Como o transporte urbano deve mudar no pós-pandemia

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on email

Dos ônibus lotados às calçadas estreitas, os problemas de mobilidade urbana percebidos lá no início da pandemia continuam nas cidades brasileiras mesmo após mais de um ano. Iniciativas em outros países e especialistas têm apontado alguns caminhos para mudar esse cenário, como a multimodalidade, o urbanismo tático e melhorias na gestão e no financiamento do transporte coletivo.

Essas transformações são um dos temas principais do Summit Mobilidade Urbana, congresso virtual que será realizado de 17 a 21 de maio. A participação é gratuita mediante inscrição no summitmobilidade.estadao.com.br

“São várias as mudanças que passaram a ser demandadas, haja vista o papel que o transporte teve na potencialização da pandemia”, explica a urbanista Renata Cavion, subchefe do Departamento de Engenharias da Mobilidade da UFSC e participante de um dos painéis do Summit. Ela destaca que as projeções atuais seguem apontando para um aumento na população de áreas urbanas, principalmente nos países em desenvolvimento, “o que coloca pressão enorme sobre as infraestruturas urbanas”.

No caso brasileiro, uma melhora passa por uma série de fatores, como o crescimento horizontal das metrópoles (o que leva grande parte da população a morar distante do trabalho). “Aspectos como comportamento da população, cultura política, porte das cidades, distâncias percorridas, contrastes sociais, evolução urbana, entre outros aspectos, precisam ser levados em conta para entender os desafios das cidades brasileiras e o seu atraso nos tempos de resposta às demandas urbanas”, explica a professora.

Pelas diferentes características e demandas de deslocamento que uma cidade não deve apostar em um único tipo de transporte. “Ter mais opções de escolha modal – que estejam adequadas à demanda-, bem como as novas tecnologias, devem criar maior competição entre os diferentes modos de transporte, trazendo melhorias significativas para as cidades.”

Mobilidade ativa

Com a necessidade do distanciamento social e de evitar o compartilhamento de espaços fechados com outras bolhas sociais, percursos se tornaram mais curtos e individualizados na pandemia.

Deslocamentos a pé, de bicicleta e outros modos da chamada “mobilidade ativa” ganharam espaço por reduzir a exposição à covid-19 e atender a trajetos curtos para comércios e serviços básicos.

O incremento desta infraestrutura foi uma aposta de grandes cidades pelo mundo, como Barcelona, Nova York, Bogotá e Buenos Aires. Isso está sendo feito em grande parte por meio do “urbanismo tático”, que prevê intervenções rápidas e baratas, apenas com o uso de tintas, cones e afins para delimitar o uso de espaços antes utilizados pelos carros.

“Não envolve obra ou um a infraestrutura maior”, explica a doutora em Mobilidade Ativa e urbanista Meli Malatesta. Segundo ela, para ganhar mais espaço e evitar problemas legais, por recorrer à via para usos não automotores, esse tipo de intervenção deveria ser reconhecido no Código de Trânsito Brasileiro. “As vacinas da covid-19 foram criadas em menos de um ano. Criar uma resolução de caráter provisório para os órgãos se sentirem seguros é muito menos complicado”, compara.

“Antes da pandemia, já estava iniciando um processo de reversão de paradigma, onde os modos ativos e sustentáveis estavam ganhando destaque maior por parte da atenção dos especialistas e até como políticas públicas”, reitera. “Gestores, tomadores de decisão e estudiosos haviam percebido há algum tempo que os modos ou políticas que privilegiavam o transporte motorizado individual não estão se mostrando eficazes.”

Ou seja, a tendência é que o desenho das vias não seja mais tão pensado a partir dos carros, como hoje, em que, no máximo, são feitas adaptações posteriores, como a adição de ciclofaixas. Nessa mudança de paradigma, o deslocamento por carros é visto como uma das opções em meio a outras e na lógica multimodal, em que um trajeto pode intercalar diferentes meios de transporte combinados.

