O deputado Carlos Zarattini (PT-SP), vice-líder do governo na Câmara, quer ampliar na sociedade o debate sobre o papel dos militares, e excluir da Constituição o mecanismo da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ele acredita que os desdobramentos da CPMI que investiga os ataques de 8 de janeiro aos Poderes da República podem ampliar as adesões à proposta de uma Emenda Constitucional para alterar o caput do artigo 142, que menciona a GLO.
Segundo Zarattini, tudo indica que o ‘8 de janeiro’ integrou uma sequência de manobras golpistas, visando o uso da GLO como argumento jurídico para impedir a normalidade democrática com Lula na Presidência, e dar o controle do país às Forças Armadas. Para que uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) excluindo a GLO possa tramitar, são necessárias 171 assinaturas, cerca de um terço dos parlamentares. Para ser aprovada, 308 votos.
A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara adiou para 16 de agosto o seminário “Forças Armadas e a Política: limites constitucionais”, previsto inicialmente para julho, e que, na opinião de Zarattini, deve estimular a discussão sobre a proposta. O objetivo da alteração constitucional, diz o deputado, é evitar a banalização da convocação militar: “O que imaginamos é que a mobilização interna dos militares seja algo realmente excepcional; não pode ser vulgarizada.”
De 1992 a 2022, o deputado calcula que foram realizadas cem operações de GLO, a maior parte relacionada à segurança pública, mas também para outros fins, como acompanhamento de movimentações de urnas eleitorais. “Só queremos colocar o pingo no i; dizer claramente que o papel das Forças Armadas deve se restringir à defesa do povo, da soberania e do território. Elas devem atuar a comando do presidente da República, e não de qualquer um dos Poderes. Estamos discutindo também que qualquer mobilização interna das Forças Armadas, feita pela Presidência, precise de autorização do Congresso.”
Atualmente, o artigo 142 estabelece que as Forças, compostas por Marinha, Exército e Aeronáutica, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A nova redação defendida por Zarattini exclui a menção à lei e à ordem (ou seja, à GLO), e inclui novos parágrafos para estabelecer o formato e os casos pertinentes a uma eventual ação interna dos militares. Essa atuação deve acontecer na maior parte das vezes em apoio à defesa civil, como no caso da crise humanitária dos Ianomâmis, quando houve a colaboração da Aeronáutica, ou na presença do Exército nos trabalhos de recuperação e salvamento nos desastres da Vale em Mariana (MG) e em Brumadinho (MG), ou ainda enviando carros-pipa a municípios do Nordeste castigados pela seca.
O parlamentar reconhece que essas excepcionalidades podem abranger ações de segurança, mas sempre com aprovação da Câmara e do Senado. “Vamos supor que haja uma greve da PM num determinado estado, ou uma situação de descontrole da segurança pública, e que seja necessário um apoio das Forças Armadas. Esse apoio pode sim ser autorizado pelo presidente da República, mas com a ratificação do Congresso Nacional, como é o caso de uma intervenção do Executivo federal num determinado estado.”
Exemplo recente dessa situação, no modelo proposto por Zarattini, aconteceu em Brasília, nos desdobramentos do próprio 8 de janeiro, quando foi aprovada intervenção na segurança pública do Distrito Federal, com autorização do Congresso.
Desmilitarização do Estado
A PEC para alterar o artigo 142 também pretende desmilitarizar a administração estatal. Estabelece que os militares não poderão ocupar cargos de civis, mas apenas aqueles específicos destinados à carreira militar. Ou seja, se quiser ser ministro, o militar precisaria deixar a Força.
O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, também propôs uma outra PEC proibindo militares de disputarem eleições, da mesma forma que fazem hoje juízes e promotores. Medida idêntica à defendida recentemente pelo diretor da Polícia Federal – para os policiais da instituição. “Porque são carreiras de Estado”, explica Zarattini. “E os militares, além disso, têm as armas. A PF também. Não podemos transformar os quartéis e as delegacias em partidos políticos. As pessoas precisam fazer uma opção.”
CPMI e articulação golpista
“A CPMI está demonstrando que existiu uma tentativa de golpe articulada, que o 8 de janeiro não foi a explosão de um grupinho de malucos que foi lá quebrar tudo”, argumenta o deputado.” Aquilo fazia parte de uma articulação que já vinha desde a tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas. Depois tivemos os acampamentos [de apoiadores de Bolsonaro nas portas dos quartéis do Exército], as tentativas de parar rodovias, os atentados à bomba em torres de transmissão, a tentativa de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília, o ataque à Polícia Federal. Houve uma sucessão de fatos, cujo objetivo era armar um golpe de Estado no Brasil e impedir que Lula governasse.”
A base jurídica para camuflar a excepcionalidade, seria, exatamente, a GLO, a partir de uma interpretação enviesada de Ives Gandra — “jurista muito reacionário”, na avaliação de Zarattini. Gandra pretende, por cima da letra constitucional, dar poderes moderadores às Forças Armadas – que nem são um poder da República nem têm delegação para moderar conflitos institucionais. A hipótese subjacente é que, com os ataques à Brasília, Lula acionaria a GLO e as Forças Armadas assumiriam o poder. O presidente, contudo, rejeitou essa opção, preferindo a intervenção na segurança pública do governo do Distrito Federal.
“Vamos lembrar que todos os golpes no Brasil tiveram a participação de um jurista”, adverte Zarattini. “Porque o golpe tem que ser dado não só com a força, mas também se apoiar numa visão jurídica. A CPMI tem ajudado nesse debate. Qual era a palavra de ordem da extrema direita e do bolsonarismo nas manifestações golpistas? ‘Eu autorizo’. ‘Eu autorizo o Bolsonaro a usar o artigo 142 para que as Forças Armadas restabeleçam a harmonia entre os Poderes’.”
O parlamentar lembra que o artigo 142, que define na Constituição o papel das Forças Armadas, foi redigido em 1988 com a inserção da figura da GLO pelo general Leônidas Pires Gonçalves, que foi ministro de José Sarney, sem debate com a sociedade. “O papel das FFAA é defender o nosso território, o povo, a nossa soberania, e não se intrometer nas questões internas da política do país”, diz. “Claro que, se houver forças capazes de armar um golpe de Estado militar no Brasil, não é isso que vai impedir. Em um golpe que encerre as instituições democráticas, a Constituição vai ser rasgada.” Mas, depois da militarização ocorrida no governo Bolsonaro, afirma Zarattini, o tema mereceria mais atenção da sociedade e do campo democrático.
Fonte: SOS Brasil Soberano
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil