A ciência brasileira sofre com o acesso a recursos cada vez mais escassos. Em 30 de março, foi anunciado um congelamento de 44% do orçamento inicialmente previsto para o Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovações e Comunicações em 2017. Se o corte for confirmado ao longo do ano, será o menor orçamento destinado ao ministério desde 2005. O gráfico abaixo mostra a trajetória dos recursos destinados à pasta. São despesas executadas pelo ministério (com valores corrigidos pela inflação até 2016) e a previsão para 2017, já com o corte recém-anunciado.
O Brasil vive um ajuste fiscal aplicado pelo governo de Michel Temer que significou um corte de R$ 42 bilhões nos gastos previstos do Poder Executivo em 2017. O Ministério da Ciência foi atingido em cheio: dos R$ 5 bilhões previstos na Lei Orçamentária, a pasta terá apenas R$ 2,8 bilhões.
Contabilizando os recursos do Programa de Aceleração de Crescimento, em projetos que são de responsabilidade do Ministério da Ciência, a pasta terá no total R$ 3,275 bilhões para custeio e investimento – o que representa apenas 0,35% dos gastos totais da União em 2017.
O corte anunciado no fim de março vem numa sequência de contingenciamentos de orçamento desde 2014. E, agora, levanta discussão e reclamações na comunidade científica. Nesse sentido, está marcada para o dia 22 de abril a Marcha pela Ciência no Brasil.
A marcha acontece em todo o mundo, para promover a atividade científica na sociedade e chamar a atenção para importância da produção de ciência. No Brasil, nunca teve muita participação, mas agora, em 2017, com os cortes orçamentários na pauta, promete atrair mais gente. “Utilizaremos tesouras, pequenas e grandes (de papelão), para simbolizar os cortes (organizando um ‘tesouraço’) e, ao final da atividade, as tesouras serão descartadas em um grande recipiente”, disseram ao “Jornal Ciência” os organizadores do protesto, que incluem integrantes de entidades de professores e pesquisadores do Rio de Janeiro.
Os organizadores criaram um grupo no Facebook a fim de mobilizar a comunidade científica para o evento, que está confirmado em ao menos 13 cidades brasileiras.
Um artigo na revista científica “Nature” chama a atenção para como o corte deixou cientistas brasileiros “horrorizados”. O neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, disse à revista que “este é um ato de guerra contra o futuro do Brasil. Cientistas vão deixar o país”. Ele refere-se à chamada “fuga de cérebros”: com a falta de dinheiro para fazer pesquisa, as melhores cabeças vão para universidades estrangeiras.
Em um debate organizado pelo jornal “Folha de S.Paulo” no fim de março, pesquisadores também cobraram financiamento e reconhecimento para a ciência feita no Brasil. O físico e presidente da Associação Brasileira de Ciência, Luiz Davidovich, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), disse que há cientistas na universidade que não conseguem fazer pesquisa porque não têm verba para importar insumos. “A maioria não percebe o papel estruturante da ciência e tecnologia na construção do país”, disse o físico no debate organizado pelo jornal.
Para entender o impacto dessas medidas, o Nexo fez duas perguntas às seguintes especialistas: Mayana Zatz, professora titular do Instituto de Biociências da USP Helena Nader, professora titular da Unifesp, e presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
O que a ciência brasileira perde com os cortes no orçamento?
MAYANA ZATZ O Brasil já tinha, antes dos cortes, um orçamento próximo a 1% do PIB, muito inferior aos países do primeiro mundo para a pesquisa científica e tecnológica. Israel e Coreia do Sul tem mais que 4%, a União Europeia pretende chegar a 3% do PIB no ano 2020. Com esse corte e com a enorme burocracia torna-se cada vez mais difícil fazer uma pesquisa competitiva no Brasil. Além de não conseguirmos atrair pesquisadores do exterior, temo que vamos perder muitos jovens cientistas que não verão um futuro no nosso país. Se não pudermos reverter essa situação, esse corte nos afastará cada vez mais da ciência internacional.
HELENA NADER Perde muito, em muitos aspectos. Perde em quantidade. Com o corte havido, certamente muitos projetos de pesquisa hoje em andamento terão de ser paralisados ou evoluir de maneira tímida, e tantos outros projetos ficarão apenas no papel, pois não haverá recursos para financiá-los. Ou seja, vamos produzir menos ciência. Perde em participação na ciência mundial. Nos últimos 20 anos, como resultado dos investimentos crescentes, nossa produção científica se multiplicou por sete, enquanto a produção científica mundial cresceu 2,8 vezes. Com os cortes, não conseguiremos manter esse ritmo. Ou seja, nossa participação na produção científica mundial vai diminuir. A qualidade da nossa ciência medida pelo número de citações, índice h, entre outros, melhorou ao longo dos anos. Com certeza, haverá um efeito também evidente na qualidade da ciência aqui produzida. A internacionalização da ciência brasileira medida pelo número de artigos com participação de autores de outros países, que é ainda pequena comparada à de outras nações, também estacionará ou declinará. Perde em manutenção da infraestrutura instalada. Qualquer equipamento exige manutenção permanente. Em muitos laboratórios há equipamentos sofisticados, que exigem uma manutenção minuciosa. Sem recursos, essa infraestrutura de pesquisa perderá desempenho e valor. Perde em capacidade de apresentar soluções para problemas das pessoas, da sociedade, do país. A ciência cada vez mais tem uma participação maior na solução de questões que afligem a sociedade, nas mais diversas áreas: saúde, alimentos, habitação, transporte, meio ambiente etc. etc. Com a diminuição da produção científica, essas áreas todas ficarão prejudicadas. Perde em capacidade de gerar desenvolvimento tecnológico e inovação. Também cada vez mais, a ciência tem uma interface maior e mais intensa com a economia. A ciência induz a tecnologia, que induz a inovação tecnológica, que possibilita às empresas maior competitividade, que proporciona à economia do país uma melhor performance perante a economia mundial. Ou seja, os cortes na ciência terão um reflexo direto na economia brasileira.
Por quantos anos vamos sentir o impacto dos crescentes cortes recentes?
MAYANA ZATZ É impossível prever. Os prejuízos podem ser irreparáveis. A única maneira de diminuir o impacto desses cortes é atrair mais investimentos da iniciativa privada. Recentemente foi criado o Instituto Serrapilheira, por João e Bianca Moreira Salles, que investiram R$ 350 milhões para financiar a pesquisa científica. Trata-se de uma iniciativa pioneira que sozinha não poderá substituir os aportes públicos. Mas ela pode tornar-se um exemplo e um incentivo para outros financiamentos de instituições privadas que poderiam diminuir o impacto dos cortes das agências de fomento a pesquisa.
HELENA NADER O mundo vive hoje a economia do conhecimento. O Brasil deu um grande passo para trás, ao considerar que ciência, tecnologia e inovação são gastos e não investimentos, e a permitir cortes crescentes na área. A Coreia, que em 1998 também enfrentou uma grave crise econômica, e diferentemente do nosso país, apostou em CT&I tem hoje sua economia ocupando posição de destaque. A China buscando sair da crise econômica recente, decidiu investir ainda mais na área, buscando atingir até 2020, 2,5% do PIB, inclusive com um aumento de 30% nos investimentos em ciência básica. Diante dessa diversidade de aspectos, seguramente é impossível prever por quanto tempo os cortes atuais se refletirão ao longo dos anos. Como em ciência, normalmente, se obtém resultados somente no médio ou no longo prazo, uma coisa é certa: se os cortes não forem revertidos imediatamente, serão necessários muitos anos para retomamos o estágio atual.
Fonte: Nexo Jornal