Coluna Senge Jovem | Mobilidade para quem?

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on email

O Brasil se tornou um dos países com maior número de mortos e feridos no trânsito.

Por: Gabriel Caldeira, estudante do último ano de Engenharia Civil da UFPR e integrante do Grupo de Estudos de Transporte – GET UFPR, participa do BrCidades Núcleo Curitiba, e atualmente faz parte da coordenação da Campanha Mobilidade Ativa nas Eleições 2018.

Já é disseminado pelo país e faz parte de muitas discussões a questão da mobilidade urbana nas cidades brasileiras. Mas, de quem estamos discutindo quando falamos sobre o tema?

Existem hoje diversas instituições, ONGs e associações que buscam produzir conhecimento e pesquisas científicas para entender a amplitude do tema. A Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) é uma das mais antigas no campo, e a partir do seu sistema de informações, faz um diagnóstico da mobilidade no nosso país. O último relatório, lançado em 2018, identificou que os modos ativos representam em média 43% das viagens realizadas nas cidades acima de 60 mil habitantes. Esse valor varia com o tamanho da cidade, podendo chegar a mais da metade dos deslocamentos realizados por esses modos.

Apesar de parecer um dado óbvio para os estudiosos do assunto, encontra-se na realidade das nossas cidades uma desigualdade gritante no tratamento desses usuários, tanto por parte do poder público, quanto pela “sociedade”. A intenção no destaque da palavra sociedade se dá pelo fato histórico no nosso país de falta de consciência da maioria da população em entender o trânsito como uma forma política de usufruto das nossas cidades. Tal fato permitiu que a elite e a classe média utilizassem o discurso da técnica para viabilizar sua forma de se deslocar e utilizar os novos serviços nas cidades. Desde a introdução dos automóveis, até pouco tempo atrás, se pautava o trânsito como um assunto técnico e exclusivo aos engenheiros de tráfego. Transporte se tornou sinônimo de obra. Onde numa cidade havia obra, provavelmente havia sinalização para uma melhora no trânsito, seja pela introdução de mais faixas até viadutos, que rasgam o tecido o urbano.

Como consequência, mais e mais veículos vem sendo adicionados ao sistema viário das nossas cidades. Dados do Denatran mostram que do começo do século até agora, a frota de automóveis aumentou mais de 400%. Para alguns, esses dados representam o crescimento da economia no período, e o reflexo do aumento no poder de compra dos cidadãos, consequência dos governos de esquerda no período, dando lhes assim maior “liberdade” para se deslocarem. Para outros, no entanto, esse crescimento vem representando apenas perdas humanas.

O Brasil se tornou um dos países com maior número de mortos e feridos no trânsito. Os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde mostram que alcançamos o quarto lugar em óbitos no trânsito no mundo. O dado mais recente disponibilizado pelo Ministério da Saúde diz que em 2016 mais de 37 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito. As principais vítimas e os mais vulneráveis são os pedestres e ciclistas, que somam mais de 22% dos óbitos no trânsito no mundo. No Brasil, a estatística não tem sido diferente, e o pedestre passou a ficar atrás apenas dos usuários de motocicletas. Vivemos uma guerra silenciosa e que não tem sido encarada de fato, pelo menos no Brasil, por nenhum lado das coordenadas políticas. Enxerga-se os acidentes de trânsito como uma realidade imutável, e as vidas perdidas no trânsito um preço razoável a se pagar pela maior “liberdade” criada pelo uso dos automóveis privados.

O Brasil já tem dado passos (apesar de lentos) na produção de políticas que pensem formas mais sustentáveis e democráticas de acesso aos bens e serviços que as cidades oferecem. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, aprovada em 2012, inverte a prioridade que historicamente foi dada ao automóvel. Estabeleceu prioridade máxima aos usuários dos modos ativos (a pé e bicicleta), e depois aos modos motorizados, ainda estabelecendo prioridade dos modos coletivos em detrimento dos individuais. Por fim, estabeleceu o Plano de Mobilidade como instrumento de planejamento das cidades para garantia desses modos se deslocarem.

É preciso, no entanto, atentar para essas novas mudanças que estamos passando. Apesar de estabelecer essa prioridade, a prática que muitas prefeituras vêm tomando imitam cada dia mais o modelo rodoviarista que outras cidades já adotaram há décadas (São Paulo é o caso mais conhecido). E nesse ponto, precisamos reivindicar nossos direitos políticos de se deslocar pelas cidades com segurança e acessibilidade.

Outro fator no qual devemos prestar atenção, é para o fato de que a mobilidade permite o acesso aos bens e serviços da cidade, como já dito, permitindo dessa forma o desenvolvimento das pessoas que vivem nesses espaços. Devemos tomar o cuidado para não acreditar que só lutar por modos mais sustentáveis de deslocamento será suficiente para as nossas cidades. Temos que procurar entender como esse processo se dá no contexto das classes sociais. Devemos perguntar, como já se perguntou, quem são os usuários desses sistemas, quais modos utilizam, e que classes esses deslocamentos representam. Jamais devemos perder de vista este ponto. Não se pode deixar encobrir com narrativas o conteúdo social e de classe a respeito da disputa pelo espaço urbano e do sistema viário.

 

Fonte: Senge-PR