigo”, é o capital financeiro internacional. Na sua opinião, as análises correntes não dão a atenção adequada ao papel dos personagens civis que atuaram e se beneficiaram no golpe de 64 e dos interesses que continuam representando. “Eles são os mesmos do golpe de 2016”, disse o cientista político, indicando, por exemplo, os setores privados defendidos pelo atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Wellington Moreira Franco.
“O que está acontecendo é que muitos dos civis que atuaram e se beneficiaram no passado, no regime de 1964-1985, continuam agindo livremente e influenciando a política no Brasil de hoje, jogando civis contra militares e militares contra civis, em favor do capital financeiro e dos interesses de estrangeiros”, afirmou. “Exemplo disso é a Garantia da Lei e da Ordem [dispositivo utilizado, entre outros casos, para as FFAA ocuparem a Rocinha, no Rio de Janeiro, e Brasília, durante as manifestações contra a reforma trabalhista e da previdência]. Segurança pública é problema dos estados, não dos militares. Constitucionalmente, quem é responsável pelo combate ao tráfico de drogas é a Polícia Federal. Mas a PF se tornou uma polícia política, para cassar políticos; qualquer hora, vai entrar nos quartéis.”
Um bom motivo para acionar a GLO, diz Folena, seria para as FFAA agirem onde a PF não tem obtido sucesso: na fiscalização de fronteiras, portos e aeroportos, contra a entrada de armas e drogas. “É preciso apurar por onde circula o dinheiro do tráfico de drogas e armas. Esse dinheiro tem que estar em algum lugar. É preciso apurar com cuidado também a movimentação no sistema financeiro. Uma GLO de inteligência para atuar nessa área seria bem-vinda.”
Folena ressaltou, por fim, que “os movimentos sociais não podem ser vistos como inimigos, como tentam construir certos setores reacionários brasileiros, pois são formados por homens e mulheres nacionalistas, que lutam por um Brasil mais justo e solidário para todos, sob a mesma bandeira nacional a que os militares também são fiéis. Não pode ser permitida a manipulação midiática, que joga brasileiros contra brasileiros, civis contra militares ou vice-versa, como ocorreu no passado e ainda se faz no presente.”
Cadê o povo?
Mas se a solução da crise não depende das FFAA, qual será ela? “Até quando estaremos letárgicos? Onde estão as lideranças?”, perguntou outro participante virtual do debate. Segundo o o deputado Wadih Damous, é uma pergunta recorrente.
“Falta a presença e a ação do personagem principal: o povo brasileiro”, respondeu o parlamentar. “O povo está assistindo a uma desconstrução de direitos e conquistas sem paralelo na História do Brasil e numa rapidez muito grande. Não é crível que se acabe com a previdência social, os direitos trabalhistas, que se mergulhe o povo no mapa da fome, e isso fique sem resposta. Tenho certeza de que o povo vai assumir as rédeas do seu destino. Isso vai acontecer.”
Para Damous, as lideranças políticas também estão “reféns” da situação. “Não há liderança que possa por si só resolver esse caos em que o Brasil está. Isso precisa estar enraizado na sociedade brasileira. Não é o partido A ou B que vai resolver as coisas de forma messiânica.”
Soberania em Debate
Roda de debate promovida periodicamente pelo movimento SOS Brasil Soberano, apoiado pelo Senge-RJ e pela Fisenge, como parte do seu trabalho de mobilização, resistência e reflexão de temas nacionais. O evento acontece na sede da Fisenge/Senge-RJ, no centro do Rio, com mediação da jornalista Camila Marins. A transmissão pode ser acompanhado online pela página do SOS Brasil Soberano no Facebook. A íntegra do debate e a edição de seus principais momentos são depois publicadas no canal do movimento no Youtube.
O Soberania em debate realizado no dia 20 de outubro, com o tema Política e militares no Brasil, registrou no perfil do movimento 45.726 pessoas alcançadas pelas redes, 13 mil visualizações, 95 curtidas/reações e 131 compartilhamentos. Transmitido também pelo perfil da Carta Capital no Facebook, gerou 12 mil visualizações, 90 curtidas/reações e 71 compartilhamentos.
Mais sobre o tema
Clique para ler também o artigo do cientista político e advogado Jorge Folena “Militares e política”