Malatesta lembra que a mobilidade ativa pode ser maior com investimento na infraestrutura, comoman utenção de calçadas, implementação de ciclofaixas e afins. “Modos ativos não servem para todos os deslocamentos, mas servem dentro de uma escala e público. É factível falar em um deslocamento a pé de até três quilômetros e de 5 a 10quilômetros por bicicleta.”

Outra mudança precisa passar pela formação e educação do condutor de veículo automotor. “Ele não é preparado para conviver de forma harmoniosa com a bicicleta e o pedestre”, comenta a urbanista. Isso fica evidente no número de ocorrências de atropelamento, por exemplo, ou na própria sensação de insegurança que parte da população relata ao cogitar o deslocamento por mobilidade ativa.

Transporte coletivo

Relatos e registros de ônibus, trens e metrôs superlotados permaneceram durante quase toda a pandemia. Para especialistas, uma mudança nessa realidade passa por revisão das formas de gestão e financiamento desses modos, hoje custeados por tarifas associadas ao volume de passageiros.

O que se defende é que o transporte deixe de ser tratado como serviço e passe a ser visto como direito, o que é previsto na Constituição desde 2015, destaca Rafael Calábria, coordenador de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e participante da programação do Summit. Ele defende um sistema de transporte nos moldes do SUS, em que a responsabilidade é compartilhada entre as esferas de poder.

Na prática, isso não significa que os serviços seriam realizados pelo Estado, mas que seriam geridos e financiados de outras formas. Em vez de empresas de transporte, os contratos seriam segmentados para demandas mais específicas, como fornecimento de frota e operação, o que foi recentemente anunciado no Chile e na Colômbia.

“Com isso, se fiscaliza mais fácil. Se a empresa quebrar, pode contratar um serviço emergencial, mas não perde o funcionário (e vice-versa)”, compara. Dessa forma, e com a ampliação do financiamento por meio de outros recursos, ele comenta, é possível melhorar o serviço não apenas onde há mais demanda.

“O passageiro é o principal elemento da receita. Por isso, é mais rentável o ônibus lotado. A lotação não é uma ocorrência eventual, é quase o resultado desse modelo de hoje”, comenta. Em médio prazo, essa mudança também perpassa melhorias na infraestrutura, como implementação de corredores e adoção de frota menos poluente.

Carros

O deslocamento por veículos automotores individuais não deve sumir, mas precisa deixar de ser o protagonista absoluto do planejamento urbano. Porém uma maior adesão ocorrerá apenas quando as demais opções se tornarem mais atrativas e acessíveis, argumenta Lorena Freitas, coordenadora de Gestão da Mobilidade do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), entidade que também participará do Summit. “Não adianta restringir uma coisa sem permitir  que as pessoas possam chegar ao destino com segurança e qualidade”, diz.

“Fortaleza tem uma regulamentação que faz com que toda verba que entra na zona azul é reinvestida em mobilidade por bicicleta”, exemplifica a especialista. “Existem formas de você organizar, com a cobrança de estacionamento, o pedágio urbano e outras que poderiam ser pensadas e discutidas, que poderiam ser reinvestidas em mobilidade pública e ativa.”

Essa reversão da lógica do transporte para outros meios também passa pela popularização do conceito de cidade compacta, em que o morador tem acesso ao que necessita na região em que mora. O exemplo mais popular hoje é o plano da prefeitura de Paris em transformar a capital em uma “cidade de 15 minutos”, em que tudo oque é essencial fica a esse tempo de deslocamento a pé.

“Essa relação da pessoa que mora com o bairro se acentuou e se mostrou mais nesse período da pandemia”, lembra Lorena. Porém, para isso ocorrer, é necessário trazer esses serviços para as regiões menos assistidas.

Tecnologia

A professora da UFSC Renata Cavion também destaca que as tecnologias de automação e a inteligência artificial têm papel cada vez mais importante na mobilidade. “Devem provocar mudanças significativas no modo no qual os usuários interagem com os terminais e estações de transporte”, compara.

Outro exemplo é o próprio fluxo dos veículos, com sistemas de temporização semafórica integrada e sincronizada. “Permite maior agilidade e segurança no trânsito”, complementa.

Fonte: Estadão / Por Priscila Mengue | Reprodução Senge BA
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